O caso Fabíola e a violação do direito constitucional à intimidade – Reflexões sobre a moralidade coletiva

23/12/2015

Por Ivana Leite Ruiz - 23/12/2015

A Constituição da República, no Título dedicado aos Direitos e Garantias Fundamentais, entre os incisos do decantado artigo 5º, proclama:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Não foi isso que nós testemunhamos no caso da até então desconhecida Fabíola que viralizou na internet na última semana, tendo sido objeto, inclusive de matéria “jornalística” do programa Cidade Alerta, com direito ao uso de expressões e insinuações pejorativas sobre o flagra do relacionamento extraconjugal daquela com o melhor amigo (Léo) do seu marido (Kadú).

Pois bem. Após o vídeo cair na rede mundial o que se viu foi um show de horrores envolvendo a intimidade dos três envolvidos, sendo a mais atingida, obviamente, Fabíola.

Muito se falou sobre a reprovável conduta do casal flagrado, por serem ambos casados, além do laço da amizade entre os varões, mas nada ou pouco se disse a respeito da violação à intimidade do casal envolvido escândalo, direito esse que é protegido pela Constituição da República e não poderia sucumbir diante da ira do marido de Fabíola e do sarcasmo exibicionista do amigo que o acompanhou na empreitada, fazendo questão de filmar o flagra e instigar a fúria de Kadú.

O episódio faz lembrar a passagem do texto bíblico contada no Capítulo 8 de João, verbis:

“3 Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério. Fizeram-na ficar em pé diante de todos

4 e disseram a Jesus: "Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério.

5 Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. E o senhor, que diz?"

6 Eles estavam usando essa pergunta como armadilha, a fim de terem uma base para acusá-lo. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo.

7 Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: "Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela".

8 Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão.

9 Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando pelos mais velhos. Jesus ficou só, com a mulher em pé diante dele.

10 Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe: "Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?"

11 "Ninguém, Senhor", disse ela. Declarou Jesus: "Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado".’

A “moralidade” coletiva está mais preocupada em se deliciar com os dramas alheios como se tudo não passasse de um reality show, como se em tempos de redes sociais, smartphones e tablets tudo fosse permitido, menos respeitar a intimidade e a dignidade que todo indivíduo traz ínsita em sua natureza.

Essa mesma “moralidade” coloca-se na posição de juiz e advogado de todos os envolvidos. É mais fácil julgar e condenar a mulher no vídeo do que se envergonhar pela exposição que o marido provocou de um drama familiar que é só deles, não competindo à sociedade puni-los ou perdoá-los, pois cabe a eles resolverem suas questões íntimas e familiares.

Com mais esse episódio entre tantos disponibilizados no You Tube e outras mídias, a vida das pessoas passou a ser um grande Big Brother Brasil, sem créditos ou patrocinadores, mas que gera um lucro para quem a exibe em prejuízo de quem é levianamente exposto, sem qualquer autorização sua para tanto.

Já nos esquecemos que a Princesa Diana e seu namorado Dodi Al-Fayed foram mortos em um acidente de carro, cercados por paparazzi inconsequentes que, desrespeitando seu direito à privacidade a perseguiam em busca que qualquer imagem que pudesse lhes render dinheiro e um “furo jornalístico”.

A vida privada de Fabíola, certa ou errada sua conduta, não importa, não merece tamanha exposição, e decerto já causou danos morais e até materiais passíveis de serem reclamados nas barras da Justiça, por força do que dispõe o Código Civil, o qual acompanha a garantia constitucional dizendo:

“Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”

Faculta-se uma tutela inibitória à disposição de pessoas como Fabíola que se sentindo aviltados por tamanha superexposição podem pedir ao Poder Judiciário que faça cessar a exibição do vídeo na internet. Foi o que fez, por exemplo, a apresentadora Daniela Cicarelli e o ex-namorado Renato Malzoni Filho, filmados em cenas íntimas em uma praia da Espanha, em 2006. A Justiça paulista determinou à Google que retirasse as postagens relacionadas ao vídeo, sob pena de multa diária. O STJ confirmou o pagamento da multa pelos dias de descumprimento, fixando-a em R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil) para cada autor.

Ainda na esteira do mesmo código, traga-se à baila:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. ” 

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” 

A Lei 12.965/14, conhecida como o Marco Civil da Internet, também reconhece a mesma garantia, como não poderia deixar de ser, uma vez que o berço da norma é a Constituição: 

“Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Reconhecendo que o direito à privacidade de Fabíola fora violado, conclui-se facilmente que se trata de ilícito passível de reparação civil, mormente moral, à luz clarividente do direito pátrio.

Por fim, mas não menos importante, o Pacto de San José da Costa Rica datado de 22.11.1969, ratificada pelo Brasil em 25.09.1992, garante, há muito, suis verbis:

“Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade

1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”

Saltam aos olhos as expressões, “toda pessoa”, “ninguém”, de molde a não pairar dúvidas que a norma não escolhe a quem proteger. Entender-se de modo diferente é contrariar-se toda a ciência jurídica, que luta a séculos para tornar as sociedades mais civilizadas.

Portanto, não restam dúvidas que a sociedade caminha em direção a um grande retrocesso a continuar permitindo e proporcionando a superexposição da privacidade de pessoas comuns, violando garantias constitucionais e infraconstitucionais expressas.


Ivana Leite Ruiz

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Ivana da Cunha Leite Ruiz é Advogada Pós-Graduada em Direito Civil e Processual Civil, com bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com Licenciatura Plena em Letras (Língua Inglesa). .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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