Por Fábio Salum - 30/03/2017
Dispõe o art. 385 do Código de Processo Penal que “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”[1].A análise das normas não apenas sob seu aspecto estritamente literal é primordial para o entendimento do Direito. Diversas outras situações devem ser consideradas, como o momento histórico de sua elaboração, os objetivos do legislador e a sua consonância com os tempos atuais.
Antes de analisar de forma mais contundente o dispositivo legal, é necessário lembrar que o Código de Processo Penal atualmente vigente no Brasil foi elaborado em 1941. Com bases ideológicas bem definidas, inspirou-se, à época de sua elaboração, na legislação processual penal italiana, a qual foi produzida na década de 1930, na égide do regime fascista[2], tendo, portanto, um viés autoritário e inquisitório.
De natureza arbitrária, por razão do paradigma escolhido, o princípio que norteava o Código de Processo Penal era a presunção de culpabilidade, com ótica extremamente inquisitiva.
Com o passar dos anos e com a necessidade de se adequar ao seu tempo, ocorreram algumas alterações legislativas e a flexibilização dos entendimentos jurisprudenciais, com o CPP caminhando, ainda que a passos lentos, para uma maior efetivação das garantias e liberdades individuais.
No entanto, a grande mudança no paradigma do sistema processual penal brasileiro veio com o promulgação da Constituição Federal de 1988, que, visando coibir as arbitrariedades do período da ditadura, positivou diversas garantias ao cidadão e ao acusado em um processo criminal. Desta forma, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não previsto expressamente, um sistema processual penal tradicionalmente acusatório.
O sistema processual penal acusatório tem, como seus elementos fundantes, os princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa, da paridade de armas, da imparcialidade do juiz e, principalmente, seu fundamento máximo de existência: o princípio da separação entre juiz e acusador. Sem eles, não há um processo penal justo e garantidor de direitos.
Assim, a aplicação do art. 385 do Código de Processo Penal, que autoriza que um magistrado possa agir contrariamente ao formulado pela acusação em prejuízo do acusado, remonta aos tempos mais primórdios do sistema inquisitório, amplamente afastado pelo advento da Constituição Federal de 1988.
Ao proferir sentença condenatória na ausência de manifestação do Ministério Público neste sentido, o juiz automaticamente sai da sua posição de inércia, onde deve atuar somente por provocação do órgão acusador, o titular do exercício da pretensão punitiva estatal, para se colocar na função de parte do processo penal e renovar os maiores anseios inquisidores. É uma violação clara ao axioma garantista do nullum indicium sine accusatione de Ferrajoli[3].
Como pode o juiz, no auge de sua imparcialidade, condenar quando ambas as partes do processo penal requereram a absolvição? Qual o fundamento jurídico – além de um artigo de lei ultrapassado e inconstitucional - dentro de um sistema processual penal acusatório, para decisões deste caráter? Não há.
Acerca do assunto, leciona Aury Lopes Júnior:
E por que, então, o juiz não pode condenar quando o Ministério Púbico pedir a absolvição? Exatamente porque o poder punitivo estatal — nas mãos do juiz — está condicionado à invocação feita pelo Ministério Público através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio. Também é rasgar o Princípio da Correlação, na medida em que o espaço decisório vem demarcado pelo espaço acusatório e, por decorrência, do espaço ocupado pelo contraditório, na medida em que a decisão deve ser construída em contraditório (Fazzalari).
O poder punitivo é condicionado à existência de uma acusação. Essa construção é inexorável, se realmente se quer efetivar o projeto acusatório da Constituição. Significa dizer: aqui está um elemento fundante do sistema acusatório.[4]
Neste sentido, ainda que contra as correntes majoritárias dos tribunais, decidiu de forma inovadora o TJ/MG:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO DOS REUS DECRETADA - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - SISTEMA ACUSATÓRIO.
I - Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador.
II - O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor.
III - Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório.
IV - A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público.[5]
Há também o entendimento de nulidade da decisão que condena o acusado quando o órgão acusador requer a absolvição com fundamento na violação ao princípio do contraditório. Se o titular da ação penal, na sua oportunidade de tentativa de exercício do poder punitivo, argumenta e opina fundamentadamente em favor da absolvição do acusado, do que então o acusado irá se defender?
A ampla defesa por meio do contraditório fica inviável, ao passo que as alegações finais são o momento mais importante da defesa se manifestar em um processo criminal e, no caso de o órgão acusador requerer a absolvição, as alegações ficam restritas, ao passo de que não se sabe exatamente do que se defender, tendo em vista que os pedidos de quem tem legitimidade para acusar, já foram no sentido da absolvição.
Corroborando com o entendimento, leciona Geraldo Prado:
Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a condenar naqueles processos em que o Ministério Público haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo 385 do Código de Processo Penal Brasileiro. Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).[6]
Assim sendo, em caso de pedido de absolvição do acusado por parte do órgão acusador, o magistrado não pode condenar, tampouco reconhecer agravantes (e muito menos, causas de aumento de pena, diante da falta de previsão legal) qualquer que seja a situação.
E mais, isso em momento algum se deve ao fato de o julgador simplesmente concordar com as teses da acusação ou da defesa – como normalmente ocorre na praxe forense, já que o Ministério Público somente pleiteia uma absolvição diante da inexistência de provas – e sim, por respeito ao sistema acusatório e todos os princípios que norteiam a sua vigência.
Ausente a manifestação expressa pela condenação por parte do Ministério Público, titular da ação penal, não há como ser proferida sentença condenatória sem que o juiz se coloque automaticamente na condição de parte no processo penal, ferindo de morte o sistema acusatório e renegando séculos de batalhas necessárias para a efetivação das garantias individuais. Estar-se-ia criando um juízo de exceção em pleno século XXI, algo frontalmente rechaçado pela Constituição Federal.
Desta forma, levando-se em consideração a hierarquia de normas e a supremacia da Constituição, todos os dispositivos do Código de Processo Penal (dentre eles, o art. 385) que sejam de natureza inquisitória não foram recebidos pela CF/88 e são, portanto, inconstitucionais e impossíveis de serem aplicados.
Para tal fim, a matéria deve ser discutida de forma adequada (de forma técnica, e não populista) pelos Tribunais Pátrios para que se caminhe para uma leitura constitucional do Código de Processo Penal.
Notas e Referências:
[1] BRASIL. Código de Processo Penal (1941) Brasília, DF, 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 13. Fev. de 2015.
[2] Ibidem.
[3] FERRAJOLI. Luigi, Direito e Razão, 4ª Edição, Editora Revista dos Tribunais, pg.522.
[4] LOPES JÚNIOR. Aury, Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao>. Acesso em 13. Fev. de 2015.
[5] MINAS GERAIS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso em Sentido Estreito 1.0024.05.702576-9/001, Relator: ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO, Data de Julgamento: 13/10/2009, Data de Publicação: 27/10/2009.
[6] PRADO. Geraldo, Sistema Acusatório, 4ª Edição, Editora Lumen Juris, pg. 116.
Fábio Salum é Advogado inscrito na OAB/SC sob o nº 36.314. Proprietário do Escritório Fábio Salum Advocacia e Consultoria Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST). Pós-graduado em Ciências Criminais no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Pós-graduado em Direito Penal Econômico na Universidade de Coimbra (Portugal). Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Cursou na Universidad de León (Espanha) as disciplinas de Derecho Mercantil (Direito Empresarial), Derecho Administrativo (Direito Administrativo) e Derecho del Trabajo (Direito do Trabalho). Membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC (2014-2016). Membro da Comissão de Direito Penal da OAB/SC. Membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (AACRIMESC). Sócio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
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