O canibalismo estatal presente no segredo do Soylent Green: reflexos atemporais

30/11/2015

Por Laura Mallmann Marcht e Bruna Fernanda Bronzatti - 30/11/2015

“É verdade que apostar é uma coisa e vencer é outra. Mas também é verdade que quem aposta o faz porque tem confiança na vitória. É claro, não basta a confiança para vencer. Mas se não se tem a menor confiança, a partida está perdida antes de começar”

(BOBBIO, 2004, p. 211-212)

Muitas foram as obras e películas que buscaram retratar ou prenunciar as consequências das ações desmedidas do homem num futuro próximo. Em 1973, os cineastas já tinham a preocupação de denunciar as prováveis respostas da natureza ao esgotamento dos recursos naturais por parte da sociedade já industrializada. Nesse sentido, “Soylent Green” ou “No Mundo de 2020” dirigido por Richard Fleischer e produzido por Walter Seltzer e Russel Thacher tem por escopo uma forte crítica à sociedade que se delineava frente à destruição do meio ambiente e a evidente omissão por parte do Estado e do povo em relação às práticas insustentáveis.

O ano é 2022, o local é Nova York, a superpopulação é de 40 milhões de habitantes. O mundo está em crise, não há democracia, a água está envenenada, o mundo sofre com pobreza, fome, pessoas sem-teto dormindo em escadas (empilhadas) e ondas insuportáveis de calor causados pelo efeito estufa. Poucos são aqueles que possuem riqueza para alimentar-se de frutas, verduras ou carne (algo já praticamente extinto à época). A questão se torna pertinente quando a evidente omissão por parte do Estado, bem como dos cidadãos, resulta em um efeito estufa agravado de tal forma que o mundo se transforma.

O Soylent é um concentrado energético criado para substituir as refeições, uma vez que são muitas as pessoas e poucos os recursos naturais para mantê-las saciadas. Há Soylents amarelos e vermelhos, mas o que realmente é agradável a todos é o Soylent Green, feito de plânctons retirados do oceano, segundo o que diz o governador.

A trama tem início no assassinato misterioso de William R. Simonson, possuidor de grande patrimônio, inclusive de Shirl, “mobília” que faz parte de seu apartamento. No dia de seu assassinato, Shirl juntamente com o guarda Tab, vão ao encontro de um comerciante para comprarem mantimentos. Nesse pequeno lapso de tempo, Simonson não parece surpreso com a invasão de um sujeito e é assassinado. O detetive Thorn então é chamado ao ofício e começa a investigar o caso.

O investigador não poderia prever o que viria a seguir. Ele traz do apartamento de Simonson vários mantimentos (incluindo uma porção de carne) e bebidas que antes nunca havia visto. Junto com esses mantimentos, traz a seu parceiro Sol Roth, um livro intitulado “Relatório da investigação oceanográfica do Soylent”. Sol é professor e grande curioso das ciências. Contudo, jamais imaginaria encontrar o segredo de Soylent Green naquele documento.

E é exatamente o segredo a grande motivação para o assassinato – o que já era uma desconfiança presente em Thorn – só ainda não havia resolvido o mistério. Logo após descobrir o que está por trás do alimento, Sol, já esgotado daquela funesta realidade, vai a um centro de recolhimento que incentiva as pessoas a morrerem de forma agradável. São vinte minutos de experimentação do mundo como era quando possuidor de recursos, das melhores músicas e outras coisas que são específicas ao último desejo do ser. Thorn, ao descobrir que seu parceiro está partindo, vai ao seu encontro e presencia a cerimônia. O parceiro alerta o detetive que o mesmo procure provas do segredo.

O detetive descobre que os oceanos, bem como os plânctons, estão morrendo. O governo está produzindo Soylent Green de pessoas. Aqueles que morrem nos centros, os que são encontrados mortos e os recolhidos pelos caminhões (similares aos de lixo) durante as rebeliões são levados à indústria para se tornarem o tão precioso tablete verde.

Observa-se assim, um filme atemporal, que demonstra as crises existentes, desde a crise da democracia, uma vez que para decidir sobre determinadas questões - como, por exemplo, a necessidade de confeccionar o Soylent Humano - não houve a prévia consulta aos que ali viviam, ou mesmo tentavam sobreviver, mesmo que isso fosse de interesse de todos. Assim, a decisão coube a um grupo seleto de pessoas, que deram ênfase à ideia de permanência de interesses privados sobre interesses públicos.

Nas últimas décadas muito se discorre sobre a sustentabilidade, esta busca por racionalidade para com os recursos naturais. Diante disso, demonstra a necessidade de conservação, de forma mediata, ao ponto em que pese quase meio século após o seu lançamento o mundo estaria completamente transformado, problemas que ao longo dos anos se agravaram e, consequentemente, emergiriam outros problemas ligados aos elos da sociedade.

O filme comporta a possibilidade de inúmeras interpretações e visualização da evolução do direito. Em que pese a construção deste último, a sua mutação e adequação a sociedade e a determinado momento, demonstra uma bagagem própria de direitos, mas  consigo também traz possíveis violações, é o ser e o dever ser do direito, a norma posta e a sanção para tal violação. São inúmeros os direitos visivelmente feridos na película.

