I - INTRODUÇÃO
Considerando a contemporaneidade e a vinda da Lei nº 13.964 “pacote anticrime”, com o julgamento das ADIs 6.298, 6.300 e 6.305, reconhecendo a sua constitucionalidade, sobreveio ao Código de Processo Penal o art. 3-A, onde deixa expresso que o sistema adotado no Brasil é o acusatório. Com a inserção deste dispositivo, reforçou-se a incompatibilidade de diversos artigos presentes em nosso CPP, dentre eles o art. 385, o qual estabelece que, o julgador, nos casos de ação penal pública, poderá condenar o réu mesmo que o Ministério Público tenha requerido a absolvição, além da possibilidade de reconhecer agravantes, mesmo que não tenha havido alegação.
Neste artigo, buscaremos discorrer sobre a incompatibilidade do artigo mencionado para/com o sistema penal acusatório, dando ênfase nas violações que tal artigo contém, além de discorrer sobre as contradições geradas a inúmeros princípios do ordenamento jurídico brasileiro.
II - SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO E INQUISITÓRIO
O art. 385 do CPP é uma violação expressa ao sistema acusatório, já que é notório que a principal diferença entre os sistemas processuais é que no acusatório há separação entre o papel de acusar que se faz presente na figura do Ministério Público, onde este é o titular das ações penais públicas e para o papel de julgar se tem a figura do magistrado, o qual permanece entre as partes sendo equidistante, tendo este como função decidir sobre as alegações trazidas com base nas provas colhidas legalmente, sendo o ponto fundamental a imparcialidade, devendo o julgador manter-se inerte, só se manifestando quando provocado. Já para o exercício da defesa, tem-se a figura do advogado, o qual busca garantir os direitos do acusado, mostrando sua versão dos fatos narrados na exordial acusatória.
Antes de haver essa previsão em nosso código, havia muita discussão sobre qual era o sistema adotado em nosso ordenamento, muitos defendiam que tratava-se do sistema acusatório, visto que a nossa Constituição Federal prevê a separação entre os papéis de acusar e julgar, mas ainda existiam diversas previsões contrárias a este modelo de sistema, as quais algumas ainda se fazem presentes, cito como exemplo a possibilidade de o magistrado arrolar testemunhas, medida prevista expressamente no art. 209, do CPP, fazendo com que muitos viessem a interpretar de forma diversa, como a possibilidade de somente a partir do pedido das partes, que o magistrado poderia arrolar testemunhas, já que se não houvesse requerimento ele estaria atuando de ofício. O que ocorre é que na redação do artigo mencionado não há vedação do magistrado arrolar, por vontade própria, testemunhas, mesmo sem requerimento. Ainda, este artigo era utilizado como fundamento para a “busca da verdade real”, o que hoje se tem ciência que é uma falácia. Outros argumentavam que seria para uma melhor elucidação dos fatos, mas como sabemos, se houver dúvida, o magistrado deve decidir em favor do réu, como preceitua o princípio do “in dubio pro reo”. Destaca-se ainda que outras prerrogativas contrárias ao sistema adotado já foram retiradas, como a antiga possibilidade de o magistrado decretar de ofício a prisão preventiva do acusado, sem que houvesse requerimento.
O sistema inquisitório tem por sua vez a figura de acusar e julgar na mesma pessoa, o que hoje nosso ordenamento posiciona-se contrário, não somente pelo que estabelece no art. 3-A do CPP, como também há diversos princípios e garantias fundamentais estabelecidas na Constituição Federal. Alguns exemplos das incompatibilidades deste sistema mencionado é porque este fere o princípio da imparcialidade do juiz, visto que a função de acusar e julgar eram concentradas na mesma pessoa, não importando a forma em que a prova era produzida. Outros princípios violados são: O contraditório; ampla defesa, entre outros.
Cabe destacar que, neste modelo, também existia a valoração das provas, sendo a principal, a confissão do acusado sobre os fatos, o que acabou gerando ao longo da história inúmeras brutalidades, para que a confissão fosse atingida, como ocorreu no período na idade média, onde a igreja acusava e torturava, para que obtivesse a confissão do delito praticado. Muitas das vezes as pessoas confessavam um crime que sequer haviam cometido, já que apenas o faziam para cessar o sofrimento gerado pela tortura. Nesse tempo os fins justificavam os meios, é da referida época que advém o nome do sistema apontado, chamado de “inquisitório”.
III - A INCOMPATIBILIDADE DO ART. 385
O art. 385 do CPP, é uma aberração ao sistema processual penal, deixando evidente a dissonância de tal artigo, o qual encontra-se em desacordo com o disposto no código atual, em todos os aspectos. Vale destacar que, este possui redação original de 1941 e como se sabe o presente código teve inspiração no “Código Rocco” da ditadura militar de Mussolini, de modo que o referido explica muito sobre a previsão deste artigo. Cumpre mencionar que, foi protocolada no dia 29 de janeiro de 2024 - através da Associação Nacional da Advocacia Criminal (ANACRIM) - uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.122, buscando que este artigo seja expurgado de nosso CPP.
