Por Elisabeth Bittencourt - 12/09/2015
Pasma? Deslumbrada? Arrebatada? Esses são os significantes que me cercam. Colocam-me numa cerca cheia de interrogações. Mas de que se trata?
Sabemos que nesse cerco o que aparece são comoções. Comoções que “nos retêm e, ao mesmo tempo, nos interditam, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem de desnorteante”, conforme pontua Lacan (1959-1960/1988, p. 300). E é nesse desnorteamento que começo meu périplo, no sentido de ir atrás de saber um pouco mais dessa imagem que fascina. Faz sina. Faz brilhar aquilo que brilha no olhar de Antígona. O quê? O quê?
Isso que reluz no olhar de Antígona cega os humanos. Estes que cedem. Cegueira do brilho de Antígona que nos faz ver, como diz Lacan, a visada do desejo? “Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo” (1959-1960/1988, p. 300).
O desejo visado, que brilha, é um desejo qualquer? Ora, desejo é sempre desejo de desejo. Esse desejo que Antígona faz brilhar tem algum a mais.
Aquilo que traz uma radicalidade tal – “fé cega, faca amolada” – possível, somente, aos heróis trágicos? Aqueles que não cedem. Nós já sabemos que, se somos humanos, cedemos. Lacan já nos adverte de que, se colocamos só a pontinha do pé na merda, dia a dia, vamos cedendo. De repente, quando “nus” vemos, já estamos enterrados até o pescoço.
Mas o campo do qual quero falar é o do olhar. Que brilho é esse que reluz de Antígona, que indica a visada do desejo? De onde ele vem? Qual é sua topologia?
A imagem que fascina e o olho que pestaneja
Antígona encarna essa imagem que fascina. É a que visa o desejo: “Essa visada se dirige a uma imagem que detém não sei que mistério até aqui não articulado, já que ela fazia os olhos pestanejarem no momento em que se a olhava” (1959-1960/1988, p. 300).
Essa imagem – centro da tragédia – é feita de uma tessitura tal que seu centro condensa, puxa todos os fios para si, revelando a visada do belo no desejo. “O centro não é igual em todas as superfícies. Único num planalto, por toda a parte numa esfera, sobre uma superfície mais complexa pode fazer um nó engraçado. É o nosso”, diz Lacan (1989, p. 126).
O belo não como um objeto. Como diz Kant, “toma parte no fenômeno do belo, mas sem que o objeto esteja concernido” (Kant, apud Lacan, 1989: 316). De que se trata? “O que constitui o poder dissipador dessa imagem central em relação a todas as outras, que parecem, de repente, se rebater sobre ela e esvanecer-se?” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 301).
Esvanecer-se. É uma imagem que esvanece as outras, dissipa-as, tira sua luz. As outras passam a ser apenas ilustração de alguma coisa. Ou seja, perdem seu poder de fascinar, apenas ilustram.
Afinal, o que ela produz, que arrebata o olhar do Outro nos outrinhos que somos nós? Comoções, Lacan já nos diz (“Nus”, diz).
Mas teriam as comoções tanto poder assim, ao ponto de tornar opaco o que está em volta? Ou se trata da topologia de onde essa imagem é construída? É hora de tentar respostas.
O lugar de produção dessa imagem é que lhe confere poder, ao ponto de Lacan colocá-la no centro da tragédia, como um suporte, como um eixo móvel que se mexe conforme a ação. Conforme as peripécias, como nos diz Aristóteles: “mutação dos sucessos no seu contrário” (Aristóteles, 1993, p. 61), puxando para si os fios do nosso desejo:
"A articulação da ação trágica nos esclarece sobre isso. Isso se deve à beleza de Antígona – isso, não o estou inventando, mostrar-lhes-ei o trecho do canto do Coro onde essa beleza é evocada como tal e, demonstrar-lhes-ei que é o trecho pivô – e ao lugar que ela ocupa no entredois de dois campos simbolicamente diferenciados. É certamente desse lugar que ela extrai seu brilho – esse brilho que todos aqueles que falaram dignamente na beleza jamais puderam eliminar de sua definição" (Lacan, 1959-1960/1988, p. 301).
Lugar esse que indica um limite que a vida humana não poderia transpor por muito tempo. Ato heroico de ir até as últimas consequências. Essa imagem poderosa – beleza que cega – advém, então, da relação do “herói com o limite” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 345). Limiar que produz um lugar de produção: lugar do entre-duas-mortes. Desse lugar emanarão efeitos que nos retêm, nos arrebatam. Arrancam com violência, para pegar um dos sentidos do verbo arrebatar.
O lugar de entre-duas-mortes indica uma zona limite entre a vida e a morte. Essa que é a questão! É um lugar que suspende a vida trazendo a morte, quando ainda há vida. É o momento em que Antígona, obedecendo ao decreto de Creonte, vai viver seu suplício: vai entrar viva na tumba de sua morte.
Morte vivida de maneira antecipada. Ela sabe quando vai morrer e ainda no calor da vida fica suspensa entre a vida e a morte: “Mandarei levá-la a algum lugar deserto e enterrá-la viva em um antro rochoso, com comida, a fim de evitar sacrilégio e, para a cidade, a mácula de um crime” (Sófocles, 1997, p. 72-73). É somente a partir daí que ela começa as lamentações.
Ela está a caminho de seu sacrifício, perderá seu bem mais valioso, sua vida. Esta já está perdida, mas lá ela ainda não chegou, ao encontro marcado que tem com a morte. É um intervalo de tempo em que a vida é suspensa, visto que a morte é iminente, mas ainda não efetivada. É o único tempo que ainda resta para que a sorte do destino possa mudar. Seria o tempo em que Creonte teria para voltar atrás em seu edito.
Sabemos que Creonte perde um tempo fatal no tempo de compreender. Ele demora demais para concluir que deve ceder, deve voltar atrás. É traído pelo tempo de concluir, conclui tarde demais. Nesses casos, o tempo é inexorável, permitindo-nos algumas articulações sobre a temporalidade nas tragédias.
A primeira delas é aquela que traz o impossível, garantido por um ponto de sutura. Algo da ordem do absoluto. Impossibilidade radical de anterioridade quando, depois de lançada a sorte, ou melhor, depois que certas condições se colocam, seus efeitos já estão lançados.
Desejo da falta de objeto
Conforme Antígona vem presentificando, a vida para ela só pode ser abordada a partir desse ponto em que perde a vida, ainda viva. O que importa é o que está para além dela: é a segunda morte. É o golpe certeiro nas nossas ilusões, desejo sem objeto, sem positividade. Vive sob a forma do perdido. Presentifica a pulsão de morte: a vida só quer saber de morrer. Puro e simples desejo de morte. Sem mediação com o objeto. Posição desejante: não importam os bens.
Será que a falta de um objeto positivo não dá a esse momento toda uma iluminação: “Evoca-se a alma e é a beleza que opera” (Lacan, 1959-1960/1989, p. 123). Beleza que fere e cega os humanos? Que faz os olhos pestanejarem?
A falta de objeto produziria um “limite em que o olhar se transforma em beleza” (Lacan, 1959-1960/1989, p. 129). A iluminação da beleza se faz violenta. É o momento da passagem da vida para a morte, ou melhor, segunda morte, aquela que exige rituais.
Ou, sendo mais precisa, do que se trata é do objeto a, causa do desejo? A morte, tocada pelo desejo, produz brilho. O que passa a importar, então, é a falta, é a articulação do desejo, e este só se desenha quando, a um objeto, algo falta. Mesmo que o preço seja o de renunciar aos bens eróticos.
Poderíamos perguntar se não estaria presentificada aqui a situação na qual o objeto a se recorta num estilo, em que Antígona encarna não só o lugar de extrema solidão, que o ato de ir até as últimas consequências exige do herói, mas, mais ainda, fazendo parte daqueles heróis que emergem de uma finda linha, desse limiar entre a vida e a morte: “É na travessia dessa zona que o raio do desejo se reflete e, ao mesmo tempo, se retrai chegando a nos dar esse efeito tão singular, o mais profundo, que é o efeito do Belo no desejo” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 302).
A monstração
Essa imagem que puxa para ela todos os fios de nosso desejo é efeito, então, de toda uma tessitura cuja miragem, cujo estilo ganha ilustrações. Sófocles nos descreve o momento em que o mensageiro, temeroso, conta que uma leve camada de terra teria sido colocada no morto: “Não se via o corpo: não porque estivesse enterrado, mas porque uma poeira leve o cobria todo, como que atirada por alguém que não quisesse ser sacrílego” (Sófocles, 1997, p. 56).
Não se sabe quem pudesse ter sido, mas eis que, diante da retirada da terra, Antígona é surpreendida e logo depois, quando novamente a poeira é retirada, surgem cenas semelhantes àquelas cenas cinematográficas bíblicas quando o mar se divide, ou nas quais a questão da verdade aparece na disputa entre Moisés e Araão sobre o bezerro de ouro. Ou quando Abraão é testado por Deus.
Escutemos Sófocles pela boca do guarda:
"Logo que cheguei, ainda cheio de terror de tuas ameaças, removemos toda a terra que o cobria, e o deixamos nu, já todo apodrecido. E, sentados numa pedra contra o vento para que o mau cheiro não chegasse a nós [...] Eis que bruscamente, o vento, em redemoinho ergue contra o céu uma tromba de poeira, varre o campo, estira a coma da floresta e enche de destroços todo o espaço imenso. E de olhos fechados, todos esperamos que se dissipasse a cólera dos deuses" (Sófocles, 1997, p. 60-61).
Faz os olhos pestanejarem. Indica que alguma coisa está para se “monstrar”, como diz Didier-Weill (1987, p. 11). O estranho se ilumina, trazendo a angústia de castração. Algo grave irá acontecer. Basta ver os sinais, o vento se agita, a poeira se adensa: “Para além..., é ela que nos fascina em seu brilho insuportável, naquilo que ela tem que nos retém e, ao mesmo tempo, nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem de desnorteante – essa vítima tão terrivelmente voluntária” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 300).
Lol V. Stein
Brilho insuportável que corta. Furo no saber. Inaugura uma outra ordem. Ato. Arrebata-nos, como Lol V. Stein, personagem de Marguerite Duras. Lol, ferida, exilada do mundo: “É o coração que estava ausente?” (Duras, 1986, p. 8).
Alguma coisa que sequer tocamos e que mesmo assim nos arrebata. É a imagem do noivo de Lol, capturado por uma outra mulher que irrompe no salão e o rapta. Lol suporta o baile: “Parecia que uma audácia impregnada de si-mesma, por si só, a fazia manter-se em pé” (Duras, 1986, p. 10). Aquela que apareceu de súbito levou seu noivo: “Tinha o varrido com aquele não-olhar que ela passeava pelo baile?” (idem, p. 11).
Nós, os leitores, ficamos suspensos como numa “tela primeira onde o sujeito, separado do olhar, se vê” (Nazar, 1996, p. 1). O rapto inesperado do noivo de Lol nos sidera, quebra o sentido e mostra o pau, só não mostra qual é o outro sentido. Este fica intocável, impossível pegá-lo, cercá-lo numa declaração narrativa com sintaxe. Ele só se diz aos pedaços. Só se significa numa escrita do limite da escrita. Esta se interessa apenas pelo que é efeito de linguagem, prova do fato de haver inconsciente.
O que a escrita visa é buscar suportes para que a Lei do significante se realize, comandando a função da significância. Escrita do inconsciente que realiza o milagre de uma impossibilidade sustentar-se apenas como efeito do significante.
O ato
É preciso colocar certas coisas em seu lugar. Ato? Ato trágico? O ato, para atingir o trágico, precisa que desde o início haja uma radical decisão de não ceder. Toda a tragédia de Antígona vem dessa decisão que cria um lugar de produção, de limite: entre duas mortes.
A imagem que fascina é efeito dessa produção. É a que arrebata, produzindo um lugar de corte, recorte da subjetividade. Produção de estilo. Tem autoria: “Fui eu a autora; digo e nunca negaria” (Sófocles, 1994, p. 214).
Para o arrebatamento ter valor de ato para um sujeito, ou seja, provocar deslocamentos simbólicos, algumas condições são necessárias. A primeira delas já foi dita, estar às voltas com a articulação significante e as consequências que daí advêm: o sujeito dividido pela fenda do inconsciente, a falta a ser que marca o ser simbólico. A inscrição da lei, da castração, que a falta presentifica.
É nesse cerco de articulações que os efeitos do arrebatamento podem ter valor de ato, de giro de sentido. Inscrevem-se e intervêm na cadeia significante. Esse é o testemunho do ato – se antes a ordem significante era uma, depois do ato ela é Outra: “De um ato verdadeiro o sujeito surge diferente, em razão do corte, sua estrutura fica modificada” (Lacan, apud Boons, 1996, p. 7).
Assim, Antígona e Lol sustentam um ato. Antígona sustenta o ato trágico: absoluta determinação desde o princípio. Sustentação que custa condições radicais de produção. Lol não sustenta: é sustentada. Não se sabe onde, mas ela escorrega num mais-ainda exaltado. Perdendo-se entre os significantes, ancorada apenas pelo Outro, escrita que lhe dá existência: “Um ato criador é aquele que suporta ter consequências” (Ariel, 1994, p. 42).
Com Lol ficamos suspensos em algum lugar dos afetos. Um não-lugar. Insistência de significação. Lol ou Maguerite nos carregam numa espécie de angústia que balbucia espantos. De que se trata? Presos à ignorância por um fio tenso que mantém constante e continuamente uma tensão que sustenta a atenção, aperta a garganta, promove respirações, faz os olhos pestanejarem.
Ela nos segura nesse ponto de tensão. Segundo Lacan, esse lugar de onde Lol é construída é o do entre-duas-mortes, beleza insuportável, impossível de ser tocada, mas que ali permanece sustentando a perplexidade.
Ambas produzem estilo. Antígona é catártica; Marguerite, pelo contrário, retém a tensão. Ambas promovem efeitos de arrebatamento. O adjetivo arrebatado, conforme o dicionário Aurélio, significa: veemente, arrojado, impetuoso. Precipitado, inconsiderado, irrefletido. Inflamado, exaltado. Precipitação como sintoma ou precipitação do sintoma?
O arrebatamento
Bem, diante de tão pouca mesura de sentido, caindo no desarrazoado das medidas, ou melhor, na intensidade dos afetos, chego mais perto do título deste texto. O que é que arrebata?
Sabemos que o brilho do olhar de Antígona provoca tais emoções, digamos assim, exaltadas. Caímos assim num campo em que o de que se trata é de um excesso, alguma coisa da ordem do pulsional, grandezas de quantidade, economia do sintoma. Despesa improdutiva?
Serve para quê? Serve para nada. Eu gozo por nada. É Bataille entrando no meu trabalho. Que chegue bem, trazendo-me o absurdo das medidas e com ele le ravissement, como diz Marguerite.
Bataille nos surpreende, talvez pela nossa desatenção, ao dizer-nos que articulado com o princípio da utilidade – aquisição, produção e conservação de bens – está o princípio da perda, que carrega consigo a ênfase (Bataille, 1975). A perda deve ser a maior possível: quanto vale o seu gozo?
Isso que diz Bataille nos causa surpresa, entretanto o vivemos em nosso cotidiano, indiferentes às frequentes notícias com números que mostram, por exemplo, o desperdício de alimentos no país, correspondendo a cifras que chegam perto, conforme noticiado, do montante de dólares que o Brasil vai receber do FMI.
Ele chama de despesas improdutivas o gasto que não tem um sentido útil e nos dá como exemplos o luxo, os enterros, as guerras, os jogos, os espetáculos, os cultos, as construções de monumentos, as artes, a atividade sexual perversa desviada da finalidade genital. Desperdícios que consomem fortunas de real e produzem um máximo de descarga.
Chegamos assim à catarse. Quais seriam as articulações que poderíamos fazer com o arrebatamento?
Falemos primeiro da catarse. Sabemos que Kâtharsis vem do verbo Kathairo que quer dizer: purificar, limpar, lavar, de onde Kâtharos, que significa puro, sem mancha, limpo.
As produções de arte, ao provocarem angústia e horror através de representações simbólicas de perda trágica – desgraça ou morte –, promovem uma espécie de purgação. Alguma coisa ali é purgada, trazendo um breve apaziguamento. Repetição da cena primária, que a todo momento se refaz pela via do sintoma, gasto exorbitante, gozo do sintoma, regime da fantasia.
As tragédias gregas seriam, então, produções ímpares na produção dessa purgação. Graças à compaixão, ao temor e à piedade as perdas trágicas ganhariam um deslocamento. As comoções levariam a uma descarga, digamos assim, pensando no Freud dos primeiros tempos, descarga ineficaz para os afetos patogênicos.
A consequência teórica dessa afirmação é que os sintomas eram representações de doses excessivas de excitação que não haviam encontrado uma via de escoamento. Estamos, então, num campo no qual os afetos estão carregados com algum a-mais de excitação que pede descarga. Sabemos que a economia do sintoma se alimenta da perda, gasto excessivo regido pelo fantasma.
