O combate ao trabalho análogo ao de escravo e a reforma trabalhista – Por Márcia Cunha Teixeira

13/06/2017

Coordenador: Ricardo Calcini

Introdução

O tema ora proposto visa trazer à luz a infâmia da exploração do trabalho análogo ao de escravo, exploração do homem pelo seu semelhante, ignorada pela maioria e que persiste nos dias de hoje, não somente nos rincões mais distantes do Brasil, como também na Capital do Estado de São Paulo, o mais rico do país.

Em que pese a escravidão ter sido abolida como instituto jurídico no século XX, esse aviltamento aos direitos humanos é praticado e o Estado ainda não conseguiu desenvolver mecanismos para combate eficaz, de forma a erradicar essa ignomínia.

De acordo com avaliação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, efetuada por meio do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, nos últimos anos o Brasil evoluiu nas ações de combate a esse crime, mas determinados setores não acompanharam essa evolução, como por exemplo, o setor sucroalcooleiro.

E o que se verifica quando há exploração da mão de obra de forma análoga ao trabalho escravo, é que há uma somatória de ofensas aos preceitos constitucionais e legais: há desrespeito à inviolabilidade do direito à liberdade e mesmo do direito à vida; ocorre violação ao preceito de que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; há infringência ao princípio de que a ordem econômica e social é fundada na valorização do trabalho humano, preceitos estes ínsitos na Constituição Federal.

A submissão do trabalhador a regime análogo ao de escravo concretiza-se com a supressão de direitos trabalhistas e com sua exposição a ambiente laboral degradante; nessa esteira, o trabalho forçado é exercido em condições degradantes, em locais sem as garantias mínimas de saúde e segurança, onde também há falta de higiene, tanto em relação à moradia, quanto à alimentação.

É preciso salientar que a fiscalização é insuficiente, pois historicamente não houve priorização por parte do poder público quanto à prevenção dos riscos laborais. De todo modo, é mister destacar o esforço de vários órgãos, nas variadas esferas de atuação, como se verá ao longo deste texto, tanto no combate ao trabalho análogo ao de escravo, quanto na repressão ao desrespeito ao direito fundamental a um ambiente do trabalho saudável e equilibrado.

Ocorre que o combate ao trabalho escravo, até os dias de hoje, é efetuado com lastro num arcabouço jurídico que neste momento sofre ameaça de severa modificação pela reforma trabalhista proposta pelo Governo Federal, ora em trâmite no Senado Federal. As alterações propostas retiram direitos trabalhistas, diminuem a proteção dos trabalhadores e dificultam ainda mais a responsabilização daqueles que praticaram a usurpação dos direitos.

Terminologia e conceituação

Escravidão é o regime social onde há sujeição do homem, e sua força de trabalho é entendida como propriedade privada de outrem.[1] É a primeira forma da sociedade dividida entre dominados e dominadores. A origem da escravidão perde-se nos tempos e coincide com o início da civilização. Antes, os prisioneiros feitos nas guerras eram mortos. A descoberta de que podiam ser poupados e colocados para trabalhar teve importância semelhante à domesticação dos animais. Nas sociedades antigas, onde não havia ainda clara separação entre propriedade pública e propriedade privada, os escravos eram usados nos trabalhos desenvolvidos numa economia patriarcal, ao lado dos seus senhores ou eram propriedade do Estado ou dos templos.

A terminologia utilizada para denominar “trabalho escravo” varia na doutrina; são utilizadas as expressões “trabalho análogo à condição de escravo”; “trabalho forçado”, ou “trabalho escravo contemporâneo”; “escravidão por dívidas”, “trabalho obrigatório”, “redução à condição análoga à de escravo”. Como nos ensina o Prof. Ronaldo Lima dos Santos, “independentemente da denominação adotada, (...), em todas as hipóteses levantadas, constatamos flagrantemente a sempre presença de vícios de vontade, desde a arregimentação do trabalhador para a prestação dos serviços. Os mais diversos métodos de coação, simulação, fraude, dolo, indução a erro, são empregados para cercear a vontade do empregado e obrigá-lo a prestação de serviços contra a sua vontade.”[2]

Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé considera mais apropriada a expressão “trabalho escravo contemporâneo.”[3] Esse autor conceitua o trabalho escravo contemporâneo como sendo

aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar a sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral, que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador.”[4] 

Trabalho escravo. Trabalho degradante.  Trabalho forçado.

Trabalho realizado em condição análoga à de escravo é o mesmo que dizer que o trabalho é forçado, conforme a proteção legal internacional, como se vê pelas disposições da Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. [5]

Nesse passo, o fator determinante para caracterizar trabalho análogo ao de escravo é o cerceamento de liberdade. O trabalhador escravo sofre três modos de coação, a saber: a) econômica; b) moral/psíquica; c) física. Tal exploração retira do ser humano a cidadania, e infringe os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.

Trabalho degradante é o trabalho humilhante. Deriva do verbo degradar; decorre de ato ou fato que provoca degradação. Significa privar o trabalhador do seu status de cidadão, negar direitos inerentes à cidadania, rebaixar sua condição humana.

Na conceituação de trabalho escravo utilizada pela OIT, toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, tratamos da prática de um delito que cerceia a liberdade dos trabalhadores, por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga.[6]

Cabe distinguir os conceitos anteriormente citados, do trabalho penoso. O trabalho penoso não retrata cerceamento do direito à liberdade; este não se caracteriza pela arregimentação de trabalhadores, mas pela natureza ou condição e execução da atividade de trabalho.[7]

Por fim, o trabalho forçado caracteriza-se pela presença dos seguintes elementos, de forma concomitante, entre outros: aliciamento de mão de obra por “gatos”; servidão por dívida e cerceamento do direito à liberdade.

Escravidão urbana do imigrante irregular. O sweating system no contexto brasileiro.

Quando se fala no trabalho escravo no Brasil, é comum associar tal exploração com regiões longínquas do país. No entanto, em uma praça chamada Padre Bento, rebatizada de Kantuta, aos domingos milhares de bolivianos reúnem-se para matar as saudades da terra natal. A Kantuta fica no bairro do Pari, a menos de dez quilômetros da Praça da Sé – marco zero da cidade de São Paulo, capital do estado mais desenvolvido do país e maior centro financeiro da América Latina – e é hoje um dos maiores entrepostos de trabalho escravo no mundo. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas – ONU, 700 mil pessoas são traficadas anualmente e o mercado clandestino de trabalhadores é a terceira principal atividade criminosa no mundo, movimentando US$ 12 bilhões/ano, atrás apenas dos tráficos de drogas e de armas. Com o crescimento do desemprego e a globalização da miséria, especialmente a partir da última década do século passado, a expectativa é que o tráfico de armas seja rapidamente ultrapassado pelo tráfico de trabalho escravo.[8]

O sweating system é desenvolvido em local que de forma promíscua mescla o âmbito residencial e a oficina de trabalho, melhor dizendo, a oficina de trabalho é a extensão do estabelecimento fabril, sem as condições de controle e proteção da planta industrial, posto ser uma continuação da própria residência do trabalhador.[9]

Na capital do estado de São Paulo os latinoamericanos ilegais, principalmente bolivianos, trabalham em situação degradante, em oficinas de costuras ilegais, geralmente para outros estrangeiros, em porões e locais fechados, em cômodos apertados, divididos por paredes de compensados para não se relacionarem com outros trabalhadores. Os locais não têm higiene e as refeições são descontadas do salário a receber, assim como outras despesas básicas com água, luz e moradia. Os patrões retêm seus documentos e ameaçam entregá-los à polícia federal.

Aqui, além da exploração do trabalho forçado, temos o problema da ilegalidade da imigração. O Estatuto do Estrangeiro não autoriza a atividade para o estrangeiro com visto de turista, de trânsito ou temporário. Os ilegais não podem exercer atividade remunerada. Então, quando libertos, não recebem qualquer direito trabalhista e não podem fazer reivindicações.  Para buscar solução para todos os embaraços encontrados, o Ministério Público do Trabalho da 2ª Região – PRT-2, após discussões realizadas, propôs criar um grupo de estudos para viabilizar juridicamente a possibilidade de concessão de autorização de trabalho e visto aos trabalhadores estrangeiros em situação irregular que denunciarem/testemunharem o trabalho escravo, até o trânsito em julgado da ação penal, visando a necessidade de obtenção de colaboração à persecução criminal por parte das vítimas do trabalho escravo, além de outras medidas.[10]

Arcabouço jurídico de proteção ao trabalho e combate à exploração do trabalho análogo ao escravo atualmente em vigor.

