O Aviso de Miranda e a Invalidade dos Interrogatórios Informais

21/02/2015

 Por Iuri Victor Romero Machado e Murilo Henrique Pereira Jorge - 21/02/2015

    Referência jurisprdencial

Superior Tribunal de Justiça – 6ª turma- Habeas Corpus 244.977- SC – Rel. Min. Sebastião Reis Junior- julgado em 25/09/2012.

O caso

B.S.S foi preso em flagrante pela suposta prática do crime de tráfico de drogas. Os policiais que efetuaram o flagrante gravaram uma conversa informal entre os mesmos e o paciente (ocasião em que o último confessou a prática do crime), sendo que tal conversa se realizou antes da realização do interrogatório perante autoridade policial -momento no qual o paciente exerceu seu direito de permanecer em silêncio.

A gravação fora anexada ao inquérito policial, tendo a defesa pleiteado sua exclusão perante o juízo singular, entendendo ser a mesma nula, pedido este que restou indeferido. Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus perante o respectivo Tribunal de Justiça, o qual entendeu que a prova deveria ser mantida no processo posto que se trataria de uma gravação ambiental clandestina.

Ante a manutenção da prova nos autos, a defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, o qual acabou por conceder a ordem, determinando o desentranhamento da prova dos respectivos autos de ação penal.

Os fundamentos da decisão

A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça fundamentou-se sobre duas premissas: 1º) o equívoco no uso do precedente citado pelas instâncias anteriores como convalidador da prova; 2º) a necessidade de garantir o direito ao silêncio do paciente.

O equívoco quanto ao precedente se deu porquanto fora utilizado o RE 583.937 QO-RG/RJ, o qual teve como relator o Min. Cezar Peluso e que afirma que “é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro”.

O relator do caso em análise demonstrou que a única semelhança entre o precedente e o caso confrontado era o fato de que um dos interlocutores tinha conhecimento da gravação. Todavia, da decisão utilizada como parâmetro era  possível extrair quatro diferenças significativas, quais sejam: 1º) se cuidava de um suposto crime de desacato praticado contra um Juiz de direito; 2º) era o acusado quem tinha conhecimento da gravação; 3º) a gravação foi utilizada em proveito do acusado; 4º) se cuidava da violação do sigilo das comunicações.

A segunda premissa da decisão (objeto do presente estudo) foi o fato de que os policiais que realizaram a gravação não informaram ao paciente seu direito a permanecer em silêncio quando o conduziam a Unidade Policial (nem mesmo que gravariam a conversa), tendo o e. Relator chegado a conclusão de que “caso os policiais responsáveis pela gravação do diálogo procedessem de modo a informar ao paciente a existência desse direito, acredito que não haveria diálogo. Em razão do fato em análise, não foi suprimido do paciente apenas o direito constitucional de ser informado de seus direitos e de permanecer calado, mas também o princípio da imunidade à autoacusação.”[3]

A preocupação do e. Relator quanto ao respeito ao direito ao silêncio foi tamanha que afirmou que o fato de possibilitar que conversas informais entre policiais e pessoas detidas fossem utilizadas em juízo, seria uma burla ao direito constitucional:

Pensar  de  modo  contrário  redundaria  em  permitir  que,  em  um Estado  intitulado "Democrático  de  Direito",  toda  vez  que  uma  pessoa  fosse presa  em  flagrante,  seria  previamente  submetida  a  uma  conversa  informal, gravada,  com  agentes  de  polícia  e,  na  ocasião  do  interrogatório  policial, devidamente informada de seus direitos  constitucionais, entre os quais o de permanecer  calada,  o  exercitasse,  produzindo,  sem  saber,  prova  contra  si mesma,  sob  o  magnífico  argumento  de  que  um  dos  interlocutores  tinha conhecimento  da  gravação  na  ocasião  do  diálogo.  Tratar-se-ia,  na  minha opinião de julgador, de um falso exercício de um direito constitucionalmente assegurado, o que não pode nunca acontecer em um Estado Democrático de Direito.[4]

Com base nestes argumentos a ordem de habeas corpus fora concedida (confirmando liminar anterior) para que a mídia com a gravação do diálogo informal fosse desentranhada dos autos, posto que seria uma prova ilícita.

Problematização

Muito embora o voto proferido -no caso em análise- não tenha feito referência expressa ao precedente americano Miranda vs. Arizona, este é perfeitamente aplicável ao caso, posto que em conformidade com o ordenamento constitucional brasileiro, mais especificamente com o art. 5º, LXIII da Constituição Federal, no qual se lê que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”[5].

Com efeito, Miranda vs Arizona foi uma decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1966, ocasião em que foram apreciados, em conjunto, outros três casos: Vignera vs. New York, Westover vs United States e California vs. Stewart.

Naquela ocasião a Suprema Corte Americana debateu - dentre outras questões - o direito do acusado permanecer em silêncio e suas extensões, bem como o direito a ter um advogado presente quando de seu interrogatório em sede policial, tendo surgido então a frase presente em diversos filmes americanos, conhecida como o “aviso de Miranda”: “Você tem o direito de permanecer calado, tudo o que disser poderá e será utilizado contra você no Tribunal”.

Veja-se trecho do voto, no qual se lê quais medidas se fazem necessárias para assegurar o direito constitucional a permanecer em silêncio:

To summarize, we hold that an individual is taken into custody or otherwise deprived of his freedom by the authorities in any significant way and is subjected to questioning, the privilege against self-incrimination is jeopardized. Procedural safeguards must be employed to protect the privilege and unless other fully effective means are adopted to notify the person of his right of silence and to assure that the exercise of the right will scrupulously honored, the following measures are required. He must be warned prior to any questioning that he has the right to remain silent, that anything he says can be used against him in a court of law, that he has the right to the presence of an attorney, and that if he cannot afford an attorney one will be appointed for him prior to any questioning if he so desires. Opportunity to exercise these rights must be afforded to him throughout the interrogation. After such warnings have been given, and such opportunity afforded him, the individual may knowingly and intelligently waive these rights and agree to answer questions or make a statement. But unless and until such warnings and waiver are demonstrated by the prosecution at trial, no evidence obtained as a result of interrogation can be used against him.[6]

Dentre os principais fundamentos que levaram a Corte Americana a formar seu precedente dois merecem especial destaque[7]: a preocupação com a tortura como meio para obter a confissões e o respeito aos direitos individuais.

Quanto à tortura, a decisão cita diversos casos que foram julgados pela Suprema Corte, nos quais se constatou violência policial (paragrafo 6, p. 231), tais como espancamento, tapas, enforcamento, dando especial ênfase a um caso ocorrido em Kings County, Nova York, no qual uma testemunha foi torturada para que desse um depoimento incriminando a terceiro (People v. Portelli). Os diversos casos de violência citados na decisão levaram a Corte a consignar  que: “the examples given above are undoubtedly the exception now, but they are sufficiently widespread to the object of concern. Unless a proper limitation upon custodial interrogation is achieved -such as these decisions will advance- there can be no assurance that practices of this nature will be eradicated in the foreseeable future”[8].

Quanto ao respeito aos direitos individuais, a decisão consignou que existe um argumento recorrente de uma suposta prevalência do interesse público sobre o individual[9]. Tese esta que não prevalece, posto que a Constituição prescreveu o direito contra não autoincriminação como direito individual da população quando em confronto com o poder governamental, privilégio que só pode ser abdicado pelo indivíduo e não pelas autoridades estatais. Ainda, para afastar este tipo de argumentação, a Corte citou trecho do voto proferido pelo Justice Brandeis (Caso Olmstead vs. United States), ocasião em que o juiz afastou a tese de que “os fins justificam os meios”:

Decency, security, and liberty alike demand that government officials shall be subjected to the same rules of conduct that are commands to the citizen. In a government of laws, existence of the government will be imperilled if it fails to observe the law scrupulously. Our government is the potent, the omnipresent teacher. For good or for ill, it teaches the whole people by its example. Crime is contagious. If the government becomes a law breaker, it breeds contempt for law; it invites every man to become a law unto himself; it invites anarchy. To declare that in the administration of the criminal law the end justifies the means would bring terrible retribution. Against that pernicious doctrine this court should resolutely set its face.[10]

O precedente foi consolidado na jurisprudência americana, tendo servido de base para diversos outros julgamentos. Sendo que no ano de 2000, no caso Dickerson vs United States, a Suprema Corte Americana decidiu por sua maioria que não existia justificação para superar “Miranda” pois este havia se tornado prática   policial, bem como parte da cultura nacional.

Cabe acrescentar que a obrigação de informar o direito a permanecer em silêncio no alvorecer das investigações ou prisões foi adotado por diversos Tribunais do mundo ocidental. Neste sentido, Roxin[11] informa que a partir da decisão proferida em 1992 (BGHSt 38, 214), o Tribunal Supremo Federal alemão estabeleceu que as declarações que tivessem sido realizadas perante policiais, sem a devida instrução de seus direitos não poderiam ser valoradas. Do mesmo modo, Costa afirma que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (nas decisões Serves v. França e Heaney and Macguinnes v. Irlanda) amplia o conceito de 'acusado' contido no art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos para lhe dar um sentido material (toda aquela pessoa suspeita da prática de um crime), de modo que seja devidamente instruída de seu direito a permanecer em silêncio[12].

O aviso de miranda no ornamento brasileiro

Como é notório, o constituinte de 1988 preocupou-se de positivar uma série de direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, tendo se referido ao direito ao silêncio no art. 5º, LXIII, informando que o “preso” será informado de seus direitos; todavia, da mesma forma que nos Estados Unidos o direito ao silêncio deve ser garantido independente de uma prisão formalizada ou não, devendo ser respeitado no interrogatório judicial, policial ou, mesmo, numa mera oitiva informal (conforme o caso em análise).

Isto porque, conforme afirmado pela Suprema Corte Americana, o direito ao silêncio tem guarida quando uma pessoa está em custódia ou privada de sua liberdade de uma forma significante (conforme citado supra: “we hold that an individual is taken into custody or otherwise deprived of his freedom by the authoroties in any significant way”).

Veja-se, neste sentido, que Mendes adotou o conceito americano ao abordar o direito ao silêncio, afirmando que: “hão de se aplicar desde quando o inquirido está em custódia ou de alguma outra forma se encontre significativamente privado de sua liberdade de ação”[13].

Do mesmo modo, Lopes Jr. afirma que o direito ao silêncio abrange as pessoas presas ou em liberdade e, que a não informação desse direito acarreta em nulidade:

o direito de silêncio está expressamente previsto no art. 5º, LXIII, da CB (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado...). Parece-nos inequívoco que o direito ao silêncio se aplica tanto ao sujeito passivo preso como também ao que está em liberdade. Contribui para isso o art. 8.2, g, da CADH, onde se lê que toda pessoa (logo, presa ou em liberdade) tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a declarar-se culpada.

(...)

O direito a calar também estipula um novo dever para a autoridade policial ou judicial que realiza o interrogatório: o de advertir o sujeito passivo de que não está obrigado a responder as perguntas que lhe forem feitas. Se calar constitui um direito do imputado e ele tem de ser informado do alcance de suas garantias, passa a existir o correspondente dever do órgão estatal a que assim o informe, sob pena de nulidade do ato por violação de uma garantia constitucional.[14]

Tal modo de interpretar o direito ao silêncio é imprescindível pois, diariamente, equipes policiais efetuam abordagens e prisões sem dar qualquer alerta quanto à possibilidade dos suspeitos permanecerem calados; muito ao contrário, efetivamente interrogam-nos logo na abordagem. Posteriormente, os mesmos agentes públicos responsáveis pelo início da persecução criminal são ouvidos, primeiramente, na condição de condutores e, depois, na condição de testemunhas de acusação, sendo utilizados em juízo tudo que extraíram dos suspeitos/ acusados[15].

