Como o Brazil virou o Brasil é, sem dúvida, uma questão ainda em aberto. Muitas são as chaves explicativas para dar conta de nossos caminhos no tempo, sobretudo, entre nossos momentos, digamos, mais seminais – como a Colônia ou o Império, por exemplo – e o Brasil chamado Moderno, a ganhar forma com Vargas, na década de 1930. Explicamos: na origem, muito das reflexões não apenas sobre o Brasil, mas em larga escala também sobre a América Latina, passaram (ainda passam, na verdade) por uma colonizante ideia de que o país, e mesmo a região, não teriam uma identidade própria, bem marcada por temas singulares a nossos contextos. E disso, claro, decorrem duas conclusões preliminares, que moldam as reflexões que abrem esse pequeno ensaio, voltado a urbanizar certos temas acadêmicos.
A primeira dessas conclusões é a de que as primeiras impressões sobre o Brasil foram, claro, importadas, desde as pioneiras (e excêntricas) descrições locais, fruto da razão moderna que inaugurava o período das chamadas Grandes Navegações, até os incipientes esboços de traço mais sociológico do século XIX. Assim – e não por outras razões – o olhar que atribuía sentido ao Brasil e à América Latina era, claro, não apenas estrangeiro, mas também endereçado àqueles descobridores do Novo Mundo. As narrativas não eram endereçadas a nós.
Na trilha desse enredo, a segunda – e entrelaçada – conclusão é a de que somente a partir do século XX começaram a pipocar versões internalizadas, na especificidade do Brasil, a dedicar esforços à questão que abre esse texto[1]. E, quando chegaram, o fizeram com grande impacto. Não à toa, Antônio Cândido – um dos marcos do pensamento crítico brasileiro – chamou o panteão de autores a dar forma à nossa Grande Tradição de “demiurgos”. De Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, passando, também por Caio Prado Jr., Antônio Candido fez seu seletíssimo grupo de explicadores da brasilidade. Chico de Oliveira, outro grande intelectual brasileiro, acrescentou à lista Celso Furtado e Florestan Fernandes, num catálogo que, seguramente, também receberia de bom grado Raimundo Faoro. Esses autores formariam o conjunto primevo, digamos assim, das primeiras versões do Brasil, fundamental para compreender a formação do país na sua especificidade.
De Freyre e seu Casa Grande & Senzala, por exemplo, o Brazil começou, assim, a virar Brasil com a descrição de uma sociedade patriarcal e autoritária. Já com Buarque de Holanda, a marca indelével da brasilidade passava a ser a apropriação do público como se privado fosse, com seu “homem cordial”, familista e clientelista diante de seus mais íntimos interesses. Com Celso Furtado, passamos a ter a enraizada perspectiva de um perpétuo subdesenvolvimento, enquanto Faoro emprestava-nos a mais que presente visão no senso comum de esferas públicas bem marcadas por estamentos – como mesmo andares de cima e de baixo nos prédios que abrigam o poder. Por fim, Florestan apontava para a incompletude da revolução republicana no Brasil, sublinhando a interessante perspectiva de que, por aqui, os ventos liberais sopraram com intensidades muito diferentes da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo.
Evidentemente, como o leitor mais atento já pôde antever, o legado de nossa Grande Tradição – pelo ineditismo e originalidade de suas conclusões – não ficou, claro, restrito àqueles interessados em uma espécie de “sociologia dos trópicos”, mas alcançou outros tantos espaços da formação intelectual do Brasil, sobremodo, em Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Desse caldo todo, por óbvio, o Direito e toda a institucionalidade que dele decorre (e que dia-a-dia nos molda) não escapou, permitindo uma peculiar interlocução entre essa mesma tradição e a história crítica de nosso constitucionalismo[2].
De acordo com essa perspectiva – e sem perder de vista o que até aqui se viu sinteticamente desses clássicos todos –, a rememoração de nossos atos fundantes, ou seja, aqueles que, desde 1824, nos “constituem” – não vem sistematizada como o produto de narrativas entrelaçadas no tempo, que projetam – ou deveriam projetar – uma espécie de ethos compartilhado tanto por nossos antepassados quanto por nossos contemporâneos. A toda evidência – dirá o crítico –, isso é parte do cristalino atravessamento de “muitas” Constituições e, claro, do contexto de outorga ou promulgação de nossas cartas político-jurídicas ao longo do tempo. Disso não discordamos. Contudo, entendemos que não apenas o empilhamento dessas circunstâncias todas dá conta daquilo que Marcelo Cattoni de Oliveira e Davi Francisco Gomes brilhantemente põe como um certo “elogio ao ressentimento”, bem marcado por fartos exemplos – que vão desde a perspectiva de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, que olham para as experiências constitucionais pré-1988 como a “melancólica história do desencontro de um país com a sua gente e seu destino”, ou o atualíssimo e ao mesmo tempo impaciente pessimismo de Fábio Comparato, que após dez anos da atual Constituição, escreveu-lhe mesmo um Réquiem[3].
Seja como for, na esteira de nossa História Constitucional, nem nosso passado foi capaz de instituir um porvir orientado a deixar para trás os já estamentais contextos da Colônia ao Império, menos ainda nosso presente livrou-se dessa sina, silenciosamente amarrada e, de alguma forma, também comprometida com nossa Grande Tradição.
Claro. Junto às perspectivas de nossos demiurgos, pondo finalmente um Brasil aos brasileiros, acompanhou-nos uma inabalável certeza de que o Direito chega tarde, sempre chega tarde diante de nossas ambições civilizatórias. Já os estamentos de Faoro, as relações (públicas e) cordiais de Buarque de Holanda, o autoritarismo de Freyre e a república incompleta de Florestan parecem sorrateiramente nos anteceder num irrealizável luto, nublando, com isso, a memória de um passado também marcado por singulares avanços. Um exemplo? A constitucional projeção de um Estado de Bem-estar de traço universalizante – muito diferente da perspectiva corporativa e liberal bem vista no Norte Global. Mesmo diante de nossas constantes insuficiências, em um país caracterizado pela desigualdade, sobremodo, social, não é pouca coisa. Mas na nossa tragédia de cinco séculos, quem, afinal, se lembra?
Esse é o ponto. Sem perder de vista a importância e a atualidade de nossa Grande Tradição, e sempre rememorando nossos fracassos e vieses mais obtusos – longe da perspectiva que induz ao esquecimento, aliás –, é preciso, finalmente, abrir as janelas e deixar o sol entrar. Recusar, noutras palavras, a herança que o passado insiste em nos legar. Esse parece o caminho para que, no fio da história de nosso constitucionalismo, o ato fundante em 1988, enfim, nos “constitua”, fazendo daquele colonial e excêntrico Brazil, congelado no tempo, um Brasil melhor.
Notas e referências
[1] Àqueles interessados nesses temas, remetemos a OLIVEIRA, Francisco. Diálogo na grande tradição. In: NOVAES, Adauto. A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[2] O saldo dessas discussões, sintetizadas nesse pequeno ensaio, faz parte do projeto “Constitucionalismo e memória na historiografia e na literatura brasileira”, financiado pela Fapes – Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo.
[3] Para um bem acabado estado da arte sobre o tema, remetemos o leitor a MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. História crítica do constitucionalismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. Nas especificidades, buscar: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, Davi Francisco Lopes. Independência ou sorte: ensaio da história constitucional do Brasil. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n. 55, 2012, p. 22-27, BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova intepretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 327, e COMPARATO, Fábio Konder. Réquiem para uma Constituição. In: FIOCCA, Demian; GRAU, Eros Roberto. Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 77-87.
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