Com a abolição formal da escravidão em 1888, a abolição do instituto jurídico vai sendo consolidada no século XX. O Brasil é signatário dos seguintes tratados e convenções internacionais, conforme elencamos a seguir:

  • Declaração Universal dos Direitos do Homem, Nações Unidas, 1948 – “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (artigo IV); e ainda, “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho” (art. XXIII);
  • Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura, 1926, emendada pelo Protocolo de 1953 e Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, de 1956;
  • Convenção n. 29 da OIT, de 1930 – ratificada pelo Brasil em 1957, com vigência no território nacional em 1958. Trata-se do primeiro instrumento normativo a conceituar “trabalho forçado ou obrigatório”, como aquele que é “exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.” (art. 2);
  • Convenção n. 105 da OIT, de 1957, com vigência nacional de 1966 – sobre a Abolição do Trabalho Forçado, que dispõe, no seu Art. 1º: “Os signatários obrigam-se a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório.”
  • Declaração Sociolaboral do Mercosul, de 1998, que prevê no seu artigo 5º o compromisso dos países signatários com a eliminação do trabalho forçado.

E no plano interno, destacamos que na Constituição Federal de 1988, a dignidade humana é erigida como um dos princípios fundamentais da República, conforme artigo 1º, inciso III. E à luz dessa ordem constitucional, para Ronaldo Lima dos Santos, escravizar é:

“(...) violar direitos fundamentais e difusos da sociedade, consagrados na Constituição Federal de 1988, entre os quais se destacam: a proteção à dignidade humana (art. 1º, III); os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV); a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, a segurança (art. 5º, caput); a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I); o princípio da legalidade (art. 5º, II); não submissão à tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); a inviolabilidade da intimidade; da vida privada, da honra e da imagem (art. 5º, X); a liberdade de exercício de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII); a liberdade de locomoção (art. 5º, XV); a função social da propriedade (art.  5º, XXIII); a proibição de imposição de pena de trabalhos forçados e cruéis (art. 5º, XLVI); a proibição de prisão civil por dívida (art. 5º, LXVII).”[11]

Na legislação trabalhista, a escravidão é coibida pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, em diversos dispositivos, como pela ausência de registro em carteira de trabalho, com violação aos dispositivos da CLT:  artigo 41, caput; artigos 13 e 29, caput.

Na área da segurança e higiene do trabalhador rural, usualmente são constatados descumprimentos ao preceito contido no inciso XXII do artigo 7º da Constituição Federal, às disposições contidas no Capítulo V da CLT, artigos 154 e seguintes, bem como às Normas Regulamentadoras da Portaria n. 3.214/78 do Ministério do Trabalho. É comum não haver fornecimento de água potável; as condições de moradia são precárias, sem as mínimas condições de higiene; muitas vezes é fornecida alimentação deteriorada.

E no que tange à jornada de trabalho cumprida pelo trabalhador escravizado, há total desrespeito quanto à limitação das 8 horas diárias e 44 horas semanais, determinada pelo artigo 7º, XIII, CF.

A coibição ao trabalho escravo também é prevista em demais leis ordinárias, como na Lei n. 9.777, de 29.12.1998, que alterou o Código Penal e estabelece coibições à exploração do trabalho forçado; bem como em várias instruções normativas, decretos e portarias, como elenca Luciana Aparecida Lotto.[12] 

Dimensões preventiva e repressiva na tutela labor-ambiental. Atuação do Ministério do Trabalho. 

Desde 1995, com a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF e  depois, com a atuação do Grupo de Fiscalização Móvel, denominado Grupo Móvel, constituído por auditores fiscais de diversas regiões, membros da Polícia Federal (delegados e agentes) e de membros do Ministério Público do Trabalho, vários foram os flagrantes e as ações de coibição da prática ilegal: encontrada a situação de trabalho escravo, o Grupo Móvel impõe a imediata paralisação das atividades; providencia a regularização dos contratos, com o pagamento dos direitos trabalhistas rescisórios, anotação na CTPS e pagamento de valores do FGTS. Os trabalhadores são retornados às suas regiões de origem, sendo concomitantemente lavradas as multas administrativas cabíveis.

Com a Lei n. 10.608/2002, com o intuito de se evitar novo aliciamento dos trabalhadores libertos, foi estendido a estes o direito ao seguro desemprego; a lei prevê que o trabalhador deve ser encaminhado para qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego.

Além disso, foi criado o “Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”, conhecida como “Lista Suja”. A inclusão na lista suja inviabiliza a obtenção de financiamentos e empréstimos juntos aos órgãos públicos e entidades privadas. 

Atuação do Ministério Público do Trabalho

Por seu turno, o Ministério Público do Trabalho (MPT) instaura inquérito civil, procedimento administrativo de investigação, com natureza inquisitiva, muitas vezes suscitado por meio de denúncia de qualquer pessoa ou instaurado de ofício por qualquer dos integrantes do MPT, por meio de notícias da imprensa ou por qualquer outra fonte que lhe permita tomar conhecimento do ocorrido.

E com a criação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), o inquérito civil passou a ter dupla função: a obtenção de elementos de convicção para o ajuizamento da Ação Civil Pública e a busca de assinatura de ajuste de conduta, com extraordinário e rápido benefício para a coletividade.

De acordo com Raimundo Simão de Melo, os pedidos contidos nas ACP’s em face dos réus podem ser os seguintes: a) reconhecimento da relação de emprego entre os trabalhadores e o tomador de serviços, nos termos do artigo 29 da CLT; b) abstenção de exigir trabalho forçado e ou degradante; c) abstenção de coagir ou induzir os trabalhadores a utilizarem armazéns ou serviços mantidos pelo patrão, tomador de serviços ou por pessoas outras por estes indicadas; d) abstenção de impor sanção aos trabalhadores em razão da dívida acumulada; e) bloqueio de dinheiro nas contas bancárias em nome dos réus, para garantir a execução final da decisão a ser proferida; f) indisponibilidade de bens móveis e imóveis dos réus; g) cumprimento das normas de segurança, medicina e higiene do trabalho; h) rescisão indireta dos contratos de trabalho, com pagamento das verbas rescisórias, quando desaconselhável a continuidade das relações de trabalho; i) pagamento das despesas da viagem de retorno dos trabalhadores às suas origens; j) condenação por dano moral coletivo, etc.[13]

A competência para julgar as ações de combate ao trabalho escravo é da Justiça do Trabalho, salvo as questões penais, cuja competência é da Justiça Federal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), nos termos do artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal. Tal definição pôs fim ao impasse existente, entre a Justiça Estadual e a Federal.

E no tocante à imputação da responsabilidade, nos casos da exploração do trabalho em condição análoga à de escravo, a responsabilização deve ser imputada sob a inspiração do direito ambiental. Ressalte-se aqui que o meio ambiente de trabalho integra conceitual e normativamente o meio ambiente em geral. E, à luz do direito ambiental, lastreamo-nos no princípio do poluidor-pagador, do qual decorrem aspectos importantes para o aplicador do direito ambiental, como a responsabilidade civil objetiva, que já era prevista na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente – Lei 6.938/1981, e foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 – aquele que não evita o dano responde objetivamente pelos prejuízos causados, conforme § 3.º do artigo 225 da Carta.

Sabe-se que, de acordo com a teoria do risco criado, quem empreende alguma atividade, lucrativa ou não, responde pelos danos causados a outrem. No entanto, cabe ponderar aqui que em determinadas condições laborais perversas a que é submetido o trabalhador, com exigência de níveis anormais de desgaste humano, de esforço físico ou psíquico desmesurado, hipótese da exploração do trabalho análogo ao de escravo, o agente cria um risco em nível superior ao permitido, caracterizando-se o risco proibido ou um incremento do risco permitido. Nessas hipóteses, não se fala em relação de causalidade, e sim em imputação objetiva, à luz do ensinamento de Guilherme Guimarães Feliciano.[14]

Saliente-se que no Direito do Trabalho tem sido aplicada a “teoria do avestruz” ou da cegueira deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine), que propugna que a ignorância deliberada equivale ao dolo eventual, não se confundindo com a mera negligência. Nesse passo, imputa-se a responsabilidade a um determinado beneficiário de uma cadeia produtiva (estrutura reticular), que fecha os olhos diante da precarização do trabalho. Há aqui a conduta omissa do tomador dos serviços, em nítida fraude aos preceitos trabalhistas; busca-se, com a aplicação dessa teoria, a vedação ao locupletamento ilícito, o chamado “lucro injusto”.

