O caso do furto de veículos nos campi das universidades públicas

10/08/2015

Por Andrey Lucas Macedo Corrêa, Moacir Henrique Júnior e Laura Lemos e Silva - 10/08/2015

“Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de ser feito” Albert Camus

Tomando como plano de fundo a citação alhures, o presente texto buscará reflexionar acerca da responsabilidade das universidades públicas pelos furtos de veículos ocorridos no interior destas. Há mais de uma década o debate sobre os furtos de veículos nos campi das universidades públicas gera conflito nos tribunais brasileiros. Até 2006 o entendimento majoritário apontava no sentido da responsabilidade das Universidades Públicas nessas demandas, entendendo que, se a universidade apresenta serviço de segurança ostensiva, muros e câmeras ela assume o dever de cuidado frente aos veículos estacionados e suas dependências. Naquele momento a jurisprudência minoritária igualava o estacionamento das universidades como sendo uma via pública, tendo em vista seu caráter gratuito[1] e de livre circulação. Conforme Recurso Especial abaixo, o Superior Tribunal de Justiça apontava para a responsabilidade subjetiva[2] do ente público nesses casos:

O Poder Público deve assumir a guarda e responsabilidade do veículo quando este ingressa em área de estacionamento pertencente a estabelecimento público. (RESP 200302178133, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJ DATA:28/06/2004 PG:00293 REVFOR VOL.:00377 PG:00329 ..DTPB:.)

Esse entendimento do STJ prosperou até 2009 quando a própria corte, por meio do Recurso Especial 1081532/SC que teve como relator o Ministro Luiz Fux, sedimenta a questão sob uma nova dimensão, exigindo a existência de serviço de vigilância específico para esse fim, qual seja, resguardar os veículos dos usuários dos campi das universidades públicas.

O Poder Público deve assumir a guarda e responsabilidade do veículo quando este ingressa em área de estacionamento pertencente a estabelecimento público, apenas, quando dotado de vigilância especializada para esse fim.

(REsp 1081532/SC, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/03/2009, DJe 30/03/2009)(grifei)

Diante dessa nova jurisprudência, surge o debate sobre a natureza desse serviço de “vigilância especializada”, frente ao fato de que a maioria das universidades apresenta serviços de segurança terceirizados, não contando com os serviços públicos de segurança, apresentando, como regra geral, contratos de prestação de serviços que preveem a segurança ostensiva patrimonial apenas dos bens da universidade, eximindo-se de qualquer responsabilidade com relação aos bens dos usuários do serviço público. Sobre o tema a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU busca delimitar a jurisprudência do STJ, apresentando que a responsabilidade civil do ente público apenas se configura na existência de serviço de segurança destinado aos estacionamentos com objetivo específico de proteger o patrimônio dos usuários da universidade. A propósito cita-se o arresto assim vazado:

A universidade que disponibiliza área de estacionamento dotado de aparato de vigilância especificamente destinado a proteger os veículos estacionados passa a ter sobre eles o dever de guarda, ficando obrigada a tomar as cautelas necessárias para a segurança patrimonial. Nesse caso, o furto do veículo implica descumprimento do dever jurídico pré-existente, atraindo a responsabilidade civil da universidade por negligência. Em contrapartida, se não houver vigilância ostensiva, a universidade não pode ser culpada pelo furto ocorrido na área pública. (a) uniformizar o entendimento de que a responsabilidade civil da universidade pela guarda de veículos na área de estacionamento é subjetiva e depende da existência de aparato de vigilância para segurança do estacionamento (PEDILEF 00158127620074013200, JUIZ FEDERAL ROGÉRIO MOREIRA ALVES, TNU, DOU 25/05/2012.)

Dessa forma, a TNU restringe o entendimento do STJ, tornando todo o debate praticamente inócuo, visto a difícil possibilidade de que um ente público, especialmente as universidades, contratem serviços de segurança específicos para garantirem a segurança dos veículos dos seus usuários, tornando, em termos práticos, nula a responsabilidade da universidade nessas situações.

No entanto, apesar de a questão aparecer como pacífica nos tribunais pátrios, o caso merece uma análise mais ampla, sobretudo no contexto atual de escalada da violência dentro dos ambientes universitários[3], bem como o debate sobre a instalação da polícia militar dentro dos campi.

A realidade posta demonstra que, tratando-se de políticas de segurança pública, existe uma dimensão de “ausência” dentro do ambiente universitário (estatal). As universidades firmam contratos vultuosos com empresas de segurança que, em regra, apresentam em seus escopos vigilância ostensiva e armada[4], câmeras de vigilância, rondas etc, no entanto, toda essa logística está exclusivamente a serviço da “vigilância patrimonial dos bens da universidade”, não se responsabilizando com os bens dos usuários[5] da universidade pública, muito menos com a manutenção de sua integridade física. Em análise última, os bens da universidade pública pertencem e são direcionados à sociedade, infelizmente, em Pindorama[6], essa visão representa um enorme abismo, a expressão res publica nunca esteve tão separada.

