O ativismo inesperado: quando a corte promove retrocesso em direitos fundamentais

23/02/2016

 Por Flávia Santiago Lima e Glauco Salomão Leite - 23/02/2016

A recente decisão do STF sobre o princípio da presunção de inocência provocou polêmica em amplos setores da sociedade. O acórdão proferido na última semana representou uma significativa alteração em sua jurisprudência, pois, desde o precedente firmado no HC n. 84.078/MG, de 2009, o Tribunal vinha entendendo que não poderia haver execução provisória de condenação, já que era necessário aguardar o trânsito em julgado da sentença. A partir de agora, com a condenação por Tribunais de segunda instância, mesmo cabendo recurso, o réu já será obrigado a iniciar o cumprimento da pena.

Diante da interpretação firmada pela Suprema Corte, boa parte da comunidade jurídica revelou preocupação com esse novo entendimento, ao passo que algumas poucas instituições o enalteceram, a exemplo de segmentos da Magistratura e do Ministério Público, levantando a bandeira contra a impunidade. Nessa esteira, conhecidas figuras do meio jornalístico abriram matérias para comentar o acórdão falando que o STF havia acabado com a “farra dos recursos”.

Como se sabe, a maioria da Corte foi conduzia pelo voto do Min. Teori Zavaski, sendo dissidentes os Min. Marco Aurélio, Celso de Mello, Ricardo Lewandowsky e Rosa Weber. Em sua fundamentação, o Min. Zavaski iniciou ressaltando duas questões que deveriam ser enfrentadas no equacionamento da controvérsia: “(a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal.”.

A respeito do princípio da presunção de inocência, o referido magistrado não deixou de tecer considerações, ainda que genéricas, sobre a relevância desta garantia constitucional para um processo criminal condizente com o Estado de Direito. De tal garantia, decorreria a necessidade de existir “reserva de dúvida acerca do comportamento contrário à ordem jurídica” atribuído ao acusado. Porém, segue o Ministro, “a eventual condenação representa, por certo, um juízo de culpabilidade, que deve decorrer da logicidade extraída dos elementos de prova produzidos em regime de contraditório no curso da ação penal”. Assim, a sentença condenatória em primeiro grau significaria a superação da presunção de inocência por um juízo de culpa, “embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior.”. Na sequência, o Min. Teori Zavaski argumenta que é precisamente perante os Tribunais de segunda instância que se exaurem as possibilidades de discussão sobre fatos e provas que levaram à condenação do acusado: “noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa.”.

O argumento, como se vê, parte de premissas questionáveis. Desnecessário haver maiores esforços interpretativos para perceber que o modelo adotado pela CF/88 acerca da presunção de inocência determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). Portanto, o preciso momento a partir do qual alguém pode considerado culpado é com o trânsito em julgado da condenação e não com a sentença de primeira instância, nem com o acórdão de Tribunal de segundo grau. Duvidosa, desse modo, a ideia segundo a qual com a sentença condenatória em primeira instância a presunção de inocência restaria “superada” por um juízo de culpa. A CF não autoriza tamanha antecipação de culpa.

Além disso, a circunstância de que nos Tribunais de segundo grau se encerram as oportunidades para discutir a valoração de fatos e provas não significa reconhecer o trânsito em julgado de eventual condenação por tais Cortes. Ora, por “trânsito em julgado”, como determina a CF, quer-se afirmar que não há mais possibilidade de recurso algum contra a decisão condenatória. Em suma, as alternativas de defesa do réu teriam se esgotado. Se é assim, não há como tornar definitiva a formação de culpa por Tribunal de segundo grau se contra sua decisão ainda cabem recurso especial (por violação à legislação federal) e/ou recurso extraordinário (por violação à CF). O fato de que, em tais recursos, não se admitir a rediscussão de fatos e provas certamente não é o mesmo que sustentar que não se pode questionar coisa alguma. Tanto é assim que, segundo o decano do Tribunal, o Min. Celso de Mello, cerca de 25% dos recursos em matéria criminal que chegam ao STF são acolhidos integralmente. Portanto, ao menos perante nosso sistema constitucional, as decisões de segundo grau, porque passíveis de recurso, não podem diminuir a presunção de inocência de alguém.

Sob outro viés, o Min. Teori Zavaski argumentou a necessidade de equilibrar a garantia da presunção de inocência com a efetividade da função jurisdicional em matéria penal, em ordem a resguardar “valores caros” à sociedade. Embora isso não tenha sido referido em seu voto, a referência à ideia de equilíbrio sugere tratar a presunção de inocência como princípio jurídico a ser ponderado com outros interesses, o que, ao menos em tese, justificaria flexibilizações mediante sopesamentos. Ocorre que, se esta fosse a linha argumentativa pensada pelo magistrado, a presunção de inocência, tal como prevista na CF, não é princípio, e sim regra. E, como tal, deve ser aplicada em toda sua inteireza. Não estaria sujeita a ponderações ou sopesamentos.  Afinal, que exceções a CF trouxe ao determinar que a formação da culpa depende do trânsito em julgado da sentença? Nenhuma. Então, deve-se seguir a lógica do tudo ou nada.

Além disso, o magistrado considerou que o ajuizamento de recursos perante os Tribunais Superiores poderia ser causa de impunidade, pois, diante da morosidade do Poder Judiciário, haveria o risco de se alcançar a prescrição, ocasionando a extinção de punibilidade do crime. Trata-se de argumento meramente consequencialista, sem qualquer respaldo constitucional.  Nenhuma pessoa razoável concorda com a permanência de situações de impunidade por crimes cometidos. No entanto, isso não legitima subverter o sentido de um preceito constitucional. O direitos e garantias individuais consubstanciam escudos do indivíduo em face do próprio Estado. A persecução penal, desse modo, só pode ser validamente conduzida se realizada dentro das regras do jogo fixadas constitucionalmente. O fato de existir morosidade no Poder Judiciário não é motivo suficiente para relativizar uma importantíssima garantia constitucional, como o é a presunção de inocência. Afinal, por acaso a “conta” pela falta de uma política séria, racional e minimamente eficiente contra a morosidade deve ser paga pelo indivíduo? O Estado não pode transferir para este o peso da responsabilidade da ausência de uma política pública nessa área.

Pelas mesmas razões, não se pode culpar o réu em um processo criminal pelo fato dele ter ajuizado recursos contra decisões de Tribunais de segundo grau. Em primeiro lugar, porque, se cabe recurso, é pelo fato de a decisão não ter transitado em julgado. Em segundo lugar, porque, inerente a um processo judicial democrático, é assegurado o direito à ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes. Observe-se: cuida-se do direito à ampla, e não à restrita defesa.

Como se nota, apesar de toda a discussão em torno do ativismo judicial do STF, não se imaginava que ele se empenharia num ataque aos  direitos fundamentais, justamente contra uma das maiores conquistas do Estado de Direito: a presunção de inocência. Pelo visto, em vez de o STF envidar esforços como protagonista de um diálogo institucional na formulação de uma política judiciária consistente que levasse em conta a celeridade processual, reformulação do Direito Processual Penal e redução de suas próprias competências (que inviabilizam sua própria atividade), elegeu o pior meio para resolver problemas do próprio Judiciário: retroceder na tutela dos direitos fundamentais.

Importante refletir sobre o próprio papel institucional que o STF acabou assumindo com essa decisão. A ele, enquanto guardião da constituição, cabe interpretá-la da maneira como ela é, e não como seus integrantes gostariam que ela fosse. Caso não se enxergue a constituição como uma realidade concreta e objetiva, que se descola das decisões da Suprema Corte, então somos forçados a reconhecer que se vive um realismo jurídico em grau máximo e a constituição apenas existe pela voz do Tribunal. É afirmar, a constituição não teria voz própria. Assim, os constituintes teriam apenas aprovado um conjunto de sugestões e conselhos, os quais poderiam ser seguidos ou não, de acordo com pragmatismos e conveniências invocados pelos juízes da Corte.

Neste cenário, considerando que a decisão afrontou literalmente um enunciado constitucional de sentido clarividente, o STF não atuou apenas como “legislador positivo”. Tampouco atuou como poder reformador, pois os direitos e garantias individuais não podem ser esvaziados nem por emendas constitucionais (art. 60, §4º, CF). A Corte se transubstanciou em poder constituinte permanente, ou seja, em autoridade política soberana, capaz de reescrever cláusulas constitucionais como lhe aprouver.

Se pensarmos que as constituições são, sobretudo, instrumentos garantistas, inclusive contra as maiorias, a uma Corte Constitucional não é reconhecida a prerrogativa de relativizar garantias individuais em nome de clamor social, da opinião pública ou de qualquer forma de pressão política. Menos ainda quando existem problemas estruturais relacionados à lentidão da prestação jurisdicional. Em última análise, essa suposta opinião pública acabaria se transformando em critério legitimador de decisões judiciais, especialmente quando tais decisões não são permitidas pelo sistema jurídico-normativo, mas que atendem às reivindicações das multidões. Por isso, equivocado o argumento segundo o qual “nos Estados Unidos é assim e o condenado já cumpre a pena de imediato”. Ocorre que, por essas bandas, não é assim e se exige trânsito em julgado da condenação. Da mesma forma, enquanto lá se permite a pena de morte, aqui, esta é taxativamente vedada. E pela mesmíssima constituição que determina o trânsito em julgado para a formação da culpa de uma pessoa. Ou também vamos relativizar a proibição da pena de morte a depender de eventuais pressões políticas conjunturais ou clamor social?

A ser assim, o direito perde em sua autonomia para responder de forma consistente às demandas de uma sociedade complexa. Por isso, entendemos que a Corte cedeu onde deveria ter sido a grande âncora do nosso constitucionalismo tropical. Agindo dessa maneira, contribuiu com a erosão de sua própria legitimidade, num caminho sem volta.

Se o Tribunal quis zelar por valores caros à sociedade brasileira, como dito no voto do relator, deveria ter escolhido agir na proteção intransigente da constituição e das garantias individuais, contra tudo e contra todos. Deveria ter mostrado à sociedade brasileira que segurança jurídica não é adequação à “opinião pública”, mas certeza de que questões jurídicas serão tratadas juridicamente.   


Flávia Santiago Lima. . Flávia Santiago Lima é Profa. Dra. de Direito Constitucional e Administrativo do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. . .


Glauco Salomão Leite. . Glauco Salomão Leite é Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (Graduação, Mestrado e Doutorado) e da UFPB. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Wrong Way // Foto de: AZHAR MOHD ARIS // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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