O aniversário de Maria e o nascimento de Bárbara: reflexões sobre gênero, cárcