O céu não somos nós: do ódio de ódio

05/10/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 05/10/2015

O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse Mas a gente nunca conhece.

Charles Bukowski

Um pouco atrasada, mas ainda em tempo, gostaria de discorrer sobre um recado que todo 11 de setembro nos traz: que o criminoso não é só o outro, e que ele pode estar mais perto do que se espera. Este recado, que não deveria ser surpreendente, talvez precise ser reiteradamente demarcado, porque admitir que o mal também está em si pode modificar a resposta dos operadores do Direito aos atos cometidos pelo outro. Talvez seja uma maneira de auxiliar a restringirem sua reprovação, fazendo com que ela se restrinja aos atos, e não pretenda atingir a maldade. Ou, ainda, que tais operadores atenham-se aos atos, e não aos seus autores. Ou, por fim, uma maneira de alertar que a reprovação dos atos alheios não deve ser uma ocasião para a atuação da maldade dos operadores do Direito.

Até porque se remeteu à data supracitada, cabe iniciar trazendo uma observação feita naquele ano feito por Zizek (2001, p.11):

“nos Estados Unidos, um dos brinquedos de maior vendagem no verão de 2000 foi ‘Mary no Corredor da Morte’, no qual um homem amarrado à cadeira elétrica insulta seu carrasco (o consumidor), quase pedindo para ser incinerado com choques elétricos acionados pelo botão apropriado. E o que dizer do ‘Jogo da Cadeira Elétrica’ em vários parques de diversão, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, no qual o jogador se senta na cadeira e administra a si mesmo doses controladas de eletricidade? ‘Ganha’ quem ficar na cadeira até que a máquina o declare morto, ao passo que os perdedores se soltam dos eletrodos antes disso”

O autor se refere, portanto, à satisfação em se encontrar tanto na posição de algoz quanto de vítima. Em outros termos: alguma satisfação no trânsito pela violência. Fuerstenthal (2000, pp.22-23), discorrendo sobre manifestações comportamentais aparentemente opostas e inocentes, diz algo semelhante. Ele explica a indignação que via de regra atos violentos mobilizam, assim como a curiosidade não menos frequente por cenas de violência, por meio da noção de uma constituição essencialmente agressiva do homem.

“a indignação sentida diante dos atos de violência gratuita mascara uma ignorância sobre a natureza humana, que não é tão sensível e equilibrada quanto se gostaria. De todos os animais, o homem é de longe o mais brutal, porque é o único capaz de ferir e matar sem necessidade. A curiosidade que sentimos diante de uma cena de crime ou acidente violento demonstram (...) uma espécie de simpatia pelo sinistro, que nos atrai em função de nossa tendência sádica. Instintiva e inconsciente (...). É preciso oferecer canais legítimos para o escoamento“

Nesta direção de humanizar a violência, o autor desmistifica a concepção de que a violência é algo do campo da animalidade, do não-humano. Koltai (2000, p.15) continua caminhando neste sentido, e introduz o conceito psicanalítico de pulsão; mais especificamente, de pulsão de morte.

“Não por acaso, Freud confessa não entender o mandamento cristão do amor ao próximo. Aliás é só lembrar os crimes cometidos ao longo da história da humanidade para se perceber as formas de imposição desse mandamento do amor ao próximo (...) É possível amar sim, unir os homens uns aos outros pelo amor à condição de deixar alguns de fora dessa ciranda de amor para receber as manifestações de agressividade. A fraternidade está fundada na segregação e o amor do semelhante, no ódio ao diferente.

Para Freud não existe pulsão agressiva em si, mas há um dualismo pulsional que faz com que a pulsão de destruição seja frequentemente erotizada, aliando-se à sexualidade. Talvez isso explique por que os atos de violência sempre têm seus observadores apaixonados”

Cabe destacar que a autora o faz a partir da necessidade que temos de constituir um espaço, um alguém, a quem dirigimos nossa agressividade. Poder-se-ia pensar que seria esta a função do outro radical. Aliás, podemos inclusive nos indagar se a função destes a quem dirigimos nosso amor não é precisamente delimitar aqueles a quem podemos dirigir o que mais profundamente nos move na relação com o outro: o ódio.

