O canto das sereias  

17/09/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Hodiernamente, vive-se em um mundo em que o mercado, o dinheiro e o hedonismo são venerados. A magia das estruturas elementares da sedução - como a bela retórica e a paciência -, foi paliativamente dissolvida, sentenciando à morte os grandes mitos e os autênticos prazeres da sedução.

Em tempos de hipermodernidade mercantil, Don Juan é derrotado, ultrapassado, eliminado. O antes tão admirado mito mais parece um sedutor artesanal e provinciano, comparado à força, à criatividade e ao apetite insaciável da atual sociedade de consumo. Quanto mais intensa a fome de aquisição, mais profundos os descontentamentos individuais. Quanto mais prometidos paraísos artificiais, mais o “nós” e o “viver” são asfixiados pelo “eu” e o “ter”. Nesse flerte com a ‘terra prometida’, consome-se mais, vive-se menos.

É no palco da insaciedade que a voracidade da sociedade de consumo se retroalimenta e a sedução mercantil constrói seu império, criando perpetuamente novas necessidades e condenando os indivíduos a viverem em um estado de frustração crônica e de satisfação sempre insatisfeita. Por isso, na sociedade de hiperconsumo, as insatisfações crescem mais depressa que as ofertas de felicidade.

A sedução é a força produtora de desejabilidade e para onde quer que se olhe, dos produtos comerciais à sociabilidade digital, das mídias à paquera, da estética corporal a design comercial, é perceptível a inflação e mercantilização das atividades de sedução, que se utiliza de rituais que são, antes de mais nada, instrumentos de estimulação de desejo no outro.

A partir desse universo imaginário, pseudonecessidades são criadas no intuito de despertar novos desejos e o consumidor é aliciado a pertencer a um mundo em que a felicidade é plenamente tangível. A sedução, municiada com promessa de prazeres jamais experimentados, potencializa a força de convencimento na busca pela sonhada felicidade e, nesse processo de hipnose, a publicidade assume certo protagonismo e implanta no imaginário social a ideia de que a aquisição de um produto ou contratação de um serviço é o passaporte para a mais genuína sensação de felicidade.

Essa construção utópica de felicidade plena, financiada pelo mercado e comercializada pela publicidade, é propositalmente editada para tornar pública apenas as partes boas e dignas de despertar a cobiça nos consumidores. Corpos esculturais, peles joviais, cabelos brilhantes, dentes cintilantes, roupas sob medida, carros imponentes, aparelhos celulares de última geração, todos atributos associados a promoção de experiências sensoriais únicas e com alto potencial de despertar a mais intensa e duradoura sensação de prazer.

Na ambiciosa tarefa de criar desejos e necessidades nos consumidores, a publicidade atua de forma organizada e silenciosa para acionar o inconsciente das emoções e ofertar, acima de tudo, uma vida à prova de tristeza e frustrações, propositalmente maquiada com programas de fotoshop e filtros corretivos.

O fardo invisível da obrigação de buscar constantemente a felicidade convencionada pela publicidade, induz os consumidores a interagirem no palco do espetáculo, o qual a encenação impera e nem sempre o final é feliz. Debord se utiliza da palavra espetáculo para referir ao conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens, no qual tudo o que é vivido tornou-se uma representação e os indivíduos não passam de coadjuvantes de uma ilusória existência fake.

Nesse cenário, o culto à aparência, o apego à representação e a busca incessante pela felicidade vitalícia, convenientemente embebidos na magia da sedução, instigam os consumidores a alcançar o inalcançável, a perseguir a utópica plenitude, a ceder aos encantos da sedução, a dadivar o feitiço das sereias de Ulisses.

Na mitologia grega, as sereias são representações de sedução e seres capazes de enfeitiçar os navegantes com seus cantos melodiosos e o tom mágico em suas libras. As sereias da publicidade mercantil, da mesma forma, atraem suas presas com o despertar das emoções, fazendo da sedução seu principal instrumento de abate.

 

Notas e Referências

CATALAN, Marcos; PITOL, Yasmine Uequed. Primeiras linhas acerca do tratamento jurídico do assédio de consumo no Brasil. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v.7, n.25, p.137-160, mar.2016.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

LIPOVETSKY, Gilles.  A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia de Letras, 2007.

LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da sedução: democracia e narcisismo no hipermodernidade liberal. Trad. Idalina Lopes. São Paulo: Manole, 2020.

VERBICARO, Dennis. Desvendando a vulnerabilidade comportamental do consumidor: uma análise jurídico-psicológica do assédio de consumo. Revista de Direito do Consumidor, vol. 119, set.-out./2018, Revista dos Tribunais, 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Deusa da Justiça // Foto de: pixel2013 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/justitia-deusa-deusa-da-justi%C3%A7a-2597016/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura