O ART. 356, CPC, É BASE NORMATIVA SUFICIENTE PARA REGULAR O FRACIONAMENTO DECISIONAL? (FINAL)  

04/06/2019

            Em continuação, trazendo à lume outras premissas necessárias, rumo para a resposta à pergunta acima.

Já se tem em vista que o fracionamento decisório com base no art. 356, CPC, ocorre por decisão judicial, e não por força de lei. Isto porque não é da essência do procedimento comum (e de outros que lhe sejam análogos) ter esse fracionamento, algo que lhe é acidental. O fracionamento é uma especialização in concreto do procedimento comum. 

Sendo oriundo de uma decisão judicial, é fundamental determinar quais são os requisitos para que ocorra, ou, mais propriamente, o que é necessário ao surgimento do direito processual da parte (e, claro, do dever processual do juiz) a ele.

            Pela leitura do dispositivo, em especial do caput e de seus incisos, pode-se estabelecer que esse direito tem os seguintes elementos como componentes do seu suporte fático:

i) necessariamente, a existência de complexidade objetiva referente ao pedido, seja porque há cumulo de pedidos, estando um ou alguns deles pronto para julgamento, seja porque, embora em um único pedido, há possibilidade de fracionamento. A redação do caput do art. 356, CPC, é, porém, atabalhoada. Isto porque, num primeiro momento, por força da expressão: “um ou mais dos pedidos formulados”, aparentemente ela refere-se à hipótese de cumulação de pedidos; todavia, o termo: “ou parcela deles”, contido na parte final dela, acaba por deixar dúvidas se se refere à possibilidade de algum (ou alguns) dos pedidos cumulados estar, parcialmente, pronto para julgamento ou se este é possível mesmo não havendo cumulação, pois o pedido formulado tem alguma de suas partes já em pé de resolução[1]. Para viabilizar esta segunda possibilidade (arrisco dizer: verdadeiro anseio daqueles que redigiram esta disposição normativa), uma redação próxima do ideal seria a seguinte: “...não só quando o pedido formulado possa em parte ser julgado, como também, em havendo cumulação de pedidos, algum deles, no todo ou em parte, esteja em condições para tanto”. Este primeiro requisito, não obstante todos os defeitos redacionais do texto normativo, é de ordem ontológica, pois que se refere à necessária complexidade do pedido para fins de fracionamento. Ora, o que é simples não pode ser fracionado, dada sua individualidade;    

ii) e, concorrentemente, ou incontrovérsia quanto ao pedido (inciso I) ou quando ele estiver em condições de imediato julgamento (inciso II). É necessário, para mais bem esclarecer, analisar esses requisitos de modo separado:

ii.a) o termo “incontroverso” contido no inciso I do art. 356, CPC, não se refere à chamada incontrovérsia fática, causada, nos moldes dos incisos II e III do art. 374, CPC, por ato da parte referente a fato contra ela afirmado, seja porque o confessou (inciso II), seja porque não o rebateu, admissão (inciso III). Isto porque, como se sabe, a incontrovérsia quanto aos fatos não implica certeza quanto à procedência do pedido[2]. Razão jurídica pode não assistir o autor do pedido. Do jeito como o texto está construído, a única hipótese que torna o pedido incontroverso é o reconhecimento de sua procedência (alínea a do inciso III do art. 487, CPC). Ou seja, que ele tem lastro, não apenas fático, mas, acima de tudo, jurídico;    

ii.b) em adendo ao termo “condições de imediato julgamento”, o inciso II do art. 356, CPC, faz remissão ao artigo anterior, referente ao “julgamento antecipado total do mérito”[3]. Neste caso, duas alternativas se apresentam: ii.b.i) desnecessidade de produção de prova; ii.b.ii) revelia, desde que não haja, na forma do art. 349, CPC, pedido do (ex-)revel de produção de prova. Em verdade, esta segunda hipótese decorre da primeira. A desnecessidade de produção de prova dá-se por motivos dos mais variados: seja porque a parte contra quem o fato foi afirmado o confessou, seja por tê-lo admitido (= não o negar), seja até mesmo porque, conquanto tendo havido negação do fato, a prova presente nos autos é considerada suficiente[4], e isto não apenas em virtude de ela ser de tipo documental, uma vez que outros tipos de prova já podem ter sido produzidos, especialmente pela via do empréstimo probatório (art. 372, CPC) e da produção antecipada (arts. 381-383, CPC).