Os direitos humanos nesse sentido são direitos inerentes ao indivíduo, independe de gênero, nacionalidade, religião, origem social, ou qualquer outra condição em dado momento histórico, sendo fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada indivíduo. São construídos e acabam evoluindo juntamente com a sociedade. “No decorrer da história, assumiram diversas teorias de conceituação e fundamentação, e nesse processo seu conteúdo e abrangência também se alteraram para melhor adequação as necessidades e lutas de cada momento histórico” (NIELSSON; PINTO, 2015).

São várias as violações de direitos. Há violação do direito à saúde ao verificarmos pessoas desabrigadas e famintas, também do princípio da dignidade humana onde essas pessoas não possuem condições mínimas de subsistência, bem como do princípio da isonomia em que a mulher vira objeto diante do poder econômico do homem.

Desse modo, sobreviver é uma luta diária, a fome é visível, condições básicas de higiene não existem. As pessoas apenas querem encontrar um lugar coberto para abrigarem-se, por isso as escadas estão cheias, pessoas dormem amontoadas evidenciando a transgressão do direito à moradia, dando a ideia de campos de concentração nazista, onde as pessoas viviam esquecidas e conglomeradas.

Há ainda a questão do direito à vida, elencado como inerente ao ser humano, fundamento maior da existência humana, retoma-se também a ideia de um sistema totalitarista. Totalitarista porque aqueles que de algum modo são diferentes, não serviam mais para os interesses do Estado e por essa razão são exterminados, sem piedade, como se fossem meros entulhos atrapalhando o fluxo natural da sociedade.

Evidencia-se violação também do direito à saúde, uma vez que antes de morrer essas pessoas possuíam pouquíssimos recursos para alimentação adequada e os governantes, despreocupados, pouco se importavam em fomentar políticas públicas para de alguma maneira minimizar os obstáculos encontrados por aquele povo. Mesmo que estivessem em momentos de dificuldade, de escassez, haveriam alternativas diversas de propiciar melhorias nas condições de subsistência.

A questão de gênero retratada no filme faz regressar no tempo, onde a subalternidade da mulher ao homem era mais evidente. As mulheres parecem ser consideradas não-humanas, ao ponto de serem chamadas de “mobília”, termo peculiar à época, mas que consigo traz seu significado de forma intrínseca. A cultura parece ser delineada para atingir a esse retrocesso, em que a mulher nasceu para servir às vontades do homem e não participa da política.

Soylent Green é o relato não apenas de mais um enredo que pressagia as possíveis catástrofes que poderão ocorrer na contemporaneidade, juntamente com a evolução da espécie humana, mas um marco diante de outros filmes que também fizeram sucesso à época, uma película que não ousou em demonstrar a omissão por parte do Estado, a subalternidade daqueles que possuíam menos recursos financeiros aos que estavam em uma posição social mais elevada. Portanto, falsa é a ideia de progresso da civilização quando se está diante de grande descaso com o meio em que se está inserido, como bem é retratado. A sociedade caminha a passos largos para atingir patamares mais elevados, no âmbito da economia e tecnologia, mas enquanto se estiver a degradar cada vez mais rapidamente os recursos naturais - já tão escassos atualmente – pouco se pode falar em progresso.


Notas e Referências:

BEDIN, Gilmar Antonio; NIELSSON, Joice Graciele. A crise dos anos 70 do século 20 e a ruptura da tendência socializante das sociedades capitalistas: algumas observações sobre a ascensão das ideias neoliberais e suas consequências. Revista Direito e Desenvolvimento, a. 2, n. 4, 2011. 39-60 p.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, Nova Ed., 2004. 212 p.

LEFF, Enrique. Saber Ambiental: Sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder. Org. Josefina Anaya. 1ª ed. Siglo XXI Editores, S.A de C.V, Centro de Investigaciones Interdisciplinar en Ciencias y Humanidades e Programa de Naciones Unidas para el Medio Ambiente, 1998. 285 p.

NIELSSON, Joice Graciele; PINTO, Raquel Cristiane Feistel. Novos Direitos e sua Fundamentação. XII Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea e XIII Mostra de Trabalhos Jurídicos Científicos. UNISC: Santa Cruz do Sul, 2015. 17 p.

SCHORR, Janaína Soares; CENCI; Daniel Rubens. Educação Ambiental e Construção de Saberes para a Sustentabilidade: Postulados de Enrique Leff. Anais do VIII Simpósio Nacional de Educação e II Colóquio Internacional de Políticas Educacionais e Formação de Professores, Frederico Westphalen: URI, 2014. 9 p.

TYBUSCH, Jerônimo Siqueira; ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de.  Direitos da Sociobiodiversidade e Sustentabilidade. Direitos Humanos, Relações Internacionais & Meio Ambiente. Organização de Daniel Rubens Cenci e Gilmar Antonio Bedin. Curitiba: Multideia, 2013. 239-273 p.


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Laura Mallmann Marcht

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Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.

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Bruna Fernanda Bronzatti

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Bruna Fernanda Bronzatti é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ/RS e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. .


Imagem Ilustrativa do Post: Scene from "Soylent Green" // Foto de: futureatlas.com // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/87913776@N00/6511500431

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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