O ARTIGO 19 DO MARCO CIVIL DA INTERNET É CONSTITUCIONAL

14/01/2020

Coluna Espaço do Estudante

O Supremo Tribunal Federal vai apreciar a constitucionalidade do artigo 19, do Marco Civil da Internet. O julgamento deveria ter ocorrido no dia 4 de dezembro de 2019, porém, a corte optou por adiar a sessão, visando a realização de prévias audiências públicas, com o intuito de gerar maior aprofundamento a respeito do assunto. Trata-se da análise do tema de repercussão geral 987, vinculado ao Recurso Extraordinário 1.037.396/SP, sob a relatoria do Ministro, e atual presidente da corte costitucional, Dias Toffoli.

A discussão cinge-se acerca da necessidade da prévia e específica ordem judicial de exclusão do conteúdo propagado para gerar a responsabilidade civil do provedor, em razão de danos provocados por terceiros. Pois bem, cumpre inicialmente explanar como funciona a responsabilidade civil nestes casos para, em seguida, explorar o leading case em questão.

Ora, o Marco Civil da Internet é algo inédito e original. Sua construção foi algo que só poderia perfectibilizar-se na presente era. Originária de uma consulta pública feita na Internet, iniciada em 2009, fazendo com que passasse pelo aval do Congresso Nacional entre 2011 e 2014, sendo que, após sua promulgação, foi alvo de elogios pelo mundo afora, influenciando outras legislações semelhantes, tal qual a italiana com sua Declaração de Direitos da Internet. É uma lei com caráter claramente principiológico, colocando o país na vanguarda do debate sobre os direitos na internet, com privilégio para a liberdade de expressão e consagração da neutralidade na rede.

Com isso, pretende-se assegurar consequências advidas de colisões de direitos envolvendo particulares ao utilizar redes sociais, por exemplo. No entanto, a problemática que envolve o caso, insurge na relação entre o ofendido e o provedor, e não entre aquele e o ofensor. Dessa forma, cumpre esclarecer o que se enquadra como provedor.

No entendimento do Superior Tribunal de Justiça, os provedores são aqueles que oferecem serviços ligados ao funcionamento da rede mundial de computadores, ou por meio dessa. Trata-se de gênero, da qual são espécies: a) provedores de backbone, que detém estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informações; b) provedores de acesso, que adquirem infraestrutura dos provedores de backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes conexão com a Internet; c) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; d) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na Internet; e) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos usuários ou mesmo os provedores.[1]  Por sua vez, o Marco Civil da Internet trata especialmente de dois tipos de provedores, quais sejam: a) aqueles dedicados à promover o acesso à internet e; b) aqueles que disponibilizam as aplicações na rede. Portanto, seja jurisprudencialmente ou por meio da legislação analisada, o Facebook, Google, Twitter, Instagram, dentre outras ferramentas, são consideradas provedores.

Carlos Afonso e Ronaldo Lemos ilustram três entendimentos sobre a responsabilidade decorrente da relação entre o utilizador e o provedor: a) não responsabilização dos provedores pelas condutas de seus usuários; b) a responsabilidade objetiva do provedor, com base na teoria do risco, amplamente adotada pelo Código Civil de 2002; c) a responsabilidade subjetiva, havendo aqueles que consideram a responsabilização decorrente da não retirada do conteúdo reputado como lesivo após o provedor tomar ciência do mesmo e os que entendem ser o provedor responsável apenas em caso de descumprimento de ordem judicial. (2016; p. 69-70).

Como regra geral, a posição adotada pelo Marco Civil da Internet foi essa última, isto é, responsabilidade subjetiva do provedor, sendo caracterizado o ato ilícito somente se não cumprir a ordem judicial individualizada com a determinação necessária para remover o conteúdo. Nesse sentido, reza o artigo 19, do diploma:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Portanto, o provedor só será responsável após uma determinação de ordem judicial solicitando a remoção do conteúdo. Omitindo a ordem mandamental, incorrerá em responsabilidade solidária com o autor da divulgação do conteúdo.

Há, no entanto, duas exceções. Trata-se de casos envolvendo vingança pornográfica e direitos do autor. Essas duas hipóteses dependem tão somente da notificação da suposta vítima. Omitindo o pleito, deverá o provedor ser responsabilizado judicialmente. Ainda assim se trata de responsabilidade subjetiva, mas dependente da notificação do particular e não do Judiciário.

Acerca da pornografia de vingança, ilustra o artigo 21, do Marco Civil da Internet:

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.

Essa maior facilidade de responsabilização dos provedores em casos deste jaez se deve a infeliz repetição destes atos. Esses, que muitas vezes acabam por resultar em suicídios de meninas vítimas de reações injustificadas e evidentemente desproporcionais de antigos parceiros ou parceiras. Contudo, cumpre ressaltar que a responsabilidade do provedor está vinculada a “deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos de seu serviço, a indisponibilização do conteúdo”.

Esclarecidas as regras gerais, cumpre partir para o leading case.

O Recurso Extraordinário que será examinado pela jurisdição constitucional é proveniente de São Paulo. Surge, objetivando a incidência da hipótese geral de responsabilidade civil no Marco Civil da Internet a casos considerados graves, vinculados a perfis falsos na rede social Facebook. Em primeira instância, o Juizado Especial da Comarca de Capivari, dentre outros pormenores, afastou a responsabilidade do provedor, visto que prontamente cumpriu a ordem judicial determinada, removendo o conteúdo que estava causando prejuízo ao demandante.

Todavia, em sede de recurso, a Turma Recursal de Piracicaba, considerou que a regra contida no artigo 19, do Marco Civil da Interet, violaria as garantias constitucionais previstas em defesa do consumidor. Em suma, condicionar a responsabilidade civil dos provedores ao descumprimento da ordem judicial específica, causaria sempre uma isenção, fazendo letra morta do sistema preventivo percebido consoante os preceitos do Código de Defesa do Consumidor.

Diante disso, houve a interposição, por parte do Facebook, do Recurso Extraordinário sub examine, requerendo o afastamento da condenação por meio do reconhecimento da constitucionalidade do artigo 19, do Marco Civil da Internet. Trata-se de recurso com fundamento na suposta violação dos artigos 5º, IV, IX e XIV, e 220, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal de 1988. A partir destes, figuraria uma escolha do legislador, vinculada a privilegiar a liberdade de expressão, vedação a censura, bem como a reserva ao Judiciário, tendo em vista a necessidade de ordem específica de remoção.

A Procuradoria Geral da República já emitiu seu parecer, com o qual concordamos. Segundo a PGR, o dispositivo legal em discussão, o procedimento necessário para a remoção de conteúdo tem como intuito impedir a censura e assegurar a liberdade de expressão, tratando-se de opção legítima do legislador, encontrando respaldo constitucional para tanto.

Deveras não encontre perfeição, compreende-se uma cognição correta do legislador ao construir a responsabilidade civil do provedor nestes moldes, visto que uma responsabilidade objetiva impediria diversas ferramentas na Internet, de forma que os provedores buscariam impedir um rol de conteúdos e zelar pelo seu patrimônio. Inclusive, acredita-se que é este aspecto econômico que fez com que o legislador opta-se por tal posição, e não tanto a dita liberdade de expressão.

A responsabilidade subjetiva após notificação da suposta vítima também seria inviável, pois estariamos diante de uma espécie de privatização da justiça, de forma que o agente qualificaria o conteúdo como ofensivo consoante sua vontade. Isso também faria com que a limitação da liberdade de expressão fosse constantemente auferida. Ora, não é qualquer conteúdo que deve ser removido, e sua remoção ou não deve passar pelo crivo de um órgão imparcial e não por aquele que se sente ofendido. Contudo, atente-se que, ferramentas disponibilizadas para a remoção do conteúdo de modo extrajudicial, isto é, através de uma plataforma disponibilizada pelo provedor, será sempre uma ótima solução. Entretanto, a última palavra deverá ser do órgão judicial, pelos motivos anteriormente elencados.

Ainda, no que toca a dificuldade de responsabilidade objetiva, necessário não se olvidar da impossibilidade técnica dos provedores de evitar comportamentos lesivos por parte de seus utilizadores. E, ainda bem que é assim, visto que, se não fosse, haveria um controle generalizado dos provedores na rede, de forma a aparentar aquela sociedade descrita por George Orwell, na obra 1984, assumindo o provedor o papel do Partido.

Outro ponto que impede a responsabilidade civil imediata do provedor é o próprio nexo causal. O fato daquele ter permitido o acesso do sujeito à rede mundial de computadores não é condição direta e imediata do dano causado, mas sim o comportamento não controlado do usuário. Ora, o ilícito por parte do provedor restará configurado tão somente com o descumprimento judicial, nos moldes determinado pelo legislador. Exemplificando, então, a vítima “A” deverá acionar judicialmente o provedor “B” para que este remova o conteúdo supostamente ofensivo. O juízo competente analisará a questão e, se assim for necessário, determinará a devida remoção. Não cumprindo a ordem, o provedor “B” incorrerá em responsabilidade civil. Nessa toada, concedeu espaço central para o Poder Judiciário, sendo essa a instância legítima para definir ou não o conteúdo como ilícito, dando azo para maior segurança jurídica, seja da liberdade de expressão, seja dos negócios envolvendo a Internet.

Assim deve ser, pois é o Judiciário que assume o papel na sociedade democrática de sanar desacordos, cabendo aos magistrados e tribunais concluir o que é ou não é um ilícito, o que não exclui a possibilidade de procedimentos internos, desde que esses não sejam superiores a eventual decisão final da jurisdição. Do contrário, haveria uma constante privatização de um assunto tão delicado, especialmente tratando-se da liberdade de expressão.

Ademais, o artigo 19, do Marco Civil da Internet foi construído de modo legítimo pelo legislador, devendo ser respeitada a dignidade desta legislação (WALDRON; 2003). Ora, o preceito não impede a responsabilização do provedor, apenas lhe condiciona a um ato ilícito, isto é, o descumprimento de ordem judicial. O real ofensor, sempre poderá ser responsabilizado, desde que reste evidenciado a ilicitude no caso concreto. A condição, em si, de forma alguma pode ser qualificada como inconstitucional, estando de acordo com o princípio da inafastabilidade jurisdicional. Em outras palavras, a condição é legítima, sendo opção do legislador.

Outro argumento favorável a inconstitucionalidade poderia referir-se a afronta da economia processual, tendo em vista que seria inicialmente necessário acionar o Judiciário, para então esse emitir uma notificação e em seguida provocar um descumprimento por parte do provedor. Tal processo seria acompanhado de demasiada mora. Contudo, são inúmeros os casos semelhantes, sendo esse um notório flagelo interno do Judiciário, o que não acarreta a inconstitucionalidade das demais questões. Soma-se, ainda, a maior valorização da liberdade de expressão e impedimento de censura, os quais dispensam mais comentários, ante sua notória importância.

Ora, é possível não gostar da norma, desejar que ela seja mais favorável a eventual vítima. Todavia, não nos parece correto concluir pela sua inconstitucionalidade.

Nos resta aguardar o julgamento.

 

Notas e Referências

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Saraiva Educação SA, 2008;

BEZERRA, Arthur Coelho, WALTZ, Igor. Privacidade, neutralidade e inimputabilidade da internet no Brasil: avanços e deficiências no projeto do marco civil. Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação da Comunicação e da Cultura. 2014;

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O Marco Civil da Internet e o Meio Ambiente Digital na Sociedade da Informação: Comentários à Lei n. 12.965/2014. Editora Saraiva, 2017;

SOUZA, Carlos Afonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: contrução e aplicação. Juiz de Fora. Editar. 2016;

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Livraria do Advogado Editora, 2018;

WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Martins Fontes, 2003.

[1] STJ, Resp 1316921/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi; j. em 26.06.12.

 

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