O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente, valorou negativamente a conduta social do agente devido à “celebração estética da ‘vida bandida’” por fotos extraídas no WhatsApp do réu. In casu, o aumento da reprimenda foi assim justificado:
As imagens extraídas do aparelho celular do acusado, nos quais se constata criação de fotografias no aplicativo whatsapp, revelam desvio de comportamento no ambiente social, a amparar negativação da conduta social. Há evidência de postagens de fotografias na rede social, nas quais o réu se exibe e ostenta armas e munições, sem esconder a identidade. A finalidade destas postagens, sem dúvida, é enaltecer a popularidade e a coragem decorrente de estilo de vida ligado à violência e à criminalidade, no que se pode chamar de celebração estética da “vida bandida” Tais elementos são aptos a negativar a conduta social do acusado e lastrear o aumento da pena-base.[i]
A pergunta que remanesce é: a majoração de pena, em decorrência desse vetor, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988?
Para responder ao questionamento, é preciso destacar que a fixação da pena em uma sentença penal condenatória percorre três fases distintas (art. 68 do Código Penal). A primeira delas é a determinação da pena-base, a segunda consiste na aferição das circunstâncias atenuantes e agravantes e a terceira leva em conta as causas de diminuição e de aumento da pena.
O artigo 59 do Código Penal, por sua vez, traz os critérios determinantes da pena-base chamados de circunstâncias judiciais, visto que a análise acerca de sua aplicabilidade é feita pelo juiz, de maneira subjetiva. A conduta social é uma delas e, por isso, pode ser valorada positiva ou negativamente, a depender do juízo discricionário feito pelo magistrado no momento de aplicação da pena.[ii]
A análise positiva não tem efeito de diminuir a pena, visto que nessa fase da dosimetria a pena está no mínimo legal, mas a negativa importa em aumento na sanção penal.
De acordo com a doutrina clássica, a conduta social é resultado da análise de comportamento do agente em seu meio social, familiar, laboral.[iii]
Nesse sentido, afirma-se que o magistrado precisa conhecer o indivíduo que julga, a fim de decidir se merece uma reprimenda maior ou menor: “um péssimo pai e marido violento, em caso de condenação por lesões corporais graves, merece pena superior à mínima, por exemplo”.[iv]
Ou seja, alguém que leve uma vida cheia de “infâmias e deslizes”[v], ainda que sem antecedentes criminais, pode ter contra si um aumento de pena em virtude de “má conduta social”.
Tratar a circunstância judicial dessa forma, contudo, transforma circunstâncias penalmente irrelevantes da vida do réu em fatos atípicos puníveis mediante um acréscimo de pena[vi], com base em critérios de cunho estritamente moral.
Tal juízo, possivelmente, não se assenta sobre os mesmos valores do sentenciado, do promotor de justiça e do defensor, por exemplo. Consequentemente, a análise da conduta social do agente recai em meio dúbio de valoração.
A subjetividade desse vetor, além de se opor ao direito penal do fato e reintroduzir o direito penal do autor – que julga o indivíduo pelo que é, e não pelo que fez[vii] – também possibilita o arbítrio judicial[viii].
Não se pretende com isso um modelo de justiça que ignore o homem em seu contexto, mas sim que, dentro de um sistema que visa tutelar um rol extenso de garantias e direitos fundamentais, não se legitimem censuras.
Ao balizar a sanção com fulcro na conduta social do agente, o magistrado visualiza os elementos comportamentais do acusado segundo sua própria formação ética e moral[ix], o que manifesta o desejo de coerção dos cidadãos para que sejam bons (o que quer que isso signifique), sob pena de terem a reprimenda majorada.
Porém, a arbitrariedade na eleição de valores universais não se sustenta em uma sociedade multicultural[x], visto que decorrem de uma imposição de determinados segmentos da sociedade a outros.
Para a CRFB/88, a liberdade em conjunto com a vida, igualdade, propriedade e segurança, formam um núcleo de direitos fundamentais de maior relevância (art. 5º, caput).
Nesse viés, o constituinte consagrou um direito geral de liberdade[xi], que pressupõe duas coisas: caso nenhuma restrição legal ocorra, i) é permitido fazer ou deixar de fazer o que quiser e ii) o Estado não pode intervir na eventual ação ou abstenção do que não restringiu.[xii]
Dessa forma, a cominação da pena só possui sentido se incidir sobre uma conduta tipificada (restringida): o Estado, "não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem mesmo promover-lhes, de forma coativa, a moralidade”.[xiii]
Portanto, o aumento da reprimenda com base na conduta social do agente não foi recepcionado pela CRFB/88, visto que suprime o pleno exercício do direito de liberdade e vilipendia a existência da pluralidade social por ela assegurados.
Notas e Referências
[i] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Primeira Câmara de Direito Criminal). Apelação Criminal n. 0390463-12.2017.8.21.7000, de Cachoeira do Sul. Relator: Jayme Weingartner Neto. Publicado em 25 de abr. 2018. Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 13 de out. de 2020.
[ii] BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 6. ed., rev., atual e ampl. Porto Alegre: Livravia do Advogado, 2013. p. 162. E-book.
[iii] Nesse sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 489; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 299; AZEVEDO, Marcelo André de; SALIM, Alexandre. Direito Penal: parte geral. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 404.
[iv] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 17. ed. rev., atual., e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 285. E-book.
[v] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 21. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 775-776.
[vi] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Aplicação da pena: limites, princípios e novos parâmetros. 2. Ed. rev e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 154.
[vii] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. rev. e atual. Florianópolis. Conceito, 2012. p. 522. É também esse o posicionamento exarado por Salo de Carvalho: “a consideração da conduta social na dosimetria da pena representou alinhamento com a concepção da culpabilidade pelos fatos da vida, e não propriamente de culpabilidade só pelo fato cometido, tão contestada, ainda hoje, pelos penalistas” CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo penal. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 53.
[viii] Sob o aspecto do arbítrio judicial, importante trazer a distinção entre o arbítrio e a discricionariedade do juiz, diferença essa bem pontuada por Fragoso: “O ordenamento jurídico confere ao juiz o poder de aplicar a pena. Trata-se de saber para que fim esse poder foi atribúido ao juiz. Parece claro que o juiz possui esse poder para atuar o fim próprio do Direito Penal, que é, como já vimos, o de prevenir a prática de crimes. Conquanto se costume falar em “arbítrio judicial, em realidade, o juiz não exerce um poder arbitrário, mas sim um poder discricionário. Isso significa que o juiz não pode aplicar a pena, dentro dos parâmetros legais, segundo seu arbítrio. Como ensina Brícola, por discricionariedade não se deve entender o poder de adotar, com base na simples oportunidade, o tratamento mais idôneo, mas sim a renúncia, por parte do legislador, em fixar abstratamente um conteúdo de valor, para deixá-lo em concreto à apreciação do juiz. O juiz está adstrito à aplicação da pena justa. O que separa o arbítrio da discricionariedade é a obrigação de motivar a aplicação da pena.” FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 320.
[ix] STOCO, Tatiana. Personalidade do agente na fixação da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 165.
[x] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 236.
[xi] MARINONI, Luiz Guilheme; MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 440.
[xii] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 343.
[xiii] FERRAJOLI, Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 178.
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