O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO REFLEXO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS

13/03/2024

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Desde a sua entrada em vigência, há mais de 33 anos, o Código de Defesa do Consumidor tem regido as regras das relações jurídicas de consumo da sociedade brasileira, sendo inegável que o microssistema jurídico é fruto da chamada constitucionalização do direito civil.[1]

Através do movimento de constitucionalização, a Constituição deixa de se restringir às relações verticais, Estado e cidadão, e passa a ser aplicada nas relações horizontais, àquelas estabelecidas entre particulares, que são os cidadãos entre si.

Nesse âmbito, a constitucionalização do Direito Civil ampliou a aplicação de seus princípios às relações privadas, sendo que teve papel determinante na “proteção do consumidor, com o reconhecimento de sua vulnerabilidade”[2], conforme a doutrina do Professor e Ministro Luís Roberto Barroso.

Sendo assim, os valores e princípios do Código do Consumidor como a boa-fé objetiva, a inversão do ônus da prova, a reparação integral do dano, a proteção ao mínimo existencial, entre outros, são inegavelmente corolários dos preceitos constitucionais.

Assim, vislumbra-se que os preceitos da lei consumerista visam não somente a proteção do consumidor, mas da ordem pública e do interesse social (art. 1º, CDC), os quais são finalidade última (e/ou principal) do Estado.

O reconhecimento do consumidor como parte vulnerável da relação jurídica é desdobramento de seu reconhecimento como sujeito de direitos dotado de dignidade, e que merece ser especialmente protegido frente às eventuais arbitrariedades da relação privada de consumo.

Ora, a especial proteção do consumidor, conferida pela aplicação da lei é consequência da irradiação dos valores constitucionais nas relações privadas. Portanto, é possível afirmar que nas relações de consumo há a incidência do princípio da eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais.[3]

Sobre a incidência desse princípio nas relações privadas, a doutrina de Daniel Sarmento:

“a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como mercado, família, a sociedade civil e a empresa. Sem embargo, firmada esta premissa, é preciso avançar, para verificar a forma como se dá esta incidência. Como já foi ressaltado acima, não seria correto simplesmente transplantar o particular para a posição de sujeito passivo do direito fundamental, equiparando o seu regime jurídico ao dos Poderes Públicos, pois o indivíduo, diversamente do Estado é titular de direitos fundamentais, e está investido pela própria Constituição em um poder de autodeterminação dos seus interesses privados. E foi exatamente por isso que se criou toda a celeuma em torno da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.”[4]

Por certo que para a solução da multiplicidade de conflitos que envolvem as relações de caráter consumerista não bastava a aplicação dos (amplos) preceitos constitucionais, embora seu caráter fosse (e ainda o é) cogente.

Mas era necessária a criação de uma legislação que especialmente garantisse a integral e específica proteção que merecia o consumidor vulnerável.

Nesse contexto, em fiel cumprimento ao previsto no célebre artigo 5.º inciso XXXII, da Constitucional Federal de 1988, o qual dispõe que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, o Congresso Nacional do Governo de Fernando Collor aprovou a Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, o denominado Código de Defesa do Consumidor (CDC)

A vigência do CDC na sociedade brasileira inaugurou o chamado microssistema jurídico da relação consumerista, já que estabeleceu a previsão de normas de direito material (Civil, Penal, Administrativo) e material-processual.

Mesmo após mais de três décadas de sua sanção, as normas do Código do Consumidor ainda dependem da intermediação judicial para que possam ser efetivamente aplicadas. E se dependem da intermediação do poder jurisdicional para sua aplicação, as normas do CDC se tratam de norma de eficácia mediata.

O que demonstra que os desiquilíbrios das relações de consumo sendo tratados no âmbito judicial-contencioso, reforçam que a figura do Estado(juiz) tem papel ativo e fundamental na aplicação da norma de proteção a parte mais vulnerável da relação jurídica privada.

O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor não se trata de presunção juris tantum, mas se tratam de presunção juris et de jure, ou seja, é absoluta e não admite prova em contrária.

 Portanto, uma vez qualificado como consumidor, o contratante é automaticamente tratado como a parte vulnerável da relação jurídica.

É cediço que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor pretende a paridade, o equilíbrio na relação jurídica estabelecida com o produtor, fornecedor, comerciante, industriário, bancário, ente despersonalizado, que produz ou oferece serviço qualificado como objeto de consumo (artigo 3º, CDC).

Essa vulnerabilidade do consumidor não se trata de atributo pejorativo e nem o exime de apresentar em juízo quais são os fatos constitutivos de seu direito (pretensamente violado ou lesado).

