O Complexo Penitenciário do Vale do Itajaí (SC) e a Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal

31/05/2017

Por Airto Chaves Junior e Leonardo Costella - 31/05/2017

Há pouco menos de um ano, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 56.  Conforme ela, a falta de vagas no regime prisional a que o preso deve cumprir a pena não autoriza a sua manutenção em regime mais grave. Neste caso, deve ser determinada a saída antecipada do condenado para liberdade eletronicamente monitorada ou mesmo, valer-se da prisão domiciliar ou ainda, da progressão para o regime aberto: “A falta de vagas em estabelecimento prisional não autoriza a manutenção do preso em regime mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros do Recurso Extraordinário 641.320”.

Um dos maiores Complexos Prisionais do Estado de Santa Catarina está situado na cidade de Itajaí. No mês de abril de 2017, a Comissão de Assuntos Prisionais e Segurança Pública da OAB/SC realizou inspeção que permitiu verificar que o Presídio do Complexo, local destinado somente para presos provisórios, contava com 152 (cento e cinquenta e dois) internos condenados definitivamente em regime inicialmente fechado. Além disso, restou constatado que 144 (cento e quarenta e quatro) internos condenados em regime semiaberto, também com sentenças transitadas em julgado, cumpriam pena no presídio e, portanto, sujeitos às regras mais gravosas do regime fechado.

Vale lembrar que manter o condenado em regime prisional mais severo do que aquele que consta da sentença ou, de igual parte, negar a progressão de regime prisional no plano material ao preso configura excesso de execução, circunstância vedada pelo artigo 185 da Lei de Execução Penal[1], consubstanciada na latente violação ao comando da Súmula Vinculante aqui referenciada. Aliás, o vácuo no cumprimento da legislação está diretamente relacionado aos acontecimentos noticiados pela mídia e alinhados a “quebra da ordem” manifestada pelos presos do Presídio nos últimos meses (motins, fugas e rebeliões).

Mas não é só. Além da brutal desconformidade com o disposto na Súmula Vinculante nº 56 do STF verificada no presídio, o que revela um elevado número de apenados segregados em local incompatível com aquele de direito, constatou-se uma flagrante superlotação do estabelecimento prisional, o qual opera com praticamente o dobro de sua capacidade.

No que se refere a este aspecto, a Lei de Execução Penal anota, em seu art. 85, que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade”. O parágrafo único do mesmo dispositivo complementa: “o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades”. O art. 88 do mesmo diploma traz que “o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”, e em seu parágrafo único, “a”, enumera um dos requisitos básicos da unidade celular: “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”.

O descumprimento a estes preceitos legais materializado na superlotação carcerária retrata uma situação degradante de vida impingida aos presos do local, o que resta bem caracterizado quando se verifica que num espaço concebido para custodiar uma pessoa, existem ao menos dois indivíduos encarcerados. A quantidade de presos é tão maior do que a suportável pelo ambiente prisional que só este fator já seria suficiente para se estabelecer conflitos internos pela busca de espaço, por exemplo, para dormir. Com a postura, o Estado parecer revogar princípios da física, dentre os quais, o da Impenetrabilidade, o qual tem amparo na chamada Lei de Newton, que ensina que "dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.

Como se vê, o Complexo Penitenciário de Itajaí não se afasta à regra imposta ao Sistema Penitenciário mantido no Brasil, o qual é sustentado pela via de uma proposta bastante paradoxal: primeiro diz ao condenado que a pena lhe está sendo imposta dentro de um projeto para que alcance a sua reabilitação, recuperação e reinserção social (discurso alinhado à paz social, a ordem e a justiça); logo em seguida, lança-se este apenado num ambiente que possui como característica fundante a naturalização do descumprimento da lei.

Apesar de essa instrumentalidade situar-se num campo visceralmente ilegítimo, a violência por ele propagada transita na esfera do objetivo (oculto aos olhos da sociedade), pois faz parte da lógica estrutural e regular das instituições que operam a pena privativa de liberdade no Brasil, e não um acidente de percurso pontual do qual se possa, de plano, identificar as suas distorções.

