O caso Lucas e a agência do racismo à brasileira

09/02/2021

A opção de Lucas Penteado no Big Brother Brasil 21, programa da Tv Globo, foi de naturalizar e reproduzir sua profunda vivência negra militante dentro do jogo. Lucas imaginou que as câmeras o blindariam e que, por isso, ele poderia se colocar desarmado naquele campo desconhecido, minado.

O que viu? Vários parecidos com ele. Imaginou: não sou eu, somos nós. E aí chegou à primeira festa aquele homem: negro, militante, jovem, altivo, global... Mas que não era tão reconhecido e rico quanto os seus pares... não estaria no mesmo “patamar” que eles.

O “erro” de Lucas foi não respeitar ou considerar os egos alheios. Pessoas que, apesar de serem “como” ele, tinham chegado ali com trajetórias longas e prósperas diferentemente dele, e que exigiam, mesmo sem falar, que todos se prostrassem às realezas do sucesso dos streamings e likes, que tinham conseguido chegar ao topo da sociedade num dos Países mais racistas do mundo. Os negros do BBB só queriam ser idolatrados.

Esses negros ególatras viam Lucas como um menino e passaram a tratá-lo como tal. Como qualquer outra pessoa de cor, não estão imunes à reprodução da supremacia branca (nos termos de bell hooks), mas não o viam senão como um oponente menino. Dele, não esperavam nada senão idolatria, que ele os colocasse no pedestal que achavam fazer jus. Por outro lado, os não negros, estes sempre o viram como um... homem negro.

Esse cenário foi propício para legitimação de uma certa segregação inicial, que se explicitava desde um acaso na primeira festa quando a loira bonitona pareceu dar uma moral para o homem negro que no final não passava de uma brincadeira. Ele se abalou. Ele chorou. A principal razão? Ficou nítido para ele que ela sequer considerava aquele homem como um possível parceiro sexual, era apenas um menino negro.

bell hooks afirma que a hegemonia cultural branca ocidental coloca aos homens negros um papel.

O retrato da masculinidade negra que emerge dessas obras constrói os homens perpetuamente como “fracassados”, que são “fodidos” psicologicamente, perigosos, violentos, maníacos sexuais cuja insanidade é influenciada pela incapacidade de realizar seu destino masculino falocêntrico em um contexto racista (hooks, 2019, p. 174).

E foi justamente o que se viu nos próximos dias de BBB a partir das ações e reações dos outros jogadores em relação à Lucas. O menino, de repente, passou a ser humilhado. Fracassado pelo fora que a loira deu, o homem negro expôs seu trauma de rejeição e foi atacado psicologicamente até enquadrar-se (ou o terem enquadrado) como um homem perigoso e violento. Portas foram trancadas, facas foram escondidas, círculos de orações foram feitos. Lucas estava isolado!

Aquele menino, para uns, homem negro, para outros, tinha passado por cima das trajetórias vitoriosas e ricas de outros dos “seus” e, sem pedir permissão aos ególatras, se destacava num jogo de exibicionismo. Passava a tomar protagonismo. Passava a definir a narrativa daquela representação cultural que movimenta a maior fatia dos patrocínios da emissora anualmente. E, de repente, ele se mostrou muito ciente e consciente de tudo, elaborava o que estava a acontecer e fazia leituras raciais perspicazes sobre os acertos e erros.

Esperava aquilombamento, mas... era um jogo. E como um jogo, aqueles de quem esperou irmandade, mostraram-se seus concorrentes. E na disputa pela vitória, articularam-se contra ele.

Essa articulação, calculista, teve uma cabeça pensante que foi organizando a estratégia pessoa por pessoa. Colocou-se na posição de justiceira, tomou para si o “conflito”, engrossou qualquer caldo que se despejasse para macular a imagem do seu oponente, juntou jogadores e jogadoras para um levante psíquico contra ele e se coroou a si mesma como a grande inimiga. Agora era ele contra ela. Agora era ele contra a casa. Ninguém segurava mamacita!

Mas essa movimentação, que seria natural em um jogo onde as cartas são pessoas e, portanto, as estratégias passam pelas sociabilidades, foi tomada pela crueldade.

As pessoas foram se tornando implacáveis. E nada mais que o oponente fizesse parecia ser suficiente para fazê-lo reagir. Seja o menino seja o homem negro. Esperavam apenas o momento para a tacada final.

Lucas, guerreiro, não se entregou. Buscou novos aliados, aquilombou-se com os excluídos e um pouco sensatos e reergueu-se. Num jogo de vivência, voltou a ter coragem de se colocar altivo e protagonista da sua vida, como o é. Mas mais uma vez não pediu permissão e não deu atenção às possíveis consequências. Mais uma vez foi atacado. Porque o que para ele era esperança, consolo, afeto e desejo, para seus oponentes era mais uma invertida no jogo.

A crueldade foi acionada mais uma vez e o grupo tornou a se colocar contra ele. O problema não era, portanto, a possibilidade de troca afetiva com uma mulher branca, agora também passara a ser a ação efetiva e afetiva com um homem. Outro homem negro. E agora?

Aí Lucas finalmente foi sucumbido.

Com a pressão dos outros por um motivo que não necessariamente lhe vinculava a parceiras ou parceiros, mas a si mesmo. Sua negritude! Vivenciada diferentemente das demais. Chocou-se raça, classe e ego e da fusão sempre psicanalítica, diria Fanon, que acontece na relação entre duas (ou mais) pessoas de cor que têm consciência disso e que chegaram ao topo numa sociedade que nunca os acolheu, houve uma explosão de traumas. Traumas que degeneraram o menino e, principalmente, o homem negro. Perdeu Lucas. Perdeu o Big Brother. Perdemos todos nós.

E o que sobrou? Aquilo que Fanon já dizia desde 1952, quando sistematizou a psicanálise racial em Pele Negras Máscaras Brancas, um trecho dito por ele, mas que poderia ter sido dito por Lucas Penteado:

Como assim? No momento em que eu esquecia, perdoava e desejava apenas amar, devolviam-me, como uma bofetada em pleno rosto, minha mensagem! O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse (Fanon, 2008, p. 107).

Lucas se recusou a se encolher e, para o seu bem, optou por deixar de continuar a ser massacrado. A disputa por um milhão e meio se tornou um show de horror!

 

Notas e Referências

bell hooks. Olhares negros: raça e representação. São Paulo. Ed. Elefante, 2019.

Frantz Fanon. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador. EdUfba, 2008.

 

Foto: Globoplay/Globo

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