O art. 21, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa à luz da Constituição    

09/06/2022

Dentre as alterações processuais promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), chama atenção a maior mitigação da independência entre as instâncias penal e sancionatória extrapenal que restou encampada no novo § 4º do art. 21 da LIA.

O preceito normativo determina a transposição in utilibus pro reo da absolvição proferida em processo criminal que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, para a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, havendo comunicação com todos os fundamentos previstos no art. 386 do Código de Processo Penal. Ademais, essa transposição, como o próprio enunciado legal preconiza, impede o trâmite da ação de improbidade administrativa, já proposta ou eventualmente ainda a ser ajuizada, que verse sobre aquele idêntico substrato fático.

Entendemos que o art. 21, § 4º, da LIA instituiu um pressuposto processual negativo ou extrínseco específico para a ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, o qual, como tal e sob a perspectiva da cognição judicial, consiste em uma objeção processual, devendo ser conhecido de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, e impondo a extinção do processo sem resolução de mérito, bem como podendo autorizar o ajuizamento de ação rescisória, com fulcro no art. 966, inc. V, do CPC, se, conquanto presentes os seus requisitos, deixar de ser reconhecido enquanto tramitar a demanda responsabilizatória por ato ímprobo.

Nesse último caso, a procedência do pedido na ação rescisória deverá ensejar apenas o juízo rescindente, a fim de desconstituir o decisum de mérito prolatado na ação de improbidade. E, obviamente, o réu carecerá do interesse de agir na propositura da ação rescisória em comento se a pretensão sancionadora deduzida em face dele na antecedente ação de improbidade tiver sido julgada improcedente.

Calha destacar que, diferentemente do que ocorre no regime comum de influência da decisão criminal absolutória sobre a instância extrapenal, ditado sobretudo pelos arts. 65 e 66 do CPP, c/c o art. 935 do CC, o art. 21, § 4º, da LIA não exige o trânsito em julgado da absolvição penal nem a restringe à peremptória negação da existência do fato ou da sua autoria.

Fernando da Fonseca Gajardoni corretamente anota que o art. 37, § 4º, da Constituição da República “não impediu que absolvição criminal gerasse efeitos sobre a ação civil. Ao estabelecer que é possível apuração concomitante nas duas esferas (civil e criminal), a Constituição Federal não fechou a possibilidade de o legislador infraconstitucional estabelecer os critérios de comunicação dos fundamentos entre elas.”[1]

Vale dizer, o art. 37, § 4º, da CF/1988 – que disciplina a cumulação sancionatória relativamente aos atos de improbidade administrativa, dispondo que eles “importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifos nossos) – não obsta que o legislador infraconstitucional crie uma sistemática de efeitos das decisões penais, notadamente as absolutórias, sobre as ações de responsabilização por ato de improbidade administrativa.

Contudo, e também como acertadamente aponta o ilustre processualista, o art. 21, § 4º, da LIA “merece uma intepretação cuidadosa. Ele não pode comprometer a tutela do patrimônio público, tampouco impedir que, no âmbito administrativo, o agente absolvido criminalmente possa, eventualmente, ser punido.”[2]

Fazendo coro a essa advertência, acrescentamos que uma exegese rasa do novel regramento pode sim, eventualmente, afrontar o referido art. 37, § 4º, da CF/1988, além de outras disposições constitucionais que devem ser conjugadas sistemática e teleologicamente com ele, em especial as que contemplam as garantias do acesso à justiça, do devido processo legal e do contraditório, insculpidas no art. 5º, incs. XXXV, LIV e LV, da Lei Maior, das quais, conforme cediço entendimento doutrinário, deriva também um direito fundamental à prova.

Passemos então a algumas observações voltadas a uma cautelosa e constitucionalmente adequada interpretação do art. 21, § 4º, da LIA.

Primeiramente, frise-se que o dispositivo exige dois requisitos cumulativos:

1) a absolvição criminal por qualquer dos fundamentos arrolados no art. 386 do CPP; e

2) a confirmação da absolvição por órgão jurisdicional colegiado, o que pressupõe a impugnação da decisão absolutória e o reexame do caso penal, no mérito, em grau recursal.

Como requisitos cumulativos que são, e face à excepcionalidade desse novo pressuposto processual negativo ou extrínseco para a ação de improbidade, a falta de qualquer deles exclui a sua incidência e permite a livre tramitação de tal demanda.

Outrossim, diante do primeiro requisito, é de se concluir que a absolvição sumária em vista da declaração da extinção da punibilidade do agente, na forma do art. 397, inc. IV, do CPP, não opera efeitos em relação à ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, o que, aliás, conforma-se perfeitamente à tradicional previsão do art. 67, inc. II, do CPP.

De outro lado, também é de se concluir que a absolvição sumária fulcrada em algum dos demais incisos do art. 397 do CPP – existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato (inc. I), existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade (inc. II) e reconhecimento de que o fato narrado evidentemente não constitui crime (inc. III) – é equiparável à absolvição tout court fulcrada, respectivamente, nos incisos VI e III do art. 386 do CPP, pois tratam exatamente dos mesmos fundamentos de improcedência da acusação criminal, variando tão somente o momento procedimental em que são reconhecidos, de modo que o art. 21, § 4º, da LIA comporta interpretação extensiva para abarcá-la.

Por fim, ainda que fundado em hipótese que encontre correspondência no art. 386 do CPP, o arquivamento de investigação criminal ou de peças informativas criminais não satisfaz o requisito em apreço, uma vez que a decisão judicial que acolhe a promoção do Ministério Público não pode ser equiparada à sentença absolutória. Com efeito, o arquivamento, sob a égide do art. 28 do CPP – em sua redação original, ainda vigente por força de medida cautelar concedida pelo Min. Luiz Fux na ADIn 6.305/DF, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida em 22.01.2020 –, consiste em um ato administrativo decisório complexo e eventualmente composto que envolve o Parquet e o Poder Judiciário, este em exercício de função atípica ou anômala de fiscal da obrigatoriedade do exercício da ação penal de iniciativa pública.[3] Assim, guarda-se coerência com a tradicional previsão do art. 67, inc. I, do CPP.

Já diante do segundo requisito do art. 21, § 4º, da LIA, é de se concluir que, quando houver a condenação criminal em primeira instância e a absolvição somente em segunda instância, isto é, quando houver reforma, e não confirmação, do teor da sentença, ou quando a sentença absolutória de primeiro grau ficar irrecorrida, não dando azo à sua reapreciação e eventual corroboração colegiada, afasta-se a aplicação da norma em tela, restando, entretanto, a possibilidade de incidência do regime “clássico” de influência da decisão criminal absolutória sobre a instância extrapenal (arts. 65 e 66 do CPP, c/c o art. 935 do CC).

Alerte-se que, ainda que presentes ambos os requisitos acima indicados, e conforme adiantamos, uma exegese rasa do novel regramento pode sim, eventualmente, afrontar o mandamento constitucional de cumulação sancionatória (art. 37, § 4º, da CF/1988), bem como as garantias do acesso à justiça, do devido processo legal e do contraditório (art. 5º, incs. XXXV, LIV e LV, da CF/1988) e o consectário direito fundamental à prova que delas deflui. Destarte, merecem melhor análise as consequências sobre a ação de improbidade administrativa ensejadas pelas hipóteses absolutórias previstas no art. 386 do CPP.

A nosso juízo, é compatível com a Carta Magna a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada – mesmo que ainda não transitada em julgado, repita-se – quando se trate de negação peremptória da existência do fato ou da sua autoria, nos moldes do art. 386, incs. I e IV, do CPP.

Isso porque, para haver cumulação sancionatória, é necessário um juízo afirmativo acerca da existência do fato e da sua autoria. E o decreto absolutório em comento, que exige cognição aprofundada e um elevado modelo de constatação ou standard probatório, acaba por concluir, além da dúvida razoável, que o próprio fato imputado não aconteceu ou que o acusado não teve vinculação alguma com ele.

Ademais, é típica dos recursos extraordinário e especial a vedação do reexame de fatos e provas (vide Súmula 279 do STF e Súmula 7 do STJ), de modo que, salvo questionamento de erro na valoração do acervo probatório, excepcionalmente admitido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na via recursal especial, aquela conclusão sobre a inexistência do fato ou o afastamento da sua autoria seria impassível de reforma após o julgamento colegiado corroborador da absolvição, o que justifica sua extensão desde logo à ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, antes até do trânsito em julgado do decisum penal de improcedência.

De igual forma, reputamos também compatível com a Constituição a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate do reconhecimento de excludentes de tipicidade, ilicitude e culpabilidade previstas nos arts. 20, 21, 22, 23, 26 e 28, § 1º, todos do CP, ex vi do art. 386, inc. VI, do CPP.

Embora na esfera criminal o erro sobre os elementos do tipo e as descriminantes putativas (art. 20, caput e § 1º, do CP) operem no escalão da tipicidade, ao passo que a inimputabilidade (arts. 26, caput, e 28, § 1º, do CP), o erro sobre a ilicitude do fato (art. 21 do CP), a coação moral irresistível e a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal (art. 22 do CP) operam no escalão da culpabilidade, seus efeitos na seara da responsabilização por ato de improbidade administrativa serão exatamente os mesmos: a exclusão do dolo na conduta, que, de acordo com o art. 1º, §§ 2º e 3º, da LIA, caracteriza-se como a vontade livre e consciente qualificada pelo escopo de obter um resultado sabidamente ilícito. Isto é, o dolo do ato de improbidade é o dolus malus, já impregnado de componentes normativos que, na ótica do Direito Penal, agregam-se no último dos escalões do conceito analítico de delito.

Ao seu turno, as causas de justificação ou excludentes de ilicitude – estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito (art. 23 do CP) – tornam a conduta legitimada perante o ordenamento jurídico como um todo e, como tal, impassível de sancionamento, nas esferas penal e extrapenal.

