O CASO KALINKA BAMBERSKI: QUANDO A VIDA REAL PARECE FICÇÃO

23/08/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

A coluna de hoje trata de um caso que nos impressionou. Fazíamos uma disciplina no nosso Doutorado quando nos deparamos com a análise do episódio relativo à morte da jovem Kalinka Bamberski. Em um primeiro momento, pensamos que não se tratava de uma história verdadeira. Todavia, uma vez informados da veracidade dos fatos, fomos investigar os seus detalhes. A história (real, não custa lembrar) é a seguinte.

Na manhã do dia 10 de julho de 1982, a vítima Kalinka Bamberski foi encontrada morta na casa em que passava as suas férias com a sua mãe, Danièle Gonnin, e com seu padrasto, Dieter Krombach. Iniciaram-se as investigações buscando esclarecer a causa da morte da vítima e a autoria do homicídio, o que resultou em uma sequência de julgamentos nos dois países envolvidos, quais sejam, Alemanha e França, e também no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

A vítima Kalinka Bamberski era filha de André Bamberski e Danièle Gonnin e tinha 14 anos quando foi morta. Ela era uma adolescente feliz e extremamente ativa, que se dedicava ao esqui, ao surf e à patinação no gelo, personificando a vitalidade juvenil com um sorriso largo, grandes olhos azuis e um longo cabelo loiro.

O pai da vítima, André Bamberski, quando foi informado sobre o ocorrido, morava na França, não tendo, em um primeiro momento, maiores notícias sobre a morte da sua filha, já que esta ocorreu na Alemanha.

A mãe da vítima, Danièle Gonnin, vivia com André Bamberski e seus dois filhos, dentre eles a vítima Kalinka Bamberski, na década de 1970, em Casablanca, Marrocos, período em que teve um caso amoroso secreto com Dieter Krombach.

O principal personagem deste caso é Dieter Krombach, o qual tinha 47 anos à época da morte da vítima Kalinka Bamberski, Ele era médico, tendo trabalhado no consulado alemão, e teve dois casamentos antes de envolver-se com a mãe da vítima.

Na década de 1970, os pais da vítima Kalinka Bamberski, ou seja, André Bamberski e Danièle Gonnin, mantinham relação de amizade com Dieter Krombach e sua segunda esposa, época em que a mãe da vítima e o futuro responsável por sua morte iniciaram um romance secreto. O romance acabou ensejando as separações de ambos os casais mencionados, sendo certo que Danièle Gonnin e Dieter Krombach abandonaram os seus respectivos cônjuges e se casaram em 1977.

Uma vez casados, eles mudaram-se para a Alemanha, tendo Danièle Gonnin permanecido com os dois filhos que teve com André Bamberski, razão pela qual Dieter Krombach passou a ter intenso relacionamento com a vítima Kalinka Bamberski.

Eis os principais personagens do caso: Kalinka Bamberski (vítima), André Bamberski (pai da vítima), Danièle Gonnin (mãe da vítima) e Dieter Krombach (padrasto e assassino da vítima).

Iniciadas as investigações buscando esclarecer as circunstâncias da morte de Kalinka Bamberski, o próprio Dieter Krombach apresentou diversas versões sobre o ocorrido. Mas, na autópsia realizada dois dias após a morte da jovem, não se conseguiu definir a causa da morte, sendo identificadas as seguintes características: conteúdo gástrico aspirado nas vias aéreas e nos pulmões, conteúdo não digerido no estômago, várias marcas de injeção, um rasgo vaginal superficial, manchas frescas de sangue ao redor dos genitais e uma substância esbranquiçada na vagina.

Mesmo diante de tais circunstâncias – as diversas versões do padrasto da vítima e as características reveladas na autópsia –, o Ministério Público alemão deixou de deflagrar o processo criminal em face de Dieter Krombach, o que gerou a revolta do pai da vítima, André Bamberski.

André Bamberski, convencido da culpa de Dieter Krombach, passou a distribuir panfletos, acusando-o pela prática dos crimes de homicídio e de estupro, e contratou um renomado advogado objetivando levar aquele que supunha ser o matador de sua filha a julgamento.

Mesmo diante da obstinação do pai da vítima Kalinka Bamberski, ele não conseguiu ver processado Dieter Krombach na Alemanha, tendo o caso sido levado a um tribunal superior alemão, o qual concluiu, em julgamento realizado em 1987, que não havia provas suficientes para demonstrar que Dieter Krombach teria causado a morte da vítima.

O inconformismo de André Bamberski ensejou a exumação do corpo da vítima, a qual revelou novos esclarecimentos e provocou o primeiro julgamento realizado na França, à revelia do acusado, o qual acabou condenado à pena de 15 anos de prisão.

Todavia, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em 2001, anulou a condenação imposta na França a Dieter Krombach, sob o argumento de que ele, em razão da revelia, não conseguiu se defender.

Diante do fundamento da anulação, André Bamberski tentou a extradição de Dieter Kromback da Alemanha para a França, a fim de que ele fosse novamente julgado, participando do processo e exercendo a sua defesa, evitando-se outra anulação. Mas a extradição foi negada por um tribunal alemão, em 2004, sob o argumento de que o caso havia sido encerrado com a anulação da condenação. 

Portanto, a situação que se apresentava era realmente inusitada: existiam provas para condenar o réu, mas não existia um mecanismo através do qual se pudesse obrigá-lo a ser submetido ao julgamento.

Uma vez que o crime ocorreu em 1982, o prazo prescricional a ser observado era de 30 anos, o que significava dizer que, mantida aquela situação, Dieter Krombach estaria livre de qualquer punição em 2012.

Inconformado, André Bamberski adotou uma providência inesperada: contratou vários homens para sequestrar Dieter Krombach e levá-lo para a França, a fim de entregá-lo às autoridades francesas para que fosse submetido a novo julgamento.

Nesse contexto, 27 anos após a morte de Kalinka Bamberski, no dia 17 de outubro de 2009, Dieter Krombach, então com 74 anos, foi espancado, sequestrado e levado para a França, sofrendo, inclusive, uma fratura no crânio e sendo acorrentado próximo a uma delegacia.

A suspeita do sequestro de Dieter Krombach recaiu em André Bamberski, o qual foi surpreendido com 19.000 euros, com os quais pretendia pagar aos sequestradores pelo serviço executado a seu mando, tendo o mesmo sido preso e, depois, libertado sob fiança.

Isso gerou certa tensão entre os países envolvidos porque a Alemanha exigiu o retorno de Dieter Krombach e a extradição de André Bamberski e dos executores do sequestro, o que foi negado pela França.

Assim, Dieter Krombach foi submetido a novo julgamento, agora com a sua presença, afastando-se a possibilidade de ser, novamente, questionada a validade do julgamento. Ele acabou novamente sendo condenado pela justiça francesa à pena de 15 anos de prisão, a exemplo do que ocorreu na sua primeira condenação.

A sentença condenatória, acompanhada pela imprensa mundial, proferida no dia 22 de outubro de 2011, acolheu a tese do Ministério Público, segundo a qual ele havia drogado a vítima com o objetivo de estuprá-la no dia dos fatos. A condenação foi mantida pela segunda instância e também pelo Tribunal de Cassação.

Posteriormente, o caso foi levado, agora pela segunda vez, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, alegando-se, em favor de Dieter Krombach, o fato de ele ter sido julgado por duas vezes pelos mesmos fatos.

Contudo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, desta vez, manteve a condenação do Tribunal de Cassação francês, destacando que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos não impede os julgamentos independentes realizados na Alemanha e na França.

Portanto, em julgamento realizado no mês de março de 2018, Dieter Krombach acabou condenado, de maneira definitiva, por causar danos corporais intencionais que resultaram na morte não intencional de Kalinka Bamberski, sendo a pena fixada em 15 anos de prisão.

Por força da incrível obstinação do pai da vítima, André Bamberski, que chegou a encomendar o sequestro de Dieter Krombach, a fim de que ele fosse julgado, o réu acabou definitivamente condenado pela morte da jovem Kalinka Bamberski. A repercussão desse caso foi internacional, tendo o mesmo, inclusive, gerado um filme imperdível[1].

 

Notas e Referências 

[1] O filme francês Kalinka – Au nom de ma fille, dirigido por Vicent Garenq, teve estreia mundial no dia 14 de fevereiro de 2016.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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