O atendimento dos indígenas crianças vítimas ou testemunhas de violência: a urgência na efetivação da Doutrina da Proteção Plural    

01/06/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

1. A garantia e efetivação dos direitos dos indígenas crianças, bem como o atendimento após as violências sofridas por estes, que podem ocorrer de modos específicos em decorrência da especial vulnerabilidade motivada historicamente pela ineficiência do Estado Brasileiro na proteção aos povos indígenas e aos seus direitos, necessitam, imprescindivelmente, ser manejados em conformidade com a Doutrina da Proteção Plural, diante da inadequação da Doutrina da Proteção Integral à realidade sociocultural dos indígenas crianças.

Neste sentido, é necessário a reestruturação do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), de modo que este artigo se dedicará ao momento crucial para o indígena criança vítima ou testemunha de violência: a ocasião na qual é atendido pelo SGDCA para a oitiva a respeito da violência sofrida ou presenciada, destacando o status normativo a respeito da temática, objetivando identificar de qual modo as normas protetivas têm se adequado aos indígenas crianças.

Assim sendo, o presente artigo tem por problema investigado a seguinte questão: a normatização da escuta especializada e do depoimento especial alcança os indígenas crianças vítimas ou testemunhas de violência? Para a análise do problema investigado citado acima, este artigo tem por objetivo geral a apresentação do panorama legal atual a respeito da temática pesquisada, para analisar de que forma as normas jurídicas atendem aos indígenas crianças vítimas ou testemunhas de violência, no que se refere ao momento do depoimento, seja em sede policial ou judicial. E, por objetivos específicos: de qual maneira a legislação se adequa às diversidades culturais e linguísticas dos indígenas crianças; de qual forma a legislação complementa as lacunas do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei notadamente universalista, e adapta os serviços com a finalidade de atender adequadamente aos indígenas crianças vítimas ou testemunhas de violência, sendo imprescindível tecer notas a respeito da necessidade da representatividade indígena nos espaços de decisão e as violências sofridas pelos indígenas crianças em virtude das violações causadas pela destruição de seus territórios e as vulnerabilidades decorrentes disto.

2. O desrespeito à diversidade tem se apresentado como obstáculo à efetivação dos direitos da criança e do adolescente, de modo que após a superação do adultocentrismo e a consequente percepção e consideração da criança e do adolescente como detentores de direitos específicos em virtude da condição peculiar de seres humanos em desenvolvimento, sendo esta a base da Doutrina da Proteção Integral, apresenta-se como imprescindível e urgente a visibilização da necessidade e a construção da Doutrina da Proteção Plural.

A respeito da Doutrina da Proteção Integral, Cristiana Dupret afirma o que segue:

A doutrina da proteção integral foi adotada no lugar da antiga e ultrapassada doutrina da situação irregular, que era o parâmetro do antigo Código de Menores (Lei 6.697/1979). O objetivo da antiga Lei era tratar apenas das situações dos menores infratores principalmente para afastá-los da sociedade. Naquela época, os menores eram apenas tão-somente objeto de imposição de medidas de caráter indeterminado. Com a revogação desta Lei e com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, implementou-se, no Brasil, a adoção da doutrina da proteção integral, passando a criança e o adolescente a serem verdadeiramente reconhecidos como sujeitos de direitos. O ECA dirige-se a toda e qualquer criança e adolescente em situação regular ou situação de risco, garantindo a elas, em conjunto, todos os direitos especiais à sua condição de pessoa em desenvolvimento (DUPRET, 2012, p.26). 

Deste modo, a Doutrina da Proteção Integral, nos termos do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, apresenta-se como discriminatória e insuficiente na proteção dos direitos dos indígenas crianças, em virtude da falta de adequação normativa à diversidade sociocultural. Em relação à Doutrina da Proteção Plural e ao direito à não discriminação, Oliveira afirma que:

O direito a não discriminação pretende garantir a correção de práticas socioinstitucionais estruturadas em hierarquizações sociais, porém não evidencia diretamente o reconhecimento das diferenças socioculturais, tampouco estabelece critérios diferenciados para a reformulação dos conceitos jurídicos, com o que se conclui tratar-se de proposição que reduz a potencialidade da diversidade às questões de correção social, mas não de empoderamento da identidade cultural (OLIVEIRA, 2014, p. 132-133).

Considera-se, portanto, a Doutrina da Proteção Plural como complementar à Doutrina da Proteção Integral, em virtude da existência e vivência de diversas infâncias, sendo indispensável que o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente se reestruture tanto no que se refere à representatividade nos ambientes de decisão quanto na disponibilização de profissionais e protocolos de atendimento que considerem a diversidade e a pluralidade de infâncias e as diferentes realidades socioculturais. A respeito da proteção plural, Oliveira destaca que: 

Ao invés do princípio do melhor interesse da criança, a proteção plural estabelece o princípio da autodeterminação ou livre determinação dos povos como fundamento jurídico orquestrador da revisão e reconversão dos direitos, da perspectiva individual do direito à vida para outra coletiva do direito à vida dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2014, p. 136).

À vista do exposto, demonstra-se a Doutrina da Proteção Plural como fundamental para que os Direitos da Criança e do Adolescente sejam efetivados na vida dos indígenas crianças, com enfoque integral, ou seja, com alcance maior do que o que visa superar discriminações, tendo em vista a importância da participação e do empoderamento dos povos indígenas, como também o respeito à autodeterminação.

3. A violência praticada contra a criança e o adolescente, nos termos da legislação pátria vigente, também é tema disciplinado de maneira universalista, sem a necessária análise a respeito de questões socioculturais, bem como sem dar a devida atenção a crimes cometidos em contextos específicos, como os que vitimam indígenas crianças em contextos de grandes empreendimentos e os praticados em virtude, por exemplo, da grilagem de terra; do roubo de madeira; dos garimpos ilegais e dos entraves para a demarcação de terras indígenas.

Neste contexto, se faz necessária a reflexão a respeito das consequências nocivas aos indígenas crianças no que tange à exposição a tantas violações aos seus direitos e aos de seus povos, temática que necessita sair da invisibilidade e que será explorada em estudo posterior.

Indispensável, porém, é a referência aos ataques atuais a povos indígenas, a exemplo do ocorrido na data de 26 de maio de 2021, no qual, de acordo com nota expedida pela COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, lideranças indígenas da TI Munduruku foram atacadas com tiros e incêndios às suas casas.

Assim, indiscutível é o fato de que indígenas crianças são vítimas de diversos tipos de violências e que na condição de vítimas ou testemunhas de crimes são direcionadas ao Sistema de Garantia de Direitos, procedimento que deve, obrigatoriamente, ser culturalmente apropriado; respeitar a diversidade sociocultural; o grau de desenvolvimento; a língua utilizada na comunicação e demais particularidades que o caso concreto requerer, tendo em vista que cada violação a direitos é única e deve ser atendida de acordo com as suas particularidades.

4. Assim sendo, a respeito dos parâmetros para interpretação dos direitos e adequação dos serviços relacionados ao atendimento de Crianças e Adolescentes pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, a Resolução nº 181, de 10 de novembro de 2016 do CONANDA vincula a aplicação da legislação pertinente à infância e à adolescência de modo a considerar as garantias jurídicas presentes na legislação específica dos Povos e Comunidades Tradicionais, assim como a autodeterminação, as culturas, os costumes, os valores, as formas de organização social, as línguas e as tradições, de modo a assegurar que possam ter acesso aos serviços culturalmente apropriados.

O momento da escuta judicial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, procedimento obrigatório denominado de Depoimento Especial, é regido pela Lei 13.431-2017, pelo Decreto 9.603/2018 e pela Resolução nº 299, de 05 de novembro de 2019 e, dentre as normas citadas acima, a Resolução nº 299, de 05 de novembro de 2019 é a que apresenta maior sofisticação no que se refere à garantia de adequação dos procedimentos do Depoimento Especial Judicial a indígenas crianças, considerando, dentre outras normativas, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, a qual assegura o direito de membros desses povos de compreender e se fazer compreender em processos legais, mediante intérprete ou outros meio eficazes.

Neste sentido, a Resolução nº 299/2019 vincula os Tribunais de Justiça a compor a Equipe Técnica interprofissional com profissional que possua formação ou conhecimento na área de antropologia para inquirir crianças e adolescentes pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais bem como que, caso necessário à efetiva comunicação com criança e adolescente de origem indígena ou que pertença a minorias étnicas ou linguísticas, será garantido o intérprete ou outro meio eficaz.

Portanto, o estágio atual da normatização do depoimento especial judicial alcança a adequação do serviço ao atendimento de indígenas crianças vítimas ou testemunhas de violência, obrigando a disponibilização de intérprete ou outro meio eficaz que torne efetiva a comunicação e a participação de profissional com formação ou conhecimento na área da Antropologia, respeitando a diversidade cultural e a existência de diferentes infâncias, no ensejo de garantir a proteção plural e adequada a cada um destes sujeitos de direitos. A partir disto, imprescindível é a devida aplicação destas normas e a efetivação integral destes direitos, levando sempre em consideração a importância da formação continuada dos profissionais responsáveis por estes procedimentos, almejando a aplicação da Doutrina da Proteção Plural.   

 

Notas e Referências

BRASIL, Decreto Presidencial nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

BRASIL, Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

BRASIL, Resolução n° 229, de 05 de novembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, de que trata a lei nº 13.431/2017.

CONANDA, Resolução nº 181, de 10 de novembro de 2016. Dispõe sobre os parâmetros para interpretação dos direitos relacionados ao atendimento de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT. Brasília: OIT, 2011 1v.

DUPRET, Cristiane. Curso de direito da criança e do adolescente. 2.ed. Belo Horizonte. Ius, 2012.

OLIVEIRA, Assis da Costa. Indígenas crianças, crianças indígenas: perspectivas para construção da doutrina da proteção plural. Curitiba: Juruá, 2014.

Alerta: Lideranças Munduruku sob ataque de garimpeiros no Pará. Publicada em 26-05-2121 e acessada em 27-05-2021: https://coiab.org.br/conteudo/alerta-lideran%C3%A7as-munduruku-sob-ataque-de-garimpeiros-no-par%C3%A1-1622055129382x532736619387 289600

 

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