Também não se pode desconsiderar sua menção à possibilidade de civilizarmos um quantum da pulsão de destruição, por meio do contato com a pulsão sexual. Uma destas maneiras se daria, por exemplo, ao nos identificarmos com quem age violentamente, porque assim não precisamos atuar nosso desejo. De qualquer modo, mesmo quando fornecemos procurações ao outro para ser mal em nosso nome, há sempre um resto. Não há como se deixar de desejar o mal pelo fato de que não se agiu maldosamente. E este resto faz com que, quando nos satisfazemos com algo, não é apenas de satisfação sexual que se trata. Em resumo: a violência satisfaz-nos direta e indiretamente. Ela nos move pelo bem e pelo mal.

Em sua definição de pulsão de morte, Lacan (1932, p.385) ilustra seu funcionamento justamente por meio de um crime; logo, parece indicar que é um tema interessante ao Direito. Além disto, sinaliza para algo que a partir de agora será fundamental neste escrito: a apropriação que o criminoso faz da convenção social de que, por alguma característica, deve ser reprovado.

“ela [a pulsão de morte] tem sempre a intencionalidade de um crime, quase constantemente a de uma vingança, frequentemente o sentido de uma punição, isto é, de uma sanção oriunda dos ideais sociais, muitas vezes, enfim, ela se identifica com  o ato da moralidade, tem o alcance de uma expiação (autopunição). As características objetivas do homicídio, sua eletividade quanto à vítima, sua eficácia assassina, seus modos de desencadeamento e de execução variam de modo contínuo com esses graus da significação humana da pulsão fundamental”

Parece que, para o autor, o funcionamento da pulsão de morte é essencialmente o da morte de si (por meio de sanções fundamentadas em ideais sociais, muitas vezes morais), ainda que manifestada, por exemplo, num homicídio.

Freud (1908, p.173) traz uma discussão fundamental que parece pertinente neste momento. Inicialmente, ele se refere ao “criminoso” não a partir de uma entidade intra, mas a partir de uma eleição social daquele que será rechaçado. Secundariamente, ele diz do aumento gradativo das renúncias a que temos sido submetidos.

“nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Além das exigências da vida, foram sem dúvida os sentimentos familiares derivados do erotismo que levaram o homem a fazer essa renúncia, que tem progressivamente aumentado com a evolução da civilização.

Cada nova conquista foi sancionada pela religião, cada renúncia do indivíduo à satisfação instintual foi oferecida à divindade como um sacrifício, e foi declarado santo o proveito assim obtido pela comunidade. Aquele que em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão do instinto, torna-se um criminoso (...) diante da sociedade”

O autor não chega a discorrer sobre, mas podemos nos perguntar se estas renúncias que aumentam gradativamente não são exigidas apenas de determinados sujeitos, e não de todos os humanos. Melhor dizendo: se não são exigidas justamente daqueles a quem se pretende chamar de criminoso. Por fim, podemos nos indagar se, portanto, alguns atos criminosos não são denúncias tanto de exigências descabidas, como da seletividade a quem recaem tais exigências.

Falemos agora, recorrendo à psicanálise inglesa, sobre o que ocorre com aqueles que atuam seus impulsos destrutivos, e não os contêm e transformam (por meio da sublimação) suficientemente, entendendo que o destaque que esta abordagem traz ao aspecto social envolvido no quadro de “tendência anti-social” pode contribuir com estas reflexões. A análise do que leva alguém a atuar aquilo que está em todos nós exige um apontamento dos aspectos ambientais envolvidos, se seguimos a ideia de que criminosos são produzidos socialmente.

Em contextos que polarizam o mundo entre bons e maus, vítimas e algozes, há uma dificuldade em se reconhecer possuído pelo mal. Há uma rotina de rituais para exorcizar o que se reprova em si, assim esperando que isso habite apenas o corpo alheio. Talvez o sistema judicial seja um destes contextos. E, portanto, talvez se beneficie com o que aqui se dirá.