Ressalte-se que este tipo de informação não faz parte de nenhum curso de formação de policiais brasileiros. Muito ao contrário, há uma inversão de valores conforme se pode anotar em recente julgamento realizado pela 2ª Secretaria do Tribunal do Júri de Curitiba[16]. Neste julgamento, um renomado Coronel da reserva da Polícia Militar paranaense (testemunha de defesa do acusado) deixou claro que os policiais militares devem realizar um “interrogatório de campo” e que devem se utilizar de todos os meios necessários para que os detidos falem. Nas exatas palavras do Coronel: “a gente chama de interrogatório de campo, algo absolutamente normal na vida diária de todos os policiais (…) pode usar todas as técnicas, desde que legais, que sejam suficientes para extrair a informação (…) é um interrogatório, é uma técnica normal e se usa todos os subterfúgios[17], vamos dizer assim, para se obter a informação, desde que legais”.

Destarte, percebe-se que em nossas terras vigora o inverso do que deveria ser praticado (“aqui você me contará tudo, na delegacia você terá seu direito de permanecer calado”). Hábito este que deveria ser banido dos órgãos de persecução, bem como prontamente rechaçadas pelo poder judiciário[18] posto que não encontra qualquer resguardo em nossa Constituição, tão pouco na doutrina, razão pela qual não deveria também ser acolhido pelo judiciário.

Veja-se, neste sentido, que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de apreciar a matéria, sendo que o direito ao silêncio foi mantido em sua integridade, ressaltando a necessária obrigação policial de informar o acusado sobre sua prerrogativa no momento da abordagem (não no momento “oportuno”). O Ministro Sepúlveda pertence lavrou a seguinte ementa no HC 78.708:

Informação do direito ao silêncio (Const., art. 5º, LXIII): relevância, momento de exigibilidade, consequências da omissão: elisão, no caso, pelo comportamento processual do acusado. I. O direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional, porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra à auto- incriminação que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade. II. Em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas. III. Mas, em matéria de direito ao silêncio e à informação oportuna dele, a apuração do gravame há de fazer-se a partir do comportamento do réu e da orientação de sua defesa no processo: o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer calado visa a assegurar ao acusado a livre opção entre o silêncio - que faz recair sobre a acusação todo o ônus da prova do crime e de sua responsabilidade - e a intervenção ativa, quando oferece versão dos fatos e se propõe a prová-la: a opção pela intervenção ativa implica abdicação do direito a manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito. (HC 78708, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 09/03/1999, DJ 16-04-1999 PP-00008 EMENT VOL-01946-05 PP-00874 RTJ VOL-00168-03 PP-00977)

Analisando esta decisão proferida, Mendes esclarece, em sua obra, que:

Como se pode depreender da decisão em apreço, o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer em silêncio tem por escopo assegurar ao acusado a escolha entre permanecer em silêncio e a intervenção ativa.(...)

Não há dúvida, porém, de que a falta de advertência quanto ao direito ao silêncio, como já acentuou o Supremo Tribunal, torna ilícita “prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não”.[19]

É inequívoco que como sujeito de um procedimento, o cidadão logo ao ser preso, no alvorecer da investigação (ou flagrante), deve ser informado do seu direito e não quando a prisão está já formalizada. No exato instante em que, devido às circunstâncias, pode se ver compelido a produzir prova contra si mesmo, cooperando inadvertidamente com o Estado, que tem de ser advertido.

Imperioso se questionar, juntamente com Roxin, qual seria a função do direito se a prerrogativa ao silêncio não fizesse frente aos casos de auto-incriminação condicionada por erro e originadas da atividade estatal:

Qué utilidad tiene crear en el § 136 de la Ordenanza Procesal Penal un imperativo de instrucción sobre sus derechos al inculpado y disponer para su infracción una prohibicion de utilización probatoria, si la policia puede renunciar a este camino legalmente descrito y sonsacar información al inculpado a través de conversaciones aparentemente privadas, si la instrucción sobre sus derechos y sin el riesgo de una prohibición de utilización probatoria?[20][21]

O aviso de Miranda é, talvez, a mais importante faceta da garantia da não auto-incriminação, pois de nada adiantaria o acusado permanecer calado em delegacia ou juízo e, que o julgador pudesse se utilizar do que os policiais extraíram do preso no momento da prisão (“confissões policiais”). Seria dar “carta branca” aos policiais para que fizessem o que bem entendessem com o preso para extrair a “verdade” deste.

Percebe-se, nos dizeres de Roxin[22] que o grande perigo para o direito ao silêncio reside na primeira declaração prestado ao agente público, na medida em que é neste momento que o acusado pode ser surpreendido (aproveitando-se do desconhecimento legal ou da submissão a que esta imposto) e que se consiga sua confissão sem que tenha sido instruído de seu direito a permanecer calado.

A tutela do direito ao silêncio

O direito ao silêncio faz parte, nos dizeres de Muñoz Conde[23], de uma das mais importantes proibições probatórias, a qual supos um avanço em face do processo penal inquisitivo, tema complexo e difícil de precisar. Sendo induvidoso que a adoção do direito ao silêncio por diversos ordenamentos tem diversas funções, das quais podem se destacar: a manutenção do ônus da prova à acusação, a tutela da integridade física e psíquica dos acusados e por fim uma tutela corretiva das atividades desenvolvidas pelos órgãos de acusação[24].

A manutenção do ônus da prova à acusação decorre do princípio da presunção de inocência e tem como consequência, segundo Ferrajoli, o fato de que “não é o acusado que deve provar ser inocente, mas a acusação que deve prová-lo culpado”[25]. Do mesmo modo, Moraes[26] leciona que o ônus da prova é sempre da acusação, cabendo a esta demonstrar a culpa do indivíduo, demonstrar que o 'estado de inocência' não encontra guarida no caso concreto.

Destarte, se o acusado exercer seu direito de permanecer em silêncio, tal direito não pode ser utilizado como indicio de culpa. Com efeito, o silêncio não é prova de nada conforme leciona Moura: “o silêncio não pode ser objeto de valoração jurisdicional, porque não constitui prova, no sentido jurídico do termo. Significa, tão somente, que o imputado optou, no exercício de sua autodefesa, deixar de fornecer sua versão pessoal sobre os fatos que são objeto de prova”[27].

Portanto, o ônus de provar os fatos continua exclusivo da acusação quando o acusado permanecer em silêncio.[28]

A tutela da integridade física é de primordial importância pois não só os policiais como, também, uma parte significativa população entende a tortura como método justificável para o controle da criminalidade, sob o pretexto de que deve haver uma “punição” imediata as pessoas que praticam crimes (sobretudo os violentos).

Com efeito, diariamente a polícia comete excessos na busca pela solução de crimes[29]. Os detidos voltam a ser (como na Idade Média) objetos, devendo dos mesmos ser extraída a verdade a qualquer custo. Não por outra razão, a Suprema Corte americana citou diversos casos de tortura, julgados pela mesma, para formar o precedente “Miranda”. Importante ressaltar, com Todorov, que a integridade física do acusado não diz respeito unicamente a este pois atinge, também, aos torturadores, bem como à sociedade:

A tortura marca de maneira indelével o corpo dos torturados, mas também corrompe a mente dos torturadores. Progressivamente, a sociedade inteira se vê atingida por esse câncer insidioso, esse ataque ao pacto fundamental que liga uns aos outros os cidadãos de cada país democrático, pacto segundo o qual o Estado é o fiador de justiça e do respeito por todo ser humano. Um Estado que legaliza a tortura não é mais uma democracia.[30]

Já a tutela da integridade psíquica[31] é resguardada na medida em que o acusado não é forçado a realizar algo contra os seus desejos. Com efeito, todos possuem mecanismos de defesa (processos inconscientes) que objetivam garantir a integridade do ego em face das angústias, e quando o ego é forçado a intensificar seus esforços defensivos podem se formar sintomas neuróticos e psicóticos.