Já tem mais de 40 anos que Michel Foucault[2] demonstrou criticamente a estrutura da instituição correcional moderna deixando nu o seu fracasso para desempenhar as funções que lhe são atribuídas oficialmente em diferentes períodos da história, desde a sua constituição como forma de castigo nos primeiros anos do século XIX. E essa problemática aqui apresentada compromete ainda mais a implantação de políticas prisionais minimamente eficazes, interferindo na segurança do local e comprometendo a integridade física, tanto dos internos quanto dos agentes penitenciários e demais funcionários que trabalham diariamente naquele ambiente.

Por fim, não se pode deixar escapar que essas violações legais estimulam rebeliões e motins. No que concerne especificamente às rebeliões, o direito é garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu “considerando terceiro”, faz registrar que é “essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”[3].[4] Conforme a norma mencionada, havendo um regime de Direito com o respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais, não teria lugar a rebelião. No entanto, esse direito ressurge se o regime deixa de ser o de Direito e passa a ser fundado no arbítrio, tal como ocorre nas constantes violações legais e constitucionais no interior do ambiente prisional verificado, estampando situações em que, inclusive, o Estado de Direito não opera (está suspenso), tal como ocorre num verdadeiro Estado de Exceção. É um lugar “onde a oposição entre a norma e a sua atuação atinge a máxima intensidade”. Tem-se, pois, um Estado da Lei em que esta lei não se aplica, apesar de encontrar-se regularmente em vigor. [5]


Notas e Referências:

[1] LEP, art. 185. Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história de violência nas prisões. Tradução de Ligia M. Pondé Vassallo. 7.ed. Petrópolis/RJ. Ed. Vozes, 1989, p. 207 e ss. Essas questões também são objetos de abordagem do estudo de: MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do Sistema Penitenciário (Século XVI-XIX). Coleção Pensamento Criminológico. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. São Paulo: Revan, 2006; Loïc Wacquant. Ver: Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Tradução de Sérgio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003; GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social em la sociedad contemporânea. Traducción de Máximo Sozzo. Barcelona: Editorial Gedisa, 2005.

[3] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Foi assinada pelo Brasil na mesma data. Disponível em: < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html>. Acesso em 12/11/2016.

[4] Previsão semelhante pode ser encontrada durante a Revolução Francesa e com base indireta no pensamento de Locke, na tentativa de legalizar o direito à Insurreição, isto é, de tornar legal o que historicamente foi sempre resolvido através da manifestação da força. De fato, no artigo 35 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão do Ato Constitucional de 24 de junho de 1793, onde se afirma que quando o Governo viola os "direitos do povo", a Insurreição se torna, quer para o povo quer para os indivíduos, "o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres". Conforme Gian Mario Bravo, “este é um caso anômalo de legislação, típico de um Governo revolucionário, mas é significativo, porque se repetiu algumas outras vezes, no mundo contemporâneo, em situações de emergência ou de alta tensão ideal”. Ver: BRAVO, Gian Mario. Insurreição. In: Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. I. 11. ed. Tradução de Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 632.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Excepção. Tradução de Miguel Freitas da Costa. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2003, p. 60-61.


airto-chaves-juniorAirto Chaves Júnior é Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI); Doutor em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha). Professor Titular de Direito Penal da UNIVALI; Professor de Direito Penal da Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina; Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Advogado Criminalista em Santa Catarina, Sócio do Escritório “Chaves Jr. Advocacia Criminal”, com sede em Itajaí/SC. E-mail: airto@chavesjrcriminal.com.br


Leonardo CostellaLeonardo Costella é Especialista em Perícia Criminal e Biologia Forense pela Universidade do Vale do Itajaí. Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. É Presidente da Comissão de Assuntos Prisionais da Ordem dos Advogados do Brasil - SC - Subseção de Itajaí e Representante Institucional da OAB de Itajaí/SC no Conselho Municipal de Política Sobre Drogas. Sócio do Escritório “Chaves Jr. Advocacia Criminal”, com sede em Itajaí/SC. E-mail: leonardo@chavesjrcriminal.com.br


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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