O Caso da Vedação de Tatuagem em Concursos Públicos: entre conceitos interpretativos, legalidade e a neoaxiologização dos Editais – Por Leonel Pires Ohlweiler

01/09/2016

Conforme veiculado no site do Supremo Tribunal Federal, Notícias do STF, 17.08.2016, o Plenário julgou inconstitucional, por maioria, a proibição de tatuagens a candidatos a cargo público, conforme restrições contidas em leis e editais de concursos públicos. Em sede de repercussão geral houve o exame do Recurso Extraordinário nº 898450, decidindo-se também o caso concreto de um candidato ao cargo de soldado da Polícia Militar de São Paulo, eliminado por ter uma tatuagem na perna.

Em termos de resultado, não tenho dúvida sobre o acerto da decisão, retirando a possibilidade de a Administração Pública criar obstáculos incompatíveis com o sentido da Constituição Federal.

O problema é como se chegou à solução, bem como a referência do legítimo fundamento de requisitos de acesso aos cargos públicos.

O acórdão ainda não foi publicado, mas houve a disponibilização do voto proferido pelo Relator Ministro Luiz Fux, no qual fez extensa análise da matéria, questão controvertida e interessante. Igualmente está disponível no site do You Tube todo o julgamento realizado, inclusive com o voto divergente do Ministro Marco Aurélio e as propostas de adequação das teses da repercussão geral.

As Complexas Relações entre o Edital do Concurso Público e a Lei.

O primeiro ponto da polêmica reside na materialização do princípio da legalidade, previsto no artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, cujo conteúdo há muito é trabalhado pela doutrina e jurisprudência do STF. Em artigo publicado na RCHTD[1] já destaquei a necessidade de laborar com os princípios da Administração Pública a partir de determinada concepção hermenêutica, mas em especial, com o cuidado para não cair em algumas tentações da metafísica moderna, pois se configuram como a institucionalização daquilo que se deve fazer na gestão pública. De qualquer modo, na linha do entendimento de Lenio Luiz Streck, os princípios jurídicos possuem o condão de resgatar o mundo prático do direito e no direito, ou seja, colocar a interpretação no centro da problemática da aplicação jurídica[2], permitindo, no caso do Direito Administrativo, a discussão sobre decisões administrativas e o direito construído democraticamente. Materializar a legalidade, com efeito, relaciona-se com o diálogo com a consciência histórica, manifestada pela tradição da doutrina e da jurisprudência, pois não há um texto em si.

É claro que este não é o espaço para o profundo mergulho na questão, mas como o tema surgiu por ocasião do julgamento do RE 898450/SP destaca-se que a legalidade, considerando como horizonte de sentido o movimento revolucionário francês de 1789, apesar da dubiedade política de sua utilização, também se direcionou na sua gênese fenomenológica contra a estrutura política do Estado absoluto, no intuito de ultrapassar o poder pessoal e arbitrário, como menciona Eduardo Garcia de Enterría[3]. Trata-se de história institucional que não pode ser desconsiderada por ocasião da aplicação deste princípio. Em última análise, concorda-se que também há uma concepção de vida boa na institucionalização da legalidade, especialmente no processo de construção do Estado de Direito, com o objetivo de salvaguardar o cidadão contra arbitrariedades, como aduz Antônio Francisco de Souza[4]:

O princípio da legalidade tem o seu fundamento teórico na tradição da doutrina inglesa de luta contra a arbitrariedade do monarca absoluto, bem ilustrado na célebre frase de J.HARRINGTON(1611-1677, in: Oceana):government of laws, noto f men. Exigia se em primeiro lugar que o homem não dependesse do homem, mas apenas da lei impessoal. Na sua estabilidade, a lei opunha-se ao que a vontade individual tem de arbitrário. Contrapunha-se claramente o arbítrio, o capricho, as alterações de humor típicas do despotismo, à lei imparcial, impessoal, estável e equitativa.

O Julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo no Caso da Tatuagem.

A decisão que ensejou o julgamento do citado recurso extraordinário foi a Apelação nº 00456-15.2009.8.26.0053, TJSP, na qual se debateu a polêmica questão da exclusão do candidato em virtude de ostentar em sua perna direta tatuagem em desacordo com as normas do edital. Deve-se observar, desde o mandado de segurança impetrado, o candidato argumentou não haver violação da moral e dos bons costumes, sendo proferida sentença de concessão da ordem. No entanto, a decisão foi reformada pelo TJSP, centrando os fundamentos na circunstância de a tatuagem não atender os requisitos do edital, inviabilizando assim a caracterização de violação de direito líquido e certo.

Ora, não há dúvida sobre a relevância jurídica do edital de concurso público, mas, sob a perspectiva do artigo 37, “caput”, CF, é mero ato administrativo!

Consta de forma expressa no acórdão supra: “O edital é a lei do concurso, e deve ser obedecido. Ao inscrever-se no certame, o candidato tem plena ciência de suas regras, e as aceita incondicionalmente.” E mais: “Aquele que faz tatuagem tem ciência de que estará sujeito a este tipo de limitações. Não se olvide, ainda, que a disciplina militar engloba também – e principalmente – o respeito ás regras. Se pretender iniciar carreira questionando uma regra imposta a todos os que concorreram à vaga, já estará iniciando mal.”

O julgamento do mandado de segurança, no entanto, não foi unânime, com voto divergente, pois (a)a legislação que regula o referido concurso público não autoriza a limitação constante no edital, ofendendo-se de forma direta a reserva legal e (b)o ato administrativo é desarrazoado, ao excluir o candidato ao cargo de policial militar pelo simples fato de ter uma tatuagem que não prejudica o desempenho da atividade.

O Argumento de Violação do Princípio da Legalidade.

Como aludido, são complexas as relações entre a lei e o ato administrativo, via de regra, na dogmática jurídica, debatendo-se ora sob a perspectiva da não contrariedade, ora com foco na relação de conformidade.

O Ministro Luiz Fux, ao proferir seu voto, reafirmou a jurisprudência do STF de que qualquer restrição para o acesso a cargo público constante em editais de concurso depende da sua específica menção em lei formal, culminando com a formulação da tese: “Os requisitos do edital para o ingresso em cargo, emprego ou função pública devem ter por fundamento lei em sentido formal e material.”

Até este momento não haveria nenhum problema, mas quem assistiu o julgamento, com certeza, preocupou-se com o voto de divergência parcial, não concordando com a tese acima mencionada e propondo algo já referido em outros julgamentos “uma tese minimalista”!

Com tal minimalismo concluiu a possibilidade de o edital eventualmente concretizar valores constitucionais, não havendo necessidade de que as limitações de acesso aos cargos públicos constem expressamente em lei.

Considerando a legalidade, a partir do prisma da juridicidade, não há dúvida sobre a necessidade de o edital do concurso público concretizar a Constituição Federal, muito embora existam grandes problemas com relação aos denominados “valores constitucionais”. De qualquer modo, como restringir o acesso aos cargos públicos somente com base em ato administrativo?

Esse é um dos pontos que ainda ensejarão muitos debates no julgamento do RE 89450, especialmente pelo dever de integridade e coerência da decisão judicial com a Constituição Federal.

Valores Constitucionais podem Sustentar uma Repercussão Geral?

O segundo ponto reside na aceitação da tese final pelo plenário do STF, ao menos a partir do julgamento transmitido pela TV Justiça, e formulada nos seguintes termos: “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais, em razão de conteúdo que viole valores constitucionais.”

Elaborar um entendimento, a ser aplicado por todos os tribunais, com base em valores, configura campo aberto para a insegurança jurídica. Reconhece-se a complexidade de construir critérios gerais sobre o tema em debate, mas dai surgem perplexidades ocasionadas por erigir valores constitucionais como critérios para controlar as restrições dos editais de concurso público. Aliás, basta leitura do Capítulo V da obra de Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, sobre a denominada jurisprudência dos valores como tentativa de ultrapassar o paradigma positivista, para se constatar os graves problemas que a decisão do STF ensejará. Aduz o autor: “É manifesto que ao juiz não é possível em muitos casos fazer decorrer a decisão apenas da lei, nem sequer das valorações do legislador que lhe incumbe conhecer. Este é desde logo o caso em que a lei lança mão dos denominados conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais. Aqui apresenta-se somente um quadro muito geral que o juiz, no caso concreto, terá de preencher mediante uma valoração adicional.”[5]

São válidas, portanto, as críticas realizadas por Lenio Luiz Streck quando menciona os perigos da arbitrariedade de decisões com base em valores, além de descontextualizar a construção deste pensamento, compreendendo hodiernamente a Constituição como ordem concreta de valores[6]. Do conteúdo disponibilizado no próprio site do STF, verifica-se a contradição presente no julgado, pois se de um lado há grande preocupação com a exigência de os critérios de acesso aos cargos públicos estarem previstos na lei, não podendo o edital criá-los, como a proibição ilimitada de tatuagens. Agora, se observada a orientação do voto de parcial divergência, a situação é mais preocupante, considerando a referência expressa sobre a possibilidade de o edital concretizar valores constitucionais, sem a prévia exigência de texto legal.

A postura aqui adotada não se trata de oposição radical à tese dos valores, mas advertência! Não há a menor dúvida sobre a importância da força normativa da Constituição, mas igualmente deve ser compreendido como conquista do Estado Democrático de Direito, a regra expressa do artigo 37, inciso I, CF, segundo a qual os requisitos de acesso aso cargos públicos são aqueles previsto em lei. A proibição de conteúdos discriminatórios nos editais de concursos públicos deve ser assegurada respeitando a integridade e coerência do texto constitucional. Consta na fundamentação do voto proferido o seguinte: “Com efeito, tatuagens que representam, verbi gratia, obscenidades, ideologias terroristas, discriminatórias, que preguem a violência e a criminalidade, discriminação de raça, credo, sexo ou origem, temas inegavelmente contrários às instituições democráticas, podem obstaculizar o acesso a uma função pública e, eventual restrição nesse sentido, não se afigura desarrazoada ou desproporcional.”

Tais referências do julgamento do RE 898450 deveriam ser debatidas no diálogo com o texto constitucional, mas em outro plano jurídico, não a partir de valores, mas do conjunto de regras e princípios uma vez institucionalizados democraticamente pela comunidade política. Caso contrário, corre-se o sério risco de resgatar vetustas discussões transfiguradas em neoaxiologização dos editais de concursos públicos.


Notas e Referências:

GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. Curso de Derecho Administrativo II. 7ªed. Madrid: Civitas, 1995.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ªed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

OHLWEILER, Leonel Pires. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública e o Mundo Prático no Direito Administrativo, In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v.5, nº 2 (2013), p.150-168, São Leopoldo: Unisinos.

SOUSA, Antônio Francisco. Fundamentos Históricos de Direito Administrativo. Lisboa: Editora i, 1995.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursiva. São Paulo: Saraiva, 2012.

[1] OHLWEILER, Leonel Pires. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública e o Mundo Prático no Direito Administrativo, In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v.5, nº 2 (2013), p.150-168, São Leopoldo: Unisinos.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012,  p. 46.

[3] GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. Curso de Derecho Administrativo II. 7ªed. Madrid: Civitas, p. 21, 1995.

[4] SOUSA, Antônio Francisco. Fundamentos Históricos de Direito Administrativo. Lisboa: Editora i, p.159, 1995.

[5] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ªed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 140.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, p. 50.


 

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