Por fim, a tutela corretiva das atividades persecutórias está diretamente ligada a inadmissibilidade das provas ilícitas. Pois, na medida em que, o poder judiciário rejeita provas que ferem direitos individuais, os órgãos policiais se veem necessariamente impelidos a melhorar seus procedimentos, adequar seus “modus operandi” à Constituição Federal. Pacelli ao abordar a necessidade de controle dos órgãos persecutórios afirma que:

A rejeição da prova se prestaria inegavelmente a desencorajar novas investidas estatais da mesma natureza ilícita, tutelando, como demonstrado as várias maneiras do exercício dos direitos fundamentais antes mencionados. Nesse sentido, o princípio exerceria,  ainda que indiretamente, uma função eminentemente pedagógica junto aos agentes públicos persecutórios, desestimulando-os à repetição de novas práticas abusivas e, com isso, reforçando sobremaneira a proteção jurídica dos direitos fundamentais normalmente atingidos por ocasião das provas no processo penal.[32]

Do mesmo modo, Moraes[33] tratando da extensão subjetiva do “estado de inocência” demonstra que os órgãos de persecução têm o dever de proteção dos direitos fundamentais, de torná-los efetivos,  dentro de seus âmbitos de atuação. Ou seja, o reconhecimento da ilicitude da prova teria o condão de adequar as atividades persecutórias. Ademais, diminuiria a prática judiciária de depender da confissão do acusado para poder condenar.


Notas e Referências:

ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

COETZEE, John Maxwell. À espera dos bárbaros. São Paulo: Best Seller.

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LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, 5ª edição. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010.

MELCHIOR, Antonio Pedro. O juiz e a prova: o sinthoma político no processo penal. Curitiba: Juruá, 2013.

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MORAES, Mauricio Zanoide de. Presunção de Inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2010.

MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al derecho procesal penal del enemigo. Disponível em: . Acesso em:

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

ROXIN, Claus. Pasado, Presente y Futuro del derecho procesal penal, 1ª ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2009.

ROXIN, Claus. La proteccion de la person em el Derecho Procesal Penal alemán. Disponível em: http://www.uhu.es/revistapenal/index.php/penal/article/view/85/80 . Acesso em: 05 de dezembro de 2013.

TODOROV, Tzevetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

TROIS NETO, Paulo Mario Canabarro. Direito à não auto-incriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

[3] Documento: 1181887, inteiro teor do acórdão, p. 8.

[4]  Documento: 1181887, inteiro teor do acórdão, p. 9.

[5] Cabe anotar que em diversos ordenamentos estrangeiros, o interrogatório realizado nas investigações preliminares tem valor probante enquanto no Brasil sua valoração depende de provas realizadas em contraditório judicial, conforme art. 155 do CPP.

[6] Acórdão 384 U.S. 436, disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/384/436/case.html. Parágrafos 66 e 67, p. 248.

[7] uito embora cuidamos apenas de dois, a preocupação com o direito estar acompanhado por advogado no interrogatório foi um dos pontos mais discutidos da decisão.

[8] Acórdão 384, U.S. 436, p. 231.

[9] “A recurrent argument made in these cases is that society's need for interrogation outweights the privilege”. Acórdão 384, U.S. 436, p. 248.

[10] Acórdão 384, U.S. 436, p. 248.

[11] ROXIN, Claus. La proteccion de la persona em el Derecho Procesal Penal alemán. Disponível em:  http://www.uhu.es/revistapenal/index.php/penal/article/view/85/80 . Acesso em: 05 de dezembro de 2013.

[12] COSTA, Joana. O princípio nemo tenetur na jurisprudencia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. In: Revista do Ministério Público. Ano 32, número 128: 2011.

[13] MENDES, Gilmar; et. All. Curso de Direito Constitucional, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 782.

[14] LOPES JR., Aury. Direiro Processual penal e sua Conformidade Constitucional, 5ª edi. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010. p. 629.

[15] Ademais, a não informação do direito ao silêncio no momento correto pode acarretar em provas ilícitas por derivação, na medida em que o interrogado pode apontar outros coautores, bem como indicar outras provas.

[16] O vídeo com os depoimentos prestados é público e pode ser visto nos Autos nº 2002.7824-0.

[17] Quando se houve de um Coronel, ex-diretor da Academia de Policia Militar que todos os “subterfúgios” são necessários, impossível não recordar de Nicolau Eymerich e seu Directorium Inquisitorum, o qual ao abordar como devem ser realizados os interrogatórios ensina como o inquisidor deve agir: “23. 'Os dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges'. (…) 4. O herege -ou réu- não quer confessar. O inquisidor sabe que os depoimentos das testemunhas não são suficientes como provas, mas não faltam indícios de que é culpado. Neste caso, o inquisidor deporá contra ele. O acusado nega? O inquisidor apanhará seu dossiê, começará a folheá-lo atentamente, dizendo, depois: 'Claro que está mentindo, eu é que tenho razão! E então? Dize a verdade sobre teu problema' (o truque consiste em fazê-lo ouvir que o dossiê realmente o incrimina e que ele aparece como uma pessoa verdadeiramente culpada de heresia! Ou, então, o inquisidor espantado, dirá: 'Como podes negar: ainda não está bastante claro?' e começará a ler o papel, mudando o que achar melhor. Depois dirá: 'eu é quem dizia a verdade! Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo!'. Porém, o inquisidor, ao proceder assim, deve tomar cuidado para não se ater muito nos detalhes, para que o herege não perceba que o inquisidor, na verdade, ignora os fatos! Deve-se prender às generalidades, dizendo, por exemplo: 'sabemos onde estavas, com quem, quando, e o que dizias!' E deve juntar tudo o de que tem certeza. (…) 7. se o inquisidor perceber  que o herege não quer, absolutamente, dizer a verdade, não lhe fará promessas, tomando a precaução de não libertá-lo sob fiança, porque as promessas não se revelariam úteis para fazê-lo confessar. Soltar um herege sob fiança só tem uma consequência: permitir que se corrompa mais, apenas retardando, afinal de contas, o desfecho do problema.” apud Maurício Zanoide de Moraes. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 56.

[18] Coetzee bem demonstra em sua obra que o juiz não pode se olvidar de questões que lhe são afeitas, por mais insignificantes que lhe pareçam num primeiro momento. Veja-se um pequeno trecho de sua obra, quando o Juiz local se dirige a um menino 'bárbaro' em seu interrogatório: “Ouça: você tem de dizer a verdade ao oficial. É tudo o que quer ouvir, a verdade. Quando tiver certeza de que está dizendo a verdade, não vai mais bater em você. Mas tem de lhe contar tudo o que sabe. Tem de responder, francamente, a todas as perguntas que fizer. Se houver dor, não esmoreça. - encontrando o nó, consigo, finalmente, soltar a corda- Esfregue as mãos até que o sangue volte a circular. (…) Não queria me envolver nisso. Sou um magistrado rural, um alto funcionário do Império, e estou completando meu tempo de serviço nesta fronteira pacata, à espera da aposentadoria. COETZEE. À espera dos bárbaros. São Paulo; Best Seller. p. 15.

[19] Curso de Direito Constitucional … p. 785.