É certo, então, que no regime do fantasma as coisas não se resolvem pela catarse, visto que a descarga nunca é total, fica sempre um resto de insatisfação ao desejo. Combustível que alimenta a mais-valia do gozo do sintoma: impossibilidade de saber. A insatisfação pode levar a um movimento desejante ou não. Mesmo assim ela é uma via preferencial na trilha das possibilidades.
Ah! isso tudo é muito difícil e não era sobre a economia do sintoma que queria falar e sim da purgação que as tragédias promovem pela via da catarse. Lacan diz:
"É do lado dessa atração que devemos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro mistério, o verdadeiro alcance da tragédia – do lado dessa comoção que ela comporta, do lado das paixões certamente, mas das paixões singulares que são o temor e a piedade, já que por seu intermédio... somos purgados, purificados de tudo que é dessa ordem" (Lacan, 1959-1960/1988, p. 300; grifos meus).
Conforme já dissemos, esse “reflexo sagrado da visão da beleza” (Nietzsche, [19–], p. 22), produção do limiar do entre duas mortes, também produz comoções que, em vez de descarregar, inflacionam e retêm a tensão, levando-nos a um estado que não é regido pela descarga e sim pela tensão de saber de si, de alguma coisa oculta que paira mas não aparece propriamente.
Nuances de espanto que nos deixam suspensa, pensando, então, que o arrebatamento, enquanto ato que promove a ignorância do que se sabia, demandando um Outro saber, pertence propriamente ao efeito que Lol nos causa. Não só Lol, mas tantas outras personagens de Marguerite.
Arrebatados, então, a caminho do fim deste texto...
Marguerite, como Antígona, diz não ter tido escolha: “quando comecei a não poder evitar tais livros...” (Duras e Gauthier, 1974, p. 15). Mas será? Ou melhor, será que ambas não escolheram?
Antígona porque é voluntária na sua obstinação.
Marguerite é escolhida. Desejo de desejo. Não seria ela amante disso que manca no simbólico? Falha constitutiva que a joga nas mãos de um destino traçado à revelia? Experiência freudiana, em que a verdade é aquilo que aparece pelo falho, pelo sintoma, produzindo assim articulações do inconsciente e do campo do real, que pela via de um escorregão de sentido mostra um outro?: “Não me importo jamais com o sentido, a significação. Se há sentido, este desprende-se depois” (Duras e Gauthier, 1974, p. 11).
Para nós, psicanalistas, algo da mesma ordem. Se não se morre no lugar do analista, não há analista. Se não se sustenta no rigor que a ética do campo da psicanálise exige, este perde seu gume fundamental e passa a ser uma outra coisa.
Ou então, o de que se trata é de uma questão de estilo. Há também um estilo para morrer, se pensamos que este se situa em articulação com o ato: o ato criador, o ato de viver, o ato de morrer: “O estilo é a ética do artista” (Ariel, 1994, p. 18).
Notas e Referências:
ARIEL, Alejandro. El estilo y el acto. Buenos Aires: Manantial, 1994.
ARISTÓTELESPoética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. A parte maldita. Tradução de Júlio Castanõn Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
BOONS, Marie-Claire. Uma escola “de psicanálise”, à prova do Ato. In: Letra Freudiana – Escola, Psicanálise e Transmissão. Rio de Janeiro: Revinter, 1996.
DIDIER-WEILL, Alain. Fim de uma análise, finalidade da psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
DURAS, Marguerite. O deslumbramento. Tradução de Ana Maria Falcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
DURAS, Marguerite e GAUTHIER, Xavière. Boas falas: conversas sem compromisso. Tradução de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Record, 1974.
LACAN,Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
————. Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce: homenagem a Marguerite Duras. Tradução de Eunice Martinho. Lisboa: Assírio e Alvim, 1989.
MONTENEGRO, Fernanda. A personagem de um autor cruel. Entrevista com André Luiz Barros. Revista Bravo, São Paulo, ano 1, nº 7, 1998.
NAZAR, Maria Teresa Pallazo. (1996). Feminilidade e a questão do masoquismo. Escola Lacaniana de Psicanálise (ELP).
NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes, [19–].
Sófocles. A trilogia tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
————. Três tragédias gregas. Antígona. Prometeu prisioneiro. Trad. Guilherme de Almeida Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 1997.

Elisabeth Bittencourt é Psicanalista e Escritora. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
. .Imagem Ilustrativa do Post: O Arrebatamento // Foto de: Peter Serra e Design: Loreto Searle // Com alterações
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