A reforma trabalhista e a ameaça à proteção dos trabalhadores

Ocorre que as práticas acima expostas de coibição da exploração da mão-de-obra análoga à escrava estão ameaçadas, caso seja aprovada a propositura legislativa de iniciativa do Executivo, ora em trâmite no Senado Federal, como a seguir se expõe.

O governo federal enviou à Câmara dos Deputados, em dezembro de 2016, o Projeto de Lei n. 6.787, propondo alterações nos direitos trabalhistas e sindicais. O texto original enviado pelo Poder Executivo sofreu profundas alterações, por meio do substitutivo apresentado pelo Relator da Comissão Especial que analisou o tema na Câmara dos Deputados. Esse substitutivo foi aprovado pelo plenário com pequenas modificações em 26 de abril de 2017 e o texto aprovado na Câmara, denominado agora de PLC 38/2017, foi enviado ao Senado Federal.

A chamada “reforma trabalhista” suprime ou reduz diversos direitos sociais, mas para não fugir ao tema em foco, destaca-se de início a alteração proposta para o artigo 2º da CLT, em particular o acréscimo do § 3º, in verbis:

“Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, ainda que administradores ou detentores da maioria do capital social, se não comprovado o efetivo controle de uma empresa sobre as demais.”

Além disso, é também inserido o § 4º, que prevê não se aplicar ao trabalhador urbano o disposto no §2º do artigo 3º da Lei n. 5.889, de 29 de junho de 1973.

Tais previsões atacam as garantias de satisfação dos direitos trabalhistas, na medida em que descaracterizam o grupo econômico, reduzem o grupo empresarial a situação de estrita subordinação hierárquica entre empresas. A concepção da propositura está em franca colidência com a construção jurisprudencial trabalhista, de visão mais ampla de configuração de grupo econômico por coordenação, muito além da típica relação hierárquica.

Não bastasse isso, a imputação de responsabilidade a um determinado beneficiário de uma cadeia produtiva, aquele que obtém altos lucros com a exploração do trabalho análogo ao de escravo, está com os dias contados, caso aprovada a indigitada “reforma trabalhista”.

O artigo 3º da CLT é acrescido do § 2º, com o seguinte teor:

O negócio jurídico entre empregadores da mesma cadeia produtiva, ainda que em regime de exclusividade, não caracteriza o vínculo empregatício dos empregados da pessoa física ou jurídica contratada com a pessoa física ou jurídica contratante nem a responsabilidade solidária ou subsidiária de débitos e multas trabalhistas entre eles.” (negrito nosso).

Assim, se já era difícil combater o trabalho escravo com a legislação atual, a previsão contida na “reforma trabalhista” significa um verdadeiro alvará para a exploração desenfreada.

Com a vedação expressa de responsabilização da cadeia produtiva, com impedimento de reconhecimento de vínculo empregatício, de responsabilização solidária e também subsidiária, o trabalhador explorado ficará à mercê dos “gatos” ou de pequenas empresas, no mais das vezes inidôneas, pois são essas as que são contratadas pelas tomadoras, por oferecerem preços abaixo do mercado, uma vez que pouco ou nada pagam a quem efetivamente produz. 

Conclusão

Pensamos que vários fatores concorrem para que esse verdadeiro cancro social, o trabalho escravo contemporâneo, não tenha sido ainda extirpado: as grandes estruturas econômicas, cujo norte é produzir em larga escala para obter lucro; somadas aos mecanismos repressivos ainda insuficientes; à carência de uma rede de benefícios sociais mais abrangentes; às distorções sociais, a fome e a miséria, ainda existentes em nosso país.