Em suma, tanto num caso como no outro, a questão probatória tem de estar definida para que ocorra o julgamento antecipado parcial, seja pela irrelevância, caso do inciso I, seja por desnecessidade, caso do inciso II.

E é exatamente por isso que o art. 356, CPC, não é suficiente para abarcar toda a problemática do espraiamento sentencial. Eis a hipótese referente à pergunta do título. 

                Passo com isso à justificação. É necessário, antes, pontuar-se uma questão.

            Como dito no texto anterior, o espraiamento sentencial, na forma defendida por mim e Marco Paulo Denucci di Spirito, tem a ver com o fracionamento da ação processualizada, considerando-a em sua individualidade. Ou seja, a mesma ação é resolvida de modo partido ao longo do procedimento, seja por uma simples meação (caso da ação de exigir contas), seja até na sua quase dissolução (como ocorre na execução por quantia certa).

            Materialmente[5], o que ocorre é a atualização[6] fracionada das eficácias acionais. Em vez de o serem num mesmo jato, elas o são de modo fracionado, observando a antecedência ontológica de uma eficácia sobre a outra[7].

            Assim, quando, numa ação de demarcação de terras, se declara serem os lindes entre os imóveis aqueles estabelecidos no laudo do agrimensor, não se está a esgotar o conteúdo acional, o que, caso contrário, faria da atividade posterior (de afixação dos marcos no terreno) ser referente a uma outra ação, cumulada com a demarcatória. Não, ambas fazem parte da mesma substância, sendo etapas diferentes na vida da ação.    

            Nesse sentido, não há de se falar em fracionamento decisional quando a cisão se refere a duas ou mais ações cumuladas, notadamente se entre as ações não houver nenhum vínculo de antecedência.

            Como foi explicitado acima, a redação do caput do art. 356, CPC, é, no mínimo, truncada, não restando claro se ela se limita à hipótese de cisão da decisão diante de cumulação de pedidos ou, numa interpretação da expressão: “um ou mais dos pedidos formulados”, tê-la como relativa, também, à hipótese de existir um único pedido, logo a casos de única ação. 

            Supondo a possibilidade de interpretação mais ampla, tem-se uma base normativa para o problema do fracionamento decisional nos moldes defendidos acima. É o que se faz aqui.

            Todavia, a pergunta-título é se tal base normativa é suficiente, ou seja, se ela abarca toda a dimensão da especialização do procedimento por fracionamento deciosional. Isto é o que parece ser sustentado pelos professores Fredie Didier Jr., Antonio do Passo Cabral e Leonardo Carneiro da Cunha, em obra publicada sobre os procedimentos especiais[8], na qual propõem uma nova teorização acerca deles.  

            Tal como adiantando em hipótese, o art. 356, CPC, não o é, mesmo se se ultrapassar, como feito, o vício redacional acima apontado.

            Não o é por um motivo simples. A incidência do dispositivo depende, tal como demonstrado acima, da desnecessidade de produção de provas, sendo esta, nas palavras de Vinícius Silva Lemos, que está por defender uma tese doutoral sobre a temática, verdadeira condição de possibilidade para aquela.

            Ocorre que o fenômeno do espraiamento sentencial, como provamos (eu e Marco Paulo Denucci di Spirito) no texto publicado na Revista Brasileira de Direito Processual n. 100, pode ser analisado independentemente de qualquer estado de suficiência probatória.