O entendimento de que o referido dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal vem se intensificando nos últimos anos, e com a advinda do “pacote anticrime” este ganhou ainda mais ênfase. Diversos doutrinadores mencionam sobre esse resquício anacrônico, conforme podemos observar na fala de Geraldo Prado: “É nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República). (PRADO, 2006, p. 116-117)”.
Além do mencionado acima, é possível verificarmos a incompatibilidade na própria figura do Juiz, onde há a ideia de que o julgador possa condenar, sem que haja requerimento por parte de acusação, pois, este ensejaria no sistema inquisitório, em razão do magistrado assumir o papel de acusar, assim, ferindo diversos princípios, como a imparcialidade e a equidistância - a qual este deveria manter de ambas as partes - ainda, cabe destacar que ao julgar dessa forma ele estaria incorrendo no princípio da correlação, o qual estabelece que o magistrado deve decidir com base no pedido formulado, sendo assim, caso este profira sentença condenatória, mesmo com o pedido de absolvição formulado pelo parquet, incorreria em uma sentença extra petita, desta forma, a absolvição seria medida impositiva, visto que além do mencionado, conforme estabelece o art. 129, I, da Constituição Federal o Ministério Público é titular das ações penais públicas, portanto, se este deixa o seu papel de acusador, requerendo a absolvição do acusado, o Juiz estaria vinculado ao pedido, devendo absolver o acusado do fato narrado na inicial acusatória.
Pode-se realizar uma analogia no artigo, analisando outras previsões legais, como por exemplo, para a decretação de prisão preventiva, onde é necessário requerimento para que esta ocorra, de igual forma, esta deveria ocorrer nos casos de pedido de absolvição. Conforme o exposto, menciono a jurisprudência abaixo que corrobora com o referido:
APELAÇÃO - TRÁFICO DE DROGAS - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - SISTEMA ACUSATÓRIO - ABSOLVIÇÃO DECRETADA. I - Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador. II - O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está a cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor. III - Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório. IV - A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público. (TJ-MG 100240948066680011 MG 1.0024.09.480666-8/001(1), Relator: ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO, Data de Julgamento: 23/03/2010, Data de Publicação: 12/04/2010).
Destaco, que caso o magistrado profira sentença condenatória, mesmo com o pedido de absolvição, este estará violando o princípio do contraditório. Como se sabe, após as alegações finais, do órgão ministerial, quem se pronuncia é a defesa, a fim de defender-se de todas as acusações e pedidos formulados pelo MP, caso esta peça a absolvição e o magistrado o condene, este iria assumir o papel do acusador, desta forma, a defesa não teria a devida oportunidade de se manifestar sobre todas as acusações trazidas, já que o magistrado é quem decide e tem a palavra final.
Ainda, em relação a possibilidade de reconhecer agravantes, sem que haja alegação, este afronta também o princípio da ampla defesa, pois se o réu deve ter plena ciência sobre o que está sendo acusado, para que possa exercer seu direito de defesa de todas as formas possíveis, a agravante deve estar presente na exordial acusatória, como preceitua o art. 41, do CPP, onde diz que a denúncia deverá expor todos os fatos, circunstâncias e classificação do delito que estão sendo imputados, para que assim a defesa possa produzir prova sobre a totalidade da imputação, durante a instrução do processo:
A exposição do fato criminoso na peça vestibular é elementar do sistema acusatório. O acusado se defende da narrativa dos fatos e não da tipificação do delito. A obrigação de provar a culpa no sistema acusatório é da acusação, limitando-se o acusado a se defender do narrado por esta na peça acusatória. Destarte, como se vê, a narrativa dos fatos vincula a defesa e o próprio juiz na persecução penal. (MARCELO ZAGO; FLÁVIO ROLIM; NAFÊZ IMAMY CURY, 2023, p. 213).
Além do exposto acima, é possível verificar novamente uma violação ao princípio do contraditório já que a defesa não teria tido a oportunidade de se manifestar sobre, nem de produzir provas sobre o fato novo trazido pelo julgador durante a sentença.
Outro ponto crucial, para notarmos a incompatibilidade, é que no sistema acusatório é vedada atuação de ofício pelo magistrado, o que deixa ainda mais evidente a incongruência do referido artigo, visto que “dá legitimidade” para que esse tenha essa prerrogativa, atuando assim, como acusador e julgador, na sentença. Da mesma forma se posiciona Aury Lopes Jr:
Igualmente grave – e nula a sentença – é a previsão feita na última parte do art. 385 do CPP: poderá o juiz reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada na acusação. Aqui, sequer invocação existe. Menos ainda exercício integral da pretensão acusatória para legitimar a punição. Pior ainda, está o juiz, literalmente, acusando de ofício para poder, ele mesmo, condenar. (LOPES JR., 2024, p. 1098)
Pode-se perceber portanto que o julgador com respaldado na própria lei processual penal viola os princípios do contraditório, ampla defesa e a correlação, como não bastasse, esse também vai contra o sistema processual adotado no art. 3-A do próprio CPP, que diz que, o sistema é “acusatório”, sendo acusatório, o magistrado não pode atuar de ofício, tendo a necessidade de ser provocado, já que é terceiro e tem o dever de ser imparcial, e o art. 385 do mesmo código lhe dá “legitimidade” para reconhecê-lo de ofício, visivelmente está em desacordo, já que advém da edição original do CPP de 1941, o qual tem inspiração em um código ditatorial com viés inquisidor.
IV - ENTENDIMENTOS SOBRE O REFERIDO ARTIGO
Em relação ao exposto, pode-se analisar as opiniões de alguns tribunais sobre o artigo mencionado, em que destaco o posicionamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que entendeu que o magistrado, em caso de pedido de absolvição por parte do MP, deve proceder a absolvição, visto que não há requerimento para que este proceda a condenação, prestigiando a distinção entre as funções do acusador e do julgador. Ainda, o julgado diz que caso o magistrado decida pela condenação, este estará se confundindo com a figura do acusador e ainda violando diretamente o princípio do contraditório.
Ante o exposto, cito o entendimento presente na Comarca de Canoinhas, a qual o magistrado adota também o posicionamento mencionado, de que em caso de pedido de absolvição por parte do parquet, este deve proceder a absolvição, para que não haja violação ao sistema penal acusatório, ainda, este fundamenta em suas decisões que o art. 385, do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal. (autos. 50034061620248240015, 50022491320218240015 e 50089237020228240015)
Ainda, menciono o voto do ministro José Otávio de Noronha, do julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), autos do AgRg no AREsp 1.940.726:
Não desconheço a existência de inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem a possibilidade de prolação de sentença condenatória independentemente de a acusação postular, em alegações finais, a absolvição do réu. Não comungo, data venia, desse entendimento por considerar que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve clara opção pelo sistema acusatório. De fato, a Carta Magna reserva ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública (artigo 129, I). E a acusação não é atividade que se encerra com o oferecimento da denúncia, já que a atividade persecutória persiste até o término da ação penal. Assim, considero que, quando o Ministério Público requer a absolvição do réu, ele está, de forma indireta, retirando a acusação, sem a qual o juiz não pode promover decreto condenatório, sob pena de acusar e julgar simultaneamente. (BRASIL, 2022).
Vale mencionar que a inclusão do art. 3-A no CPP, vem aos poucos alterando o posicionamento e declinando a reconhecer que este dispositivo legal está em dissonância com a CF, como observa-se do julgado acima, alguns ministros do STJ já vêm tendo esse entendimento.
V - CONCLUSÃO
Preteritamente, o Código Penal e o Código de Processo Penal, ambos da década de 40, foram inspirados em um código que continha um sistema de viés inquisitório, posteriormente, sobreveio a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em 1988, a qual previu a separação entre as funções de acusar e julgar, totalmente distinta do sistema inquisitório. No tocante, é notório que o CPP acabara por ficar em desacordo com a CF, mesmo com as inúmeras alterações realizadas nele, virando uma verdadeira colcha de retalhos, que ainda assim, permanecem os resquícios anacrônicos.
Não obstante, no que diz respeito ao respectivo artigo, este, viola veementemente os princípios do contraditório; ampla defesa; correlação; imparcialidade do juiz e a equidistância, além de ser totalmente contrário ao sistema acusatório brasileiro.
Com o passar das décadas, e a partir da recente alteração, vem se intensificando os embates sobre o referido artigo, diversos magistrados e doutrinadores já adotam o posicionamento de que este não foi recepcionado pela CF, o que o Supremo Tribunal Federal (STF) já analisou por diversas vezes e até o presente momento mantêm o posicionamento de que este é constitucional. No começo do presente ano (2024), conforme exposto no artigo, foi protocolada uma ADPF, a fim de que com as mudanças recentes, esta decisão reconheça a inconformidade do referido dispositivo legal.
Ressalto que não há o que se falar em inconstitucionalidade, visto que o CPP é anterior a CF, portanto, a discussão deve se tratar da não recepção do art. 385, do CPP.
Ainda, destaco que há grande resistência dos tribunais, por entenderem que o magistrado irá perder o “poder”, e ficará refém do MP, todavia, em análise, ele somente ficará vinculado aos pedidos formulados, conforme já estabelece o princípio da correlação, entretanto, este é mitigado pelo referido dispositivo.
Derradeiramente, pôde-se colher de todo o mencionado que o processo corresponde às partes, sendo que o magistrado somente deve atuar como detentor do direito, terceiro e imparcial e não como parte, o que apenas reforça que o art. 385 do CPP viola o sistema acusatório.
Notas e referências:
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