Para que tal desonra não mais ocorra, é preciso vontade política do Estado, mas também vontade social, pois a responsabilidade para curar esta chaga não é somente do Estado. A exploração do trabalho de forma análoga a de escravo é uma vergonha que macula a honra de todos os cidadãos brasileiros. Cumpre a todos, por todos os meios, contribuir para que esta ignomínia tenha um fim.

São inúmeras e gritantes as inconstitucionalidades presentes no PL 6.787/2016, com violação direta a normas constitucionais e convenções internacionais dotadas de caráter de direitos humanos, como acima elencados, e caso essa proposta de reforma trabalhista seja aprovada, desafiará a todos os operadores do direito, mormente a Justiça do Trabalho, a procurar alternativas e meios eficazes para tentar, minimamente, assegurar a proteção à dignidade da pessoa humana.


Notas e Referências:

[1] Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Larousse 1995, Nova Cultural 1998.

[2] SANTOS, Ronaldo Lima dos Santos. A escravidão por dívidas nas relações de trabalho no Brasil contemporâneo. Revista do Ministério Público do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003. Ano XIII, n. 26. pp. 55-56.

[3]  SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil. São Paulo: LTr, 2001. p. 25.

[4] Op. cit, p. 27.

[5] “Art. 2 – 1. Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.”

[6] www.oitbrasil.org.br

[7] MARQUES, Christiani. A proteção ao trabalho penoso. São Paulo: LTr, 2007. p. 30 e TEIXEIRA, Márcia Cunha, “Trabalho penoso: da aplicação dos princípios ambientais para a reparação social dos danos”. Tese de doutorado em direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, defendida em maio de 2013.

[8] FON, Antonio Carlos. Trabalho escravo. Crônicas da Infâmia. Revista da CUT. São Paulo, Ano I, nº 2, março de 2004, pp. 6-9.

[9] “(...) A promiscuidade entre o local de trabalho e a residência, albergando diversas famílias e/ou pessoas ao mesmo tempo de forma aglomerada, as longas jornadas extenuantes, além do pagamento por peça a valores irrisórios, e aviltantes ou inexistentes condições de higiene e segurança no trabalho, são, de fato, as principais características dos sweatshops. Por esses motivos, tornam-se verdadeiros rincões de reserva nos quais não se respeitam os direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, já que nesses locais de trabalho o dono da planta e chefe da casa é o senhor da vida e da morte de seus obreiros. (...) Sweating system é, além disso, o termo conhecido desde o começo do século XIX para esse tipo de situação de opressão no ambiente de trabalho promovida pela subcontratação de serviços. Originalmente o termo se referia ao tipo de produção têxtil de indumentária militar que logo se estendeu a toda a indústria têxtil, sobretudo a partir de 1830, na Inglaterra e, logo, aos demais países.” V. nesse sentido, The Encyclopaedia Britannica. A dictionary of arts , science, literature and general information. Eleventh Edition. Volume XXVI. Submarine mines to Tom-Tom. New York: Cambridge University, England, 1911, PP. 187/188. (in Trabalho escravo contemporâneo: o sweating system no contexto brasileiro como expressão do trabalho forçado urbano. Disponível em: www.reporterbrasil.org.br/agenciadenoticias/trabalhoescravo.pdf).

[10] MENDES, Almara Nogueira. Nova Forma de Escravidão Urbana: Trabalho de Imigrantes. Revista do Ministério Público do Trabalho. Ano XIII, n. 26. Setembro, 2003. pp. 69-70.

[11] Op. cit, p. 62.

[12] LOTTO, Luciana Aparecida. Ação civil pública trabalhista contra o trabalho escravo no Brasil. São Paulo: LTr, 2008. pp. 70-73.

[13] MELO, Raimundo Simão de. Ação civil pública na justiça do trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 265.

[14] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da imputação objetiva no direito penal ambiental brasileiro. São Paulo: LTr, 2005, PP. 112-117.

Sítios acessados:

http://www.anpt.org.br

http://www.camara.gov.br

http://www.globalslaveryindex.org

http://www.ilo.org

http://www.mtps.gov.br

http://www.observatoriosocial.org.br

http://www.oitbrasil.org.br

http://www.reporterbrasil.com.br


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