Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues
O desastre da Samarco (mineradora pertencente a duas gigantes da mineração mundial – a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton), como consequência do rompimento da barragem do Fundão, foi o maior desastre ambiental da história do País, um dos maiores desastres ambientais do mundo. O desastre de Mariana, como ficou conhecido, ocorreu em 5 de Novembro de 2015, resultando em uma onda de milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, matando 19 pessoas e causando um dano ambiental sem precedentes.
A barragem vazou rejeitos de minério, arrasou rios e nascentes, dizimou parte da flora e fauna por onde passou, destruiu casas, empresas, hotéis, patrimônios públicos e históricos e arruinou a economia da região, ao longo dos 680 quilômetros que percorreu de Bento Rodrigues, um pequeno distrito a 35 km de Mariana, em Minas Gerais, até chegar ao litoral do Espírito Santo. Neste ponto, a lama se espalhou, acabando com toda a vida marinha numa área de 40 quilômetros quadrados.
Já se passaram quase 5 anos e, para muitos dos atingidos pelo desastre, nada avançou na justiça brasileira até o momento.
Por este motivo as esperanças por justiça se voltam para a Inglaterra, onde a empresa anglo-australiana BHP Billiton, uma das controladoras da mineradora Samarco, é alvo de uma ação coletiva (class action) que clama pelo julgamento da empresa no Reino Unido por danos estimados em 5 bilhões de libras (cerca de R$ 30 bilhões) pelo desastre de Mariana.
Essa class action, que começa a ser julgada essa semana em Manchester, tem chance de se transformar no maior processo da história do Reino Unido em número de vítimas e o segundo maior em termos de valores.
A audiência inicial sobre o caso será conduzida ao longo de cerca de oito dias e servirá para determinar se o processo poderá ser julgado por um tribunal de Manchester, ou seja, a Corte britânica analisará se tem, ou não, jurisdição sobre o caso.
A class action foi movida na Corte britânica por mais de 200 mil pessoas - os atingidos pelo desastre - que incluem centenas de empresas, dezenas de Municípios, comunidades indígenas, comunidades ribeirinhas, de pescadores, entre outros, todas representadas por um escritório de advocacia internacional, que tentará provar que a BHP ignorou os alertas sobre a capacidade da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues e é responsável, direta e indiretamente, por atividades que resultaram em dano ambiental não apenas em razão de suas próprias atividades, mas também por controlar a entidade diretamente responsável pelo desastre, por supervisionar a atividade de terceiros que levaram ao desastre, por financiar as atividades que levaram ao desastre e, por fim, por se beneficiarem de todas essas atividades.
Entendem os propositores da ação, que a Corte britânica tem jurisdição sobre o caso e, portanto, que essa ação pode ser julgada na Inglaterra uma vez que existem precedentes nesse sentido pois a Corte inglesa já teria julgado ações semelhantes com casos ocorridos na África e na Ásia. Também atentam para o fato de que a empresa possui sede na Inglaterra e tem suas ações negociadas na bolsa de Londres[1].
Somados a esses fatos, ainda enfrenta-se o comportamento padrão de grandes empresas multinacionais em postergar o pagamento de indenizações, reparações e compensações dos estragos provocados, bem como a questão da lentidão da Justiça brasileira para entregar uma solução às vítimas, o que alimenta ainda mais a expectativa se fazer justiça através do processo na Justiça britânica.
Caso a decisão da Justiça britânica seja favorável às vítimas, pode se transformar em uma referência para a solução de conflitos no Brasil a partir de decisões em outros países. A hipótese de que casos ocorridos no Brasil sejam julgados por Cortes estrangeiras pode forçar as empresas multinacionais a adotar, nas subsidiárias no Brasil, práticas mais seguras de seus países de origem, passando a entender que não poderão ser negligentes apenas por estarem instaladas em países latino-americanos, por exemplo.
De outro lado, a defesa da empresa BHP sustenta que a ação não deve tramitar no Reino Unido, uma vez que tal decisão duplicaria procedimentos já em curso no Brasil e iria afetar o trabalho da Fundação Renova - entidade criada pela Samarco para gerenciar as operações de reparação e compensação causados pelo desastre[2].
O advogado da mineradora BHP, Charles Gibson, ao se manifestar sobre o assunto, chegou a tecer extensos elogios ao “sofisticado, cauteloso e justo sistema de justiça brasileiro”[3]. Discurso que provavelmente pretende repetir à Corte britânica para tentar barrar o processo naquela jurisdição.
Os próximos passos na Corte estrangeira, após ouvidas as partes e caso confirme sua competência para julgar o caso, será uma tentativa de acordo e, em não sendo possível, aí sim realizar-se-á o julgamento para apurar a responsabilidade e eventuais quantificações dos danos.
Ao observar um desastre de tamanha proporção como o de Mariana, nos deparamos com inúmeras violações de direitos humanos. A população de Bento Rodrigues, distrito que foi completamente coberto pela lama tóxica, bem como todas as populações de municípios atingidos pela lama, sofreram violações de diversas maneiras. Os moradores de Bento Rodrigues foram obrigados a deixar suas casas e seus pertences para que não morressem tomados pela lama tóxica, somadas às 19 mortes ocorridas tragicamente naquele dia. Além da população do distrito e de Mariana, a lama seguiu o curso do Rio Doce atingindo milhares de pessoas que, entre os problemas sofridos temos falta de água potável, inúmeras pessoas desabrigadas, inúmeros empregos perdidos, e danos psicológicos irreparáveis.
Destaca-se que, por ter seguido o curso do Rio Doce, a lama tóxica chegou ao Estado do Espírito Santo, atingindo populações ribeirinhas que viviam da pesca artesanal, prática tradicional secular que foi tirada da vida dessas pessoas de forma abrupta e dolorosa. As consequências ambientais são incalculáveis, com a morte de pelo menos 11 (onze) toneladas de peixes, e a interferência na dinâmica social daquela população é extremamente agressiva e pode significar a extinção de toda uma cultura cultivada na região.
Além da população ribeirinha, também merecem destaque as comunidades indígenas atingidas pela lama tóxica, que tiveram suas culturas extremamente afetadas. O Rio Doce, para os indígenas que vivem nas proximidades, é parte crucial da sua cultura e religião, pois é visto como ser sagrado que traz alimento e proteção. A subsistência desses povos foi severamente comprometida, visto que viviam da pesca e usavam a água do rio para irrigar as plantações. Além disso, há que se falar na ferida “espiritual” profunda para esses povos, cuja cultura está estreitamente vinculada ao rio, que utilizavam para as práticas espirituais. Para um povo indígena, com práticas culturais enraizadas e de extrema importância para a sua dinâmica social, o desastre representou uma mudança extremamente agressiva no modo de vida e no modo desses povos se relacionarem com a natureza.
As violações massivas de direitos humanos ocorridas no caso em tela não podem ficar impunes, e os responsáveis devem pagar pelos danos cometidos. Pensando no direito internacional puro e simples, as normas de direito internacional privado integram a ordem jurídica interna de cada país e devem ser aplicadas.
Desta maneira, quando falamos em precedente judicial, automaticamente falamos de estabilidade, segurança e igualdade aos jurisdicionados. Em casos como o desastre de Mariana em que, além dos danos materiais e morais sofridos pelas vítimas, existem massivas violações de direitos humanos, a existência de precedentes é fundamental, e um caso como esse, de tamanha notoriedade, é crucial para que haja mudanças efetivas na solução de conflitos desse tipo no país. A função de precedentes persuasivos ou interpretativos, que exercem influência sobre o julgamento de litígios futuros, e até mesmo no comportamento de sujeitos internacionais é certa.
Já se foram quase cinco anos desde que o desastre aconteceu, e a lentidão do judiciário brasileiro para que o caso seja resolvido, faz com que as vítimas vivam em constante estado de violação de direitos e a total sensação de impunidade e imunidade das grandes multinacionais envolvidas. É como se a liberdade da empresa privada fosse sagrada e lhe servisse de refúgio a todo e qualquer ato de risco impensado e cujos impactos não foram bem calculados.
É extremamente importante que haja a estruturação de fortes regramentos jurídicos e de sólidas instituições nacionais e internacionais capazes de controlar, fiscalizar, prevenir e punir graves danos aos direitos humanos provocados por empresas privadas. A ausência de regulamentação internacional abrangente traz muitas dificuldades à responsabilização dessas empresas, e o julgamento que acontece durante essa semana no Reino Unido, demonstra ser um pequeno passo em direção à elaboração de mecanismos concretos de proteção frente à atuação dessas empresas, principalmente no Brasil, trazendo formas concretas de proteção aos direitos humanos haja vista a formulação de precedentes que obrigam a adoção de práticas mais seguras no país e na américa latina em geral. Talvez seja o momento de então, finalmente, voltar nossas esperanças para a justiça estrangeira.
Notas e Referências
[1] Em relato publicado pelo advogado responsável pela ação na Corte inglesa, Tom Goodhead, em matéria veiculada em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/09/24/interna_gerais,991127/advogado-britanico-fala-ao-em-sobre-processo-pela-tragedia-de-mariana.shtml
[2] Segundo o que se vê em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/acao-coletiva-leva-bhp-aos-tribunais-ingleses-por-desastre-de-mariana.htm
[3] https://www.smh.com.au/world/south-america/bhp-labels-class-action-in-uk-over-brazil-dam-failure-pointless-20200723-p55erx.html
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