Mas a vulnerabilidade do consumidor permite que haja o seu reconhecimento como ente hipossuficiente quanto aos aspectos econômicos, jurídico, técnico ou informacional, frente aos excessos do outro particular, quer seja ele produtor ou fornecedor de bens de consumo.

O que não significa que em todas as demandas haverá razão a pretensão do consumidor.

Porém, incumbirá ao produtor e/ou fornecedor dos bens de consumo a tarefa (o ônus) de comprovar que inexistente a lesão e/ou ameaça ao direito do consumidor, esse atributo se trata do instituto da inversão do ônus da prova e está previsto no artigo 6º, CDC.

A incidência das normas de consumo nas relações contratuais embora mitigue a autonomia da vontade e/ou privada, por outro lado, privilegia a função social do contrato, e se torna um marco nas relações jurídicas particulares.[5]

No que concerne à função social do contrato de consumo, embora a Lei de Liberdade Econômica (Lei n.º 13.874/2019), tenha acrescido às relações privadas os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão dos contratos (art. 421, parágrafo único, CC), esses valores não são incompatíveis com a incidência das normas de proteção da Lei n.º 8.078/1990.

Embora o contrato seja a lei que rege a relação estabelecida entre contratante e contratado (pacta sunt servanda), a função social do contrato reconhece o instrumento particular como instrumento compatível com todas as normas vigentes em sociedade.

O que condiciona a execução do contrato aos “fins sociais” e as “exigências do bem comum”.[6]

A fim de comprovar a premissa de que o contrato de consumo deve estar em harmonia com os fins sociais e as exigências do bem comum (função social do contrato) é pertinente mencionar que a Lei do Superindividamento (Lei n,º 14.181/2021) trouxe valores constitucionais ao Código de Defesa do Consumidor, na edição dos novos artigos 54-A a 54-C.

Os novos dispositivos do CDC são inegavelmente corolários da máxima da proteção ao mínimo existencial do consumidor, que assumiu dívidas maiores que o seu próprio aporte financeiro.

O que impede os excessos e arbitrariedades por parte dos fornecedores e/ou produtores quanto à disponibilização de crédito no mercado, os quais não podem prejudicar o próprio sustento do próprio consumidor e de sua família.

Nesse diapasão, é possível afirmar que embora as normas do Código de Defesa do Consumidor sejam inquestionavelmente normas de Direito Privado há fortes traços de valores e preceitos do Direito Constitucional, corriqueiramente invocados pelo Congresso Nacional, Poder Judiciário, ou mesmo pelos próprios particulares entre si.

Portanto, vislumbra-se que por mais específica que uma legislação possa ser à determinada relação jurídica, como é o caso do CDC, não deve ser interpretada isoladamente, haja vista que está integrada a valores e preceitos constitucionais, os quais permitem conferir sentido e solução às complexas (e profundas) relações jurídicas de consumo.

 

Notas e referências

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo. 11.ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 14.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 15.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

RAMOS, André Luiz Arnt. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas: O estado da questão. RIL BRASÍLIA A. 53, n. 210. Abr./jun.2016. Disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/522910>. Acesso em 03.mar.2024.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Lúmen Juris Editora: Rio de Janeiro/RJ, 2004.

TOMASEVICIUS FILHO. Eduardo. A função social do contrato. Conceito e critérios de aplicação. Brasília a. 42, n. 168. Out/dez. 2005. Disponível em: <efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/168/ril_v42_n168_p197.pdf>. Acesso em 25.fev.2024.

[1] Larissa Janoni de Araujo é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (2020), advogada militante e especialista em Direito Privado e a Nova Advocacia e em Direito da Seguridade Social e Previdenciário, ambos pela Faculdade Legale, em São Paulo/SP (2021). Além disso, é atualmente aluna do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Civil: Novos Paradigmas Hermenêuticos nas Relações Privadas, pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/SP, da Universidade de São Paulo.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo. 11.ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 324

[3] O princípio da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais têm origem no Direito Alemão e diz respeito à aplicação das normas constitucionais, mais precisamente, os Direitos Fundamentais nas relações horizontais, que são as relações que envolvem particulares.

[4]SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas . Lumen Juris Editora: Rio de Janeiro/RJ, 2004. P. 223

[5]GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 15.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. p 24-25

[6] TOMASEVICIUS FILHO. Eduardo. A função social do contrato. Conceito e critérios de aplicação. Brasília a. 42, n. 168. Out/dez. 2005. Disponível em: <efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/168/ril_v42_n168_p197.pdf>. Acesso em 25.fev.2024.

 

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