Por Bruno Torrano – 14/12/2016
O ativismo judicial substantivo é bom ou ruim? Depende. Do que? Do contexto. A reputação da ideia de controle judicial[1] (judicial review), assim como a de ativismo judicial no sentido de contrariedade ao ponto de vista jurídico (tal como proposto pela concepção de direito do positivismo ético), varia tanto à luz dos sentimentos médios da população sobre a legitimidade das instituições e sobre a moralidade geral das práticas sociais quanto à luz de teorias políticas, jurídicas e éticas contingentemente dominantes e influentes formuladas pela classe intelectual.
As idas e vindas acerca do papel do Poder Judiciário na história dos Estados Unidos da América são um exemplo bem eloquente dessa afirmação. Não obstante tenha sido concebida, pela primeira vez, no século XVII como um instrumento de oposição à Coroa “em um tempo no qual Legislativo e Corte eram percebidos, em igual medida, como as vozes da razão”[2], a crença nos benefícios do judicial review, em particular, sofreu recuos nos anos de 1780 – com o apoio de federalistas como Hamilton, que via o Judiciário como o Poder “menos perigoso” (least dangerous branch) justamente pela função reduzida que a ele deveria ser atribuída –; e retomou força especialmente no fim da década de 1820, já diante dos influxos da decisão mais famosa sobre a matéria, proferida, dentro do intervalo[3] (1803) entre esses dois marcos históricos de declínio e ascensão, pelo Justice John Marshall no caso Marbury v. Madison.
Em certos momentos históricos dos EUA, o ativismo apareceu como uma grandeza politicamente construída. Muitas vezes, com alguma dose de má-fé. Reeleito para o cargo de Presidente da República em 1936, Franklin Roosevelt levou à frente o seu famoso projeto de estabelecer, após a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929, um plano de recuperação econômica dos Estados Unidos da América – o famoso New Deal –, que atribuía ao Executivo Federal uma constitucionalmente questionável extensão de competências e poderes. Como estratégia para pressionar politicamente os Ministros do Supremo Tribunal a votarem pela validade das legislações relativas ao seu plano econômico, Roosevelt providenciou, logo após sua vitória, a elaboração de uma proposta legislativa destinada a promover uma reforma no número de juízes da Corte Constitucional – popularmente conhecido como Court-packing scheme ou Court-packing plan. A medida possibilitava que, cumprido os requisitos, o Presidente nomeasse até seis novos ministros para a Corte Suprema, o que lhe dava margem mais do que suficiente para inserir julgadores que concordavam com a ideologia de planificação econômica do New Deal.
Segundo a interpretação histórica mais aceita, a medida de Roosevelt foi decisiva para que o Justice Owen Roberts, que em outras ocasiões havia proferido votos desfavoráveis ao projeto presidencial, mudasse de posicionamento no caso West Coast Hotel Co. v. Parrish, de modo a ocasionar uma vitória apertada, por 5 a 4, a favor do governo. Esse fato ficou marcado como um tipo de mudança de orientação baseada em razões prudenciais e destinada a preservar a independência da Suprema Corte; enfim, uma “mudança que salvou nove” (switch in time that saved nine).
Não à toa, Richard Epstein identifica o ano de 1937 como o principal ponto de alteração de postura ideológica na Suprema Corte norte-americana, em termos de autêntico ativismo judicial, quanto a seu poder de intromissão em grandezas socialmente importantes como o princípio do federalismo e os direitos individuais: “a Corte do New Deal sustentou tanto a expansão dos poderes federais quanto a limitação da proteção aos direitos individuais de liberdade e propriedade contra as regulações federal e estadual”. E arremata: “Essa transformação representa o momento definitivo no moderno Direito Constitucional americano: a mudança da Corte (Suprema) em direção ao modelo de governo extenso que hoje continua dominante”[4].
Esteja ou não correta a tese de Epstein, o fato é que inúmeras outras decisões proferidas pela SCOTUS, embora tenham sido consideradas “ativistas” por determinados grupos sociais, não podem ser consideradas, em uma análise retrospectiva, como realmente prejudiciais ao contexto americano. Cite-se, apenas como exemplo, as decisões proferidas em McLaurin v. Oklahoma State Regents, Sweatt v. Painter e, posterior e principalmente, em Brown v. Board of Education, as quais reagiram à doutrina da segregação racial incorporada no lema “iguais, mas separados”. Podemos afirmar que o ativismo, nesse caso específico, foi um empreendimento ruim? Parece que não.
O ativismo judicial, portanto, não é reprovável em si mesmo: em cenários extremamente injustos, ele pode ser a solução. A suspeita contra o ativismo no ordenamento jurídico brasileiro baseia-se no exame do contexto em que vivemos. Quaisquer que sejam nossos juízos sobre aquilo que ocorreu na história de outros países, o que nos interessa é o comprometimento com as especificidades atuais da nossa realidade. A Constituição da República de 1988, em seus exaustivos artigos, não tolera práticas extremamente iníquas. Claro, ela possui cláusulas que podem ser melhoradas – calha, aqui, a distinção de McGinnis e Rappaport[5] entre Constituição genuinamente boa (concretizada na nossa realidade) e Constituição ideal (humanamente impossível). Mas o custo de realizar eventuais alterações no texto constitucional e legal por intermédio de raciocínios ad hoc de diversos magistrados não-eleitos que, em regra, não possuem (embora, por vezes, presumam que possuem) grande competência em áreas extrajurídicas (filosofia moral, filosofia política, economia, contabilidade, história, etc.) supera em muito o custo da espera de tais modificações pelos mecanismos inerentes à lógica procedimental de uma democracia em pleno funcionamento. Como diria meu amigo André Coelho[6], pessoas morreram e derrubaram reis com o objetivo de implantar um “governo de leis, e não de homens”. É chegada a hora de reconhecermos a importância dessa luta histórica.
Notas e Referências:
[1] Controle judicial não é o mesmo que ativismo judicial. Judicialização da política também não. São três termos que designam fenômenos diferentes.
[2] TRIBE. Laurence H. American Constitucional Law. 2. Ed. New York: The Foundation Press, 1988, p. 13.
[3] Id, ibid.
[4] EPSTEIN, Richard. How progressives rewrote the Constitution. Washington: Cato Institute, 2006, Kindle Edition, posição 66.
[5] MCGINNIS, John O; RAPPAPORT, Michael B. Originalism and the good constitution. Kindle Edition. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
[6] Esclareço que os motivos teóricos do André para fazer tal afirmação são diferentes dos motivos teóricos deste texto, e que ele não necessariamente endossaria a versão do positivismo normativo que tenho defendido.
.
Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”.
.
Imagem Ilustrativa do Post: Pensando nela (Thinking of her) // Foto de: paulisson miura // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/paulisson_miura/8356844869
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.