Além disso, a maioria das universidades públicas optam (bem verdade que por grande esforço da comunidade universitária, não institucionalmente) por não contar com a polícia militar em suas dependências, certamente por considerar esta como um modelo arcaico e despreparado de política de segurança pública[7]. Isso foi refletido por pesquisa divulgada essa semana pelo Datafolha, em que 62% da população brasileira diz ter medo da polícia militar, mais um abismo entre o Estado e a Sociedade. Mas o que isso tem a ver com o furto de veículos nas universidades públicas? Tudo!

A universidade pública (que é uma dimensão estritamente estatal) volta sua estrutura para a contratação de empresas privadas de segurança, para resguardar, sob uma ótica totalmente patrimonialista[8], em detrimento (contratualmente expresso) à integridade física e patrimonial dos usuários da universidade, invertendo totalmente a lógica constitucional de construção de uma sociedade solidária. Por outro lado, a própria universidade reconhece o total despreparo da polícia militar como promotor de política de segurança pública. O que resta? Nada!

Para o usuário (cliente[9]?!?) da universidade, conceito que se expande a cada dia, não existe nem a proteção despreparada da polícia militar das ruas, nem a proteção pelos serviços de segurança da própria universidade. É a ausência total do Estado dentro de um ente Estatal. Volto à visão minoritária da jurisprudência sobre o furto de veículos nas universidades há 10 anos atrás, que igualava o estacionamento das universidades como sendo uma via pública, eximindo a universidade de responsabilidade. De fato, não pode ser equiparado a via pública, mas não por contar com muros, câmeras etc, mas sim por não garantir nenhuma dimensão de segurança pública aos usuários das universidades públicas.


Notas e Referências:

[1] Com relação às universidades privadas o entendimento dominante até hoje aponta existir a responsabilidade praticamente ilimitada das instituições privadas de ensino no caso de furto em suas dependências, independentemente da gratuidade do serviço de estacionamento e do controle de entrada de saída, vide: AGRESP 201100897722, SIDNEI BENETI, STJ - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:27/06/2011 RT VOL.:00911 PG:00557 ..DTPB:.

[2] Foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no RE 255731, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 09/11/1999, DJ 26-11-1999 PP-00135 EMENT VOL-01973-19 PP-04105.

[3] Busca-se afastar do discurso midiático do aumento exponencial da violência etc, no entanto, analisando de forma detida o caso em tela, entendo refletir nessa realidade o aumento não só da sensação de insegurança, mas também do volume de crimes cometidos nos ambientes universitários. Esse aumento, conforme reportagem da Folha de São Paulo em outubro de 2010 não retrocede com a presença da polícia militar dentro dos campi, revelando-se, desde já, essa alternativa como ineficaz na abordagem do problema. Diante disso, nos alinhamos no sentido da necessidade de existir um serviço público de segurança dentro da universidade (que proteja todas as dimensões, não só o patrimônio da universidade) e, paralelamente, que a universidade encabece o debate sobre um novo modelo de segurança pública, inclusive apresentando para a sociedade um modelo civil de segurança pública, tomando a universidade como exemplo.

[4] Debate para outro artigo a questão do despreparo dos profissionais dessas empresas, tudo consequência da lógica de mercantilização da segurança, tudo isso direcionado a processos licitatórios sem o menor embasamento nos debates de segurança pública e da violência como dimensão social.

[5] Quem em dimensão última representa toda a sociedade, frente à importância das universidades em diversas dimensões, especialmente no que tange a saúde, diante do enorme déficit do sistema público de saúde.

[6] Pedindo licença ao mestre Lênio Streck

[7] A polícia militar, ao seu passo, nas universidades federais, passou a não registrar boletins de ocorrência por incidentes dentro dos campi, sob o argumento de que a área, sendo federal, é de competência da polícia federal… é uma boa interpretação gramatical, mas a própria Constituição no §1 do artigo 144 dispõe que sua competência de atuação restringe-se aos interesses da União, autarquias etc…

[8] Que está longe de ser um ditame constitucional.

[9] Conforme reflexão proposta pelo advogado José Carlos Muniz Filho, que será aprofundada em outros textos.


andrey

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Andrey Lucas Macedo Corrêa cursa graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia com período sanduíche na Universidade de Coimbra em Portugal. É estagiário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e pesquisador-fundador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU coordenado pelo Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges.

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Laura Lemos

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Laura Lemos e Silva cursa graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. É pesquisadora do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU e bolsista de iniciação científica pelo CNPq, ambos sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges.

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Moacir

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Moacir Henrique Júnior é advogado e professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Faculdade Politécnica de Minas Gerais. Cursa o doutorado em Direito e Ciência Política pela Universidade de Barcelona. É pesquisador-fundador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU.

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Imagem Ilustrativa do Post: Smashy Smash // Foto de: Smashy Smash // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/bekathwia/2387168230

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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