A teoria winnicottiana sobre o desenvolvimento humano compreende que “a tolerância aos impulsos destrutivos resulta numa coisa nova: a capacidade de ter prazer em idéias, mesmo que sejam idéias destrutivas, e as excitações corporais a elas correspondentes, ou às quais elas correspondem. Tal desenvolvimento dá espaço para a experiência da preocupação, que em última análise é a base de tudo aquilo que for construtivo” (Winnicott, 1989, p.68). Portanto, primeiramente o sujeito precisa contactar sua dificuldade em suportar o outro em ideias para que não atue esta dificuldade. Abrigando em si tal dificuldade, ele pode dirigir ao outro outros impulsos: os amorosos.

Se há uma negação do mal que há em si e uma pretensão de exterminá-lo, não é possível integrá-lo com os impulsos amorosos. Daí resultam práticas de amor não-autênticas, porque idealizadas e dirigidas apenas a quem não mobiliza o ódio (logo, ao igual...ao que é espelho do sujeito).

A seguinte passagem permitirá que se perceba claramente o papel do ambiente neste processo:

“integrar seus impulsos destrutivos com os amorosos, e o resultado, quando tudo corre bem, é que a criança reconhece a realidade das idéias destrutivas que são inerentes, na vida, ao viver e ao amor, e encontra modos e maneiras de proteger de si mesma pessoas e objetos valorizados. Na verdade, a criança organiza sua vida de modo construtivo, a fim de não se sentir muito mal em relação à destrutividade real que passa por sua mente. Para adquirir isto em seu desenvolvimento, a criança requer, de modo absoluto, um ambiente que seja indestrutível em certos aspectos essenciais” (Winnicott, 1989, p.74)

Percebamos que o autor fala da importância de não reprovarmos nossos desejos destrutivos, e que isto só se dará se o ambiente não nos fizer sentirmos culpados por eles. Este ambiente é, em poucas palavras, um ambiente que nos autoriza a desejarmos o mal, ainda que inscreva os limites para que atuemos tal desejo. O sujeito suportará a frustração inerente à civilização se não for submetido a reprovações pautadas em noções idealizadas, que fazem com que ele seja reprovado pelo que é. Só assim é que talvez consigamos ser bons. “a aprendizagem da vida (...) se iniciará (...) pela possibilidade de sofrer frustrações e de exprimir culpa de outro modo que não através de atuações” (Olievenstein, 1983, pp.35-36).

Winnicott (1987, p.358) vai além, abordando a crença construída pelo próprio sujeito, em resposta ao ambiente que não acolhe seus impulsos destrutivos, de que ele é incapaz de lidar com eles de outra maneira que não atuando. Parece paradoxal, mas o sujeito é sentenciado a cometer maldades quando é condenado por desejar o mal.

“quando saudável, o bebê pode sustentar a culpa e, desta forma, com a ajuda de uma mãe pessoal e viva (que personifica um fator temporal), é capaz de descobrir seu próprio ímpeto pessoal de dar, construir e reparar. Desse modo, grande parte da agressão se transforma em funções sociais (...). Em tempos de desespero (quando não se acha ninguém que aceite um presente, ou que reconheça o esforço feito para reparar), esta transformação se desfaz e a agressão reaparece” 

Não há como lidar com a culpa por ser quem se é, e o sujeito se entende impossibilitado de reparar...de mudar. Caso fosse reprovado pelo que faz, talvez acreditasse que é possível reparar por meio de outros atos. Mas se percebe que é reprovado pelo que é, a única alternativa seria passar a ser quem não é.

Talvez seja esta impossibilidade de suportar o que há de mal em si que inclusive leve o sujeito ao que Winnicott (1987, p.131) denomina como tendência anti-social. Neste processo há uma “perda de esperança por causa da morte do objeto interno ou versão introjetada do objeto externo que se perdeu. Pode-se discutir ainda a importância relativa da morte do objeto interno através da raiva e do contato de ‘objetos bons’ com produtos do ódio no interior da psique, e a maturidade ou imaturidade do ego na medida em que isso afeta a capacidade para manter viva uma lembrança”.

