O caso da faculdade com salas de aulas lotadas e o questionamento sobre os limites da atuação judicial

09/06/2015

Por Eduardo Januário Newton - 09/06/2015

No dia 05 de junho de 2015, o sítio eletrônico Consultor Jurídico (clique aqui) noticiou decisão proferida pela justiça comum do estado do Rio Grande do Sul, que limitava o número de alunos nas salas de aula de determinada faculdade.

Eis a manchete da notícia:

Faculdade só pode ter até 50 alunos em salas de aulas de Direito”

Em razão de a petição inicial e a decisão liminar terem sido disponibilizadas na rede mundial de computadores, alguns apontamentos críticos podem ser apresentados neste texto, o que é feito nas linhas que se seguem.

A decisão se deu em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul em face de centro educacional localizado na cidade de Rio Grande. Segundo o narrado na petição inicial, no ano de 2010, um determinado estudante procurou o MP gaúcho e lá questionou o número excessivo de alunos em salas de aula. Após a realização de uma fase pré-processual, que foi materializada por meio do inquérito civil nº 000852.00046/2010 e perdurou por 5 (cinco) anos, foi, enfim, provocado o Poder Judiciário com o intuito de impedir com que o cenário de superlotação persistisse. A liminar foi deferida pelo juízo de direito da 3ª Vara Cível da comarca de Rio Grande, sendo relevante destacar o seguinte trecho:

Cuida-se, à vista disso, de medida necessária, adequada e razoável à luz do objetivo perseguido, atendendo-se ao postulado da proporcionalidade, pois quanto maior o número de alunos da sala da aula mais difícil é a transmissão do conteúdo didático de forma eficaz e o atendimento das demandas de questionamentos dos discentes. Presente, portanto, a verossimilhança da alegação do autor, no sentido de ser dever da ré a observância do limite máximo de 50 alunos por sala de aula. O perigo do dano irreparável ou de difícil reparação, por sua vez, também deve ser admitido como presente, pois a ré admitiu no curso do inquérito civil haver turmas que ultrapassam o número de 50 alunos (fl. 185, verso), o que demonstra a continuação do ilícito e autoriza a sua imediata interrupção por meio da tutela inibitória perseguida. Por tais motivos, viável o deferimento da tutela liminarmente formulada, a qual, todavia, há de ser implementada a partir do próximo semestre letivo (segundo semestre de 2015), tendo em vista a necessidade de organização estrutural, pela ré, a fim de viabilizar o regular cumprimento da determinação. 

Em razão do exposto, defiro a liminar postulada para o efeito de determinar à ré que limite em número de no máximo 50 (cinquenta) alunos por sala de aula no Curso de Bacharelado em Direito por ela ministrado, a partir do segundo semestre letivo de 2015, sob pena de incidência de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).”

Apresentado o cenário da análise, não se pode, desde o seu primeiro momento, deixar de questionar o fato de a ação civil pública ter demorado 5 (cinco) anos para ser ajuizada. Ora, o tempo que transcorreu entre a instauração do inquérito civil e o ajuizamento da demanda corresponde ao tempo mínimo necessário para a obtenção do grau de bacharel em direito. Provavelmente o aluno que decidiu procurar o Ministério Público concluiu o curso nas salas de aulas lotadas. Se a eficiência administrativa é um princípio constitucional, poderia ser perquirida a sua efetivação no caso em tela.

Além disso, que urgência é essa que aguardou 5 (cinco) anos para ser objeto da reprimenda judicial? E o pior: mesmo após o seu reconhecimento, foi concedido prazo para que o centro universitário se adeque. E como ficam os alunos matriculados no atual semestre? Roga-se pela compreensão e suportem, tal como os demais tiveram que tolerar nos últimos 10 semestres, pelo derradeiro período?

O caso em tela permite, também, realizar um outro questionamento: que espécie de jurista está sendo formado nas universidades brasileiras? Essa indagação necessita ser articulada com dois dados: o fato de o Brasil ser o campeão mundial dos cursos de direito e a concepção de cidadania hegemônica no país. Ora, se, de fato, havia superlotação das salas de aulas e isso era compreendido como um sério problema pelo corpo discente, por que somente ocorreu a provocação do Ministério Público? Até quando a cidadania brasileira necessitará da intermediação do Poder Público? Esse comportamento denota uma típica postura de delegação na solução dos problemas e, ainda, aponta para uma concepção passiva de cidadania.

Outros pontos relacionados ao questionamento judicial sobre as salas de aulas lotadas merecem ainda ser investigados neste texto.

A partir da leitura do contido na petição inicial, verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor é apontado como um dos fundamentos jurídicos que lastreiam a pretensão deduzida em juízo. Surge então uma oportuna indagação: o que significa utilizar o CDC na defesa dos interesses dos alunos? O fato de os universitários terem que recorrer ao sistema protetivo do consumidor, quando se deparam com situações lesivas, é extremamente grave e já ensejou uma análise em outro texto (clique aqui). Pode a educação ser vista como um produto qualquer? A resposta deveria ser negativa; porém, em um país com altíssimo número de faculdades de direito, a verdade é que os centros universitários são vistos como “meros fornecedores de serviços”. A ausência de uma disciplina própria para a matéria educacional, e não se está aqui a desconhecer ou negar a existência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, mas sim o vazio normativo existente, que acaba por justificar o recurso ao Código de Defesa do Consumidor. A educação não é, nem poderia ser compreendida como, um produto qualquer.

Aquilo que não foi questionado pelo Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul não pode ser ignorado, a ação civil pública se limitou a questionar o número de alunos em sala de aula. Contudo, em momento algum, foi apresentada uma possível censura à qualidade do ensino prestado. E esse foco na litigância não pode ser ignorado ainda mais quando se examina, por exemplo, o resultado no XII Exame de Ordem, que foi realizado no ano de 2014, e que contou com apenas um aprovado dentre os 32 inscritos que eram oriundos do centro educacional superlotado[1], isto é, a taxa de aprovação foi               de 3,13%.

Ao que parece, as instituições públicas envolvidas com o processo judicial em questão realizam um equivocado debate, qual seja, o que importa é número de alunos em uma sala de aula, e não a qualidade do ensino prestada.

Há de se trazer, ainda, ao debate o seguinte aspecto: o Ministério da Educação, ao autorizar o funcionamento da unidade universitária, fixou o número máximo de alunos em 50 por sala de aula. Indaga-se: qual seria a base científica ou pedagógica para essa limitação? Na decisão que concedeu a liminar, foi apontada para a dificuldade na “transmissão do conteúdo didático de forma eficaz e o atendimento das demandas de questionamentos dos discentes”. Ora, será que os alunos brasileiros são menos capacitados que outros discentes existentes no mundo? O consagrado professor de Harvard, Michael Sandel, ministra, por exemplo, um concorrido curso que supera, e em muito, o número de 50 alunos -  qualquer dúvida pode ser aferida nos vídeos disponibilizados na rede mundial[2] - e não se conhece qualquer crítica ao fato de o auditório se encontrar lotado.

Por meio de uma análise econômica da decisão judicial, pode-se deduzir que em razão da limitação de alunos por salas de aula, os custos das mensalidades serão elevados, uma vez que novos professores deverão ser contratados. Considerando a perversa lógica do sistema educacional superior brasileiro em que os mais necessitados são encaminhados para a rede particular, visualiza-se um verdadeiro desastre na forma como se realizou essa intervenção judicial.

Se não bastasse essa possibilidade de aumento do custo das mensalidades, o que, por si só, já é grave para os alunos, há de se relacionar ainda uma outra questão maior, qual seja, o manejo das instituições estatais como forma de transferir recursos públicos para o setor privado. Não se desconhece o fato de que o Estado brasileiro optou pela universalização do ensino superior por meio de um maciço incentivo da rede particular de ensino. A atuação de um órgão com assento constitucional, o Ministério Público, permite, assim, após a intervenção do Poder Judiciário, que mais recursos possam ser destinados para as universidades privadas. É, no mínimo, incoerente esse resultado em um momento em que são realizados, a título de ajuste fiscal, cortes nos orçamentos das universidades públicas. Não se está a questionar a existência de universidades particulares; porém, não deveria o Estado primar seus investimentos em pessoas que se pautam na visão mercantil e veem a educação como produto que pode representar um lucro.

Feitas essas considerações, não se desconhece o fato de o Direito Constitucional pátrio ter albergado uma visão ampla e irrestrita sobre o acesso à justiça, vide o disposto no artigo 5º, inciso XXXV, Constituição da República. Porém, a liberdade de litigar não se traduz, e de maneira automática, na capacidade de o Poder Judiciário intervir sempre nas relações jurídicas travadas na sociedade. O caso em tela demonstra perfeitamente isso. As questões mais importantes foram deixadas ao largo e, por meio de uma visão mercantil do ensino, se discutiu somente a quantidade de alunos em sala de aula, e não a qualidade do ensino jurídico. Essa forma de encarar a educação não pode ser tida como acidental. Por mais que se tenha transcorrido mais de 20 (vinte) anos do término do regime militar, ainda temos enorme dificuldade em vivenciar a experiência democrática e um modo de governar republicano. O acesso à educação de qualidade é ainda um privilégio. Trata-se de um bem que poderá ser fruído por poucos e para o restante da população que se aventurar a questionar o estado das artes resta tão-somente se conformar com um debate estéril e que poderá ainda representar a piora da sua situação. Por fim, não deveriam as instituições públicas, caso estivessem comprometidas com o Texto Constitucional, intervir e permitir um cenário de agravamento de recursos públicos para a rede privada. O caso em tela demonstra que este tipo de proteção, por mais paradoxal que possa parecer, na verdade, desprotege e pode se tornar prejudicial.


Notas e Referências:

[1] Dados obtidos no seguinte sítio eletrônico: http://noticias.terra.com.br/educacao/ranking-oab/

[2] https://www.youtube.com/watch?v=EC5rEhbH-fI


Eduardo Newton

Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010). e-mail: newton.eduardo@gmail.com                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  


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