[20] ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del derecho procesal penal, 1ª ed. Santa Fé: Rubinzal- Culzoni, 2009. p. 181

[21] O autor responde em outra obra que “admitir una prueba indirecta, permite pasar por alto el principio nemo tenetur … Cuando alguien confiesa, como consecuencia del engano que ha sido provocado por el Estado, y su confesión no se us  em el proceso, sino que se usa al cómplice descubierto a través de ella para declarar su culpabilidad, la sentencia que se pronuncie sobre esta base es producto de una auto-incriminación obtenida a través  de un medio proibido.”. La protección de la persona em el Derecho procesal penal alemán. p. 119.

[22] ROXIN, Claus. La protección de la persona... p. 116.

[23] Acrescenta o autor que “deste principio se deducen derechos tan fundamentales en el moderno proceso penal como el derecho del acusado a la defensa, a guardar silencio, a no estar obligado a declarar o incluso a declarar falsamente, a la asistencia desde el primer momento de su detención de un abogado que le asesore, y, em definitiva, a que no se le obligue de un modo directo, mediante coacción , o indirecto, mediante engaño, a declararse culpable o suministrar datos que puedan facilitar la investigación de un delito em el que presuntamente puede haber participado”. MUÑOZ CONDE, Francisco. De las prohibiciones probatorias al Derecho procesal penal del enemigo. p. 74.

[24] Veja-se, neste sentido, Pacelli ao afirmar que “em um Estado de Direto devem ser absolutamente banidas quaisquer intervenções que possam afetar a capacidade de autodeterminação da pessoa, expressão de sua personalidade e de sua dignidade”. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Processo e Hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.171.

[25] Apud, ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 55.

[26] Presunção de inocência no processo penal brasileiro... p. 462. Acrescenta o autor que a prova produzida pela acusação deve ser lícita, um prova produzida dentro dos padrões definidos pela Constituição Federal.

[27] In MOURA, Maria Tereza Rocha de Assis; MORAES, Maurício Zanoide de. “O direito ao silêncio no interrogatório”. Apud TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não auto-incriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 190.

[28] Como bem leciona Moraes, nem mesmo a confissão “retira do órgão acusador o ônus probatório de apresentar prova incriminadora e lícita quanto à materialidade e autoria da infração”. Presunção de inocência no processo penal brasileiro... p. 526.

[29] Abusos os quais são ignorados pelo Poder Judiciário, o qual dissimula sua função de garante dos direitos fundamentais, para se transformar em órgão da Secretaria de Segurança Pública. Função que não é a sua como bem demonstra Silva Franco o “Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é o zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviânico” … “é  em resumo, ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir esta missão” apud CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 48.

[30] TODOROV, Tzevetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 62.

[31] Amilton de Carvalho, ao tratar da busca da verdade no processo penal, trata das integridades físicas e psíquicas: “Enfim, o mundo repousa calmamente: a verdade em um local onde ela é buscada: o processo penal. E se este é seu fim, esta é seu definitivo mote, se está autorizado a encontrá-la a qualquer preço: doa a quem doer, custe o que custar, até tratar o réu como objeto onde se encontra a verdade e invadir a sua intimidade -qualquer escuta, por exemplo, começa a ser legitimada, e, em alguns momentos, inclusive a tortura psicológica (não seria isso algumas perguntas capciosas que fazem aos inquiridos?) e até físicas (não seria isso quando se valora 'confissões' policiais, sob o discurso de que o acusado não provou que foi torturado, como se o torturador praticasse a tortura em praça pública, sob os olhos de testemunhas, com hora marcada?).” Direito penal a marteladas ...p. 145.

[32] Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais … p. 151.

[33] Presunção de inocência no processo penal brasileiro... p. 482.


Sem título-1  

Iuri Victor Romero Machado é Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Luiz Carlos/OPET e em Ciências Criminais e Práticas de Advocacia Criminal pela UTP. Advogado.

                                                                                                                                                                          
Sem título-2  

Murilo Henrique Pereira Jorge é Especialista em Advocacia Criminal pela Universidade Cândido Mendes. Professor da Universidade Tuiuti do Paraná. Advogado.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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