            É possível fracionar-se a decisão mesmo se para a análise da eficácia acional antecedente for necessário produzir provas. Isto por motivos dos mais variados, como a conveniência das partes e a não produção de provas referentes a algo que sequer possa acontecer, neste caso visando à inibição de qualquer forma de pré-julgamento.

            Utilizarei aqui o exemplo trazido no texto publicado na revista acima mencionada: ação rescisória contendo pedido rescindente e pedido rescisório. No procedimento dela, é importante cindir o julgamento para evitar uma espécie de pré-julgamento do segundo pedido por força de a produção de provas quanto a ele ficar misturada com à do primeiro. Até porque o primeiro funciona como questão preliminar ao segundo. Não há, porém, nas disposições do CPC (arts. 968-974), previsão para tanto. Por isso, defendemos a utilização de acordo processual para possibilitar esse fracionamento, a ser celebrado pelas partes e chancelado pelo juiz (o relator, no caso) nos moldes do art. 190, CPC.

            Isto, mesmo que seja necessária produção de provas quanto ao pedido rescindente. Por exemplo, por ser ele fundando em prova falsa a ser demonstrada quando da rescisória, em dolo da parte vencedora, em corrupção do juiz ou em qualquer hipótese que não possa ser provada de plano.

            Nesses casos, não se poderia fracionar a decisão com base no art. 356, CPC, uma vez que não há suficiência probatória a possibilitar um julgamento antecipado, sendo ela, e quanto a isto parece não haver voz dissonante na processualística, verdadeiro pressuposto dele.        

            O problema do fracionamento decisório (espraimento sentencial, na expressão que utilizei) não se limita, portanto, aos casos de julgamento antecipado, decorrendo de uma série de outras possibilidades.

            Limitar o primeiro ao segundo é, segundo penso, um equívoco. Eis o que trago, ao menos neste momento, em conclusão.

           

Notas e Referências

[1] Isto sem esquecer que um pedido formulado pode ser julgado em parcialidade se, tendo mais de um fundamento, algo dele já possa ser analisado. Numa ação anulatória de contrato de compra e venda fundada em dolo do vendedor e em lesão, estando demonstrado, de logo, a não ocorrência da última, mas sendo necessária produção de prova quanto ao primeiro, é possível (como, de resto, necessário, por força do princípio da duração razoável do processo) julgar parcialmente. Aqui, o pedido é julgado, tal como se houvesse duas ações autonomamente propostas, uma baseada no primeiro fundamento e a outra, no segundo.

Não obstante, é possível (e talvez preciso) ir além. Tendo o pedido um fundamento composto (suporte fático complexo), caso um (ou alguns) dos componentes do fundamento esteja pronto para ser analisado, pode-se falar em análise imediata dele. Observe-se o caso da ação de indenização por danos materiais em que não há necessidade de produção de provas quanto a um dos elementos componentes do suporte fático do fato jurídico indenizatório, pois o réu reconheceu (ou não contestou) a conduta a ele atribuída, discutindo apenas a ocorrência dos danos afirmados. Em sendo assim, pode-se sustentar que o juiz, quando da decisão de organização do processo (art. 357, CPC, mais propriamente como em antecedência gnosiológica à aplicação do inciso I), já deve solucionar aquilo que não depende de instrução probatória (no exemplo, a conduta causadora do suposto dano). Aqui, não há julgamento do pedido, mas simples resolução de fato, a qual, porém, não mais pode, salvo pelos meios próprios (como o recurso de apelação, § 1° do art. 1.009, CPC), ser objeto de análise no processo. Mais, caso se defenda (como já o fiz, vide GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Novo Código de Processo Civil Comentado. RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida et all (coords.). São Paulo: LUALRI, 2018, v. 2, p. 292-294) a viabilidade de uma declaração de (simples) fato, a força de tal resolução seria a de coisa julgada, inclusive no que se refere à eficácia material desta. Frise-se que, se a percepção imediata da não ocorrência de um dos componentes da causa de pedir for de algo determinante para os demais, é de se rejeitar de logo o pedido, e em sua totalidade. Sequer há de se falar (salvo existência de outro pedido) em incidência do art. 356, CPC. No exemplo dado, entendendo o juiz não ter havido a conduta imputada ao réu, deverá rejeitar o pedido, independentemente de haver ou não prova quanto ao dano. Tudo isto, simplesmente, em decorrência do princípio da causalidade, que, observadas as nuances da juridicidade (problema da imputação), é de aplicação universal.

[2] Em rigor, o pedido improcede porque o fundamento jurídico que o subjaz (causa de pedir próxima) não tem lastro no sistema jurídico. Tal fundamento se dá em afirmação, mais especificamente de algo a que se faz jus. É a processualização da ação. Os termos improcedência e procedência, tão utilizados, referem-se ao juízo veracidade/falsidade acerca das afirmações feitas pelo peticionante. Assim, quem procede ou improcede é, em suma, a ação afirmada, algo que faz com que o pedido venha, nos moldes do inciso I do art. 487, CPC, a ser acolhido ou rejeitado. É fundamental identificar o que, realmente, improcede, porquanto a parte, embora destituída da ação, possa ter o direito subjetivo, também afirmado. Numa ação de cobrança, por exemplo, ao entender que a dívida não está vencida, deve o juiz rejeitar, pois improcedente a ação, o pedido, mas com o devido cuidado (em cumprimento do dever de esclarecimento) de declarar existente a dívida. Não o fazendo, poderá dar causa a um prejuízo severo ao autor, já que, em virtude da imprecisão redacional da sentença, dúvida, no mínimo, pairará quanto ao que, de fato, foi declarado. Corre-se, enfim, o risco de se ter como inexistente aquilo que em verdade existe.  

[3] Curiosamente, o art. 355, CPC, não menciona a expressão “pedido incontroverso” ou coisa que o valha. Como se só fosse possível antecipar o julgamento se o ato reconhecimento da procedência do pedido limitasse-se à parcela deste. Talvez isso seja um forte indício de que a intenção de quem redigiu o inciso I do art. 356, CPC, não tenha sido a de fixar a ideia de pedido incontroverso como reconhecimento da procedência, mas sim como simples incontrovérsia fática, algo que, se o fosse, já estaria compreendido no inciso II. Mais um sinal de atabalhoamento na redação do dispositivo.    

[4] Embora longe de ser o objeto deste texto, não posso me furtar a falar acerca do juízo de suficiência probatória. Por óbvio, visto ser ato de conhecimento, cabe ao juiz dizer se a prova presente é ou não suficiente para o julgamento. Isto, porém, não permite dizer que se trata de algo meramente subjetivo, sem nenhum tipo de controle possível. Há um quê de objetividade na prova. Não por outro motivo é possível recorrer de uma decisão para questionar a valoração da prova. É como nos diz o nosso maior metafísico, Mário Ferreira dos Santos: “alguma coisa há”. Ou seja, algum sentido objetivamente mensurável a prova tem.   

[5] Como venho apresentando nesta coluna por intermédio da série Da Ação e das Ações..., as eficácias são, em analogia, a matéria da ação.

[6] Também como apresentado na mesma série, a expressão atualização, como passagem da potência ao ato, significa, em termos da substância ação material, a realização das eficácias, especificamente por intermédio de uma decisão judicial.

[7] No mesmo lugar, demonstrei que há eficácias que antecedem a outras, caso da eficácia declaratória-base, em qualquer ação, e, especificamente, a declaração da dívida em relação à condenação ao pagamento.

[8] DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais: dos procedimentos às técnicas. Salvador: JusPODIVM, 2018.

 

 

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