O que é característico na tendência anti-social é precisamente a criança imputar a si a responsabilidade pela perda do objeto, porque confunde desejo com atuação. Parece, portanto, que a crença que o sujeito constrói de que sua maldade é indesejada acarreta, ainda que paradoxalmente, a ele responder deste lugar: do daquele que só é habitado por maldade, e daquele que a atua (porque não pode desejá-la).

Winnicott (1987, pp.93-94) explica inclusive a dinâmica em que uma intervenção concreta da lei é cronicamente buscada a partir de menções à tendência anti-social.

“deve odiar uma parte de si mesmo, a menos que possa encontrar alguém fora de si mesmo para frustrá-lo e que suporte ser odiado (...).(...) quando as forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e uma das coisas que ele faz é pôr para fora o seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma autoridade externa. O controle pode ser estabelecido desse modo, na fantasia dramatizada, sem sufocação séria dos instintos, ao passo que o controle interno necessitaria ser geralmente aplicado e resultaria num estado de coisas conhecido clinicamente como depressão”

Portanto, a busca da lei por parte destes sujeitos é inerente à organização que fizeram de seus psiquismos, em resposta ao tratamento que o ambiente despendeu a sua destrutividade. Como se procurassem uma reprovação externa para não se aniquilarem com sua auto-reprovação. Daí ser extremamente ineficaz, e até iatrogênico, um sistema judicial que não suporta aquilo com que trabalha: a insuportabilidade de viver com o outro.

Interessante é também pensar que esta busca pela repressão pelo sistema judicial (essa atuação de seu desejo pelo mal) dá-se justamente em resposta a um sentimento de esperança. Melhor dizendo, quando o sujeito põe em dúvida sua auto-reprovação mortificante, desenvolvida em resposta a um ambiente que não suportou que ele desejasse o mal. Portanto, é aliás um movimento saudável.

Para Winnicott (1987, p.131), “quando existe uma tendência anti-social, houve um verdadeiro desapossamento (não uma simples carência); quer dizer, houve perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência”. É necessário aqui lembrar que a perda deste objeto bom pode se dar de inúmeras formas, mas que o que há de fundamental é que o sujeito considera-se responsável por isto. E se culpa por imaginar que seus desejos agressivos destruíram o objeto amado, e/ou que tais desejos tornam o sujeito não-amável.

A tendência anti-social se manifestaria precisamente quando o sujeito vivencia a perspectiva de reaver a companhia deste objeto bom.

“uma criança que tenha sido submetida a tal privação sofreu inicialmente uma ansiedade impensável, e então reorganizou-se gradualmente, até atingir um estado razoavelmente neutro: fica concordando com tudo, pelo fato de que uma criança não pode fazer nada mais além de concordar (...). Então, por uma razão ou outra, começa a surgir a esperança: isso significa que a criança, sem ter a menor consciência do que está ocorrendo, começa a sentir um impulso de voltar para antes do momento da privação, e assim desfazer o medo da ansiedade impensável ou da confusão que existiam antes que se organizasse o estado neutro (...). Toda vez que as condições fornecem um certo grau de novas esperanças, então a tendência anti-social transforma-se numa característica clínica” (Winnicott, 1989, p.73).

Dizendo melhor, a tendência anti-social dar-se-ia quando o sujeito questiona sua participação na perda deste objeto bom. Quando questiona se foi de fato o (único)responsável por sua perda e se ele é não-amável. Talvez espere escutar isto do sistema judicial, e isto poderia se dar precisamente se os sujeitos fossem julgados pelos seus atos, e não pelo que são. E, assim sendo, se o mundo interno (das partes e dos operadores do Direito) e externo fossem aceitos como não apartados entre bom e mau.


Notas e Referências:

Freud, S. (1908) A moral sexual civilizada. In: _____Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Fuerstenthal, L. Herança além da genética. Revista Viver Psicologia, São Paulo, n.91/7, p.06-08, ago., 2000.

Koltai, C. Os limites da segregação. Revista Insight, São Paulo, n.112/10, p.13-7, nov., 2000.

Lacan, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1932.

Olievenstein, C. Destino do toxicômano. São Paulo: Almed, 1985.

Winnicott, D.W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

_____ Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Zizek, S. A fuga para o real. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 abr. 2001.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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