Em suma, nos casos acima, conquanto existente o fato e positivada a sua autoria, não se configura juridicamente nem uma infração penal nem um ato de improbidade administrativa, de modo que novamente não se viola a regra constitucional da cumulação sancionatória.

No que tange à transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate de reconhecimento da atipicidade do fato, nos moldes do art. 386, inc. III, do CPP, entendemos que necessita receber interpretação conforme o art. 37, § 4º, da CF/1988, somente havendo compatibilidade com este se presentes, de novo, dois requisitos cumulativos:

1) verificar-se a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, ainda que ausente a perfeita correspondência textual entre ambos; e

2) negar-se a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Vejamos dois exemplos para melhor aclarar:

Exemplo 1: Servidor público é acusado pela prática do delito de dano contra o patrimônio da entidade pública na qual exerce suas funções (art. 163, par. ún., inc. III, do CP) e, quanto ao mesmo fato, responde por ato de improbidade administrativa lesivo ao erário enquadrado no art. 10, caput, da LIA. Sobrevém absolvição criminal, confirmada por decisão colegiada, por atipicidade do fato, ante a negativa do dolo na conduta. Tal absolvição poderá ser transposta in utilibus pro reo e impedir o prosseguimento da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, pois se verifica a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, embora ausente a perfeita correspondência textual entre ambos, e se negou a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Exemplo 2: Agente político é acusado pela prática do delito de ordenação de despesa não autorizada (art. 359-D do CP) e, quanto ao mesmo fato, responde por ato de improbidade administrativa lesivo ao erário enquadrado no art. 10, inc. IX, da LIA. Sobrevém absolvição criminal, confirmada por decisão colegiada, por atipicidade do fato, ante a constatação de que a despesa questionada encontrava sim supedâneo legal. Tal absolvição poderá ser transposta in utilibus pro reo e impedir o prosseguimento da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa, pois se verifica a justaposição conceitual entre o tipo penal e o tipo ímprobo no caso concreto, com perfeita correspondência textual entre ambos, e se negou a existência de elemento do primeiro também exigido pelo segundo.

Faltantes esses requisitos, parece-nos que a pura e simples transposição in utilibus da absolvição penal fundada na atipicidade do fato para fins de “trancamento” da ação de improbidade violará o citado art. 37, § 4º, da CF/1988, especialmente porque existem condutas que são consideradas criminosas mas que não são consideradas atos ímprobos, a exemplo do peculato culposo (art. 312, § 2º, do CP), assim como existem muitas mais condutas que são consideradas atos ímprobos mas que não são consideradas criminosas, a exemplo, ordinariamente, do chamado “peculato de uso” (enquadrável no art. 9º, incs. IV ou XII, da LIA).

Finalmente, precisa receber interpretação conforme o art. 37, § 4º, c/c o art. 5º, incs. XXXV, LIV e LV, da CF/1988, a transposição in utilibus pro reo da absolvição penal confirmada por decisão colegiada quando se trate de reconhecimento da carência ou insuficiência probatória, na linha do art. 386, incs. II, V e VII, do CPP.

Com efeito, tolher-se desde logo o trâmite da ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa em tal situação, sem oportunizar ao autor a possibilidade de complementar o acervo probatório e produzir no bojo daquela a(s) prova(s) considerada(s) faltante(s) e determinante(s) da improcedência da acusação na esfera criminal, desde que isso se mostre fática e processualmente viável – v.g., se o demandante já dispuser daquela(s) prova(s) ou puder obtê-la(s) e enquanto não proferida sentença na ação de improbidade –, soa afrontoso não só à regra da cumulação sancionatória como também às garantias do acesso à justiça, do devido processo legal e do contraditório e ao direito fundamental à prova que delas se extrai.

Assim, pensamos que apenas haverá compatibilidade constitucional da transposição in utilibus da absolvição penal fundada na carência ou insuficiência probatória para o efeito de “trancar” a ação de improbidade se presentes, outra vez, dois requisitos cumulativos:

1) identidade total entre o acervo probatório produzido no processo criminal e o acervo probatório produzido ou em vias de o ser na ação de responsabilização por ato de improbidade administrativa; e

2) inviabilidade fática ou processual de produção, na ação de improbidade, da(s) prova(s) considerada(s) faltante(s) e determinante(s) da improcedência da acusação penal.

Essas são, como dito antes, nossas observações voltadas a uma cautelosa e constitucionalmente adequada interpretação do art. 21, § 4º, da LIA.

 

Notas e Referências

[1] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários ao art. 21. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. Comentários à nova Lei de Improbidade Administrativa: Lei 8.429/1992, com as alterações da Lei 14.230/2021 [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. n. 4.2.

[2] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários ao art. 21, cit., n. 4.2.

[3] V. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Consequências sistemáticas da nova disciplina do arquivamento da investigação criminal no art. 28 do Código de Processo Penal. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, v. 7, n. 5, p. 2253-2284. n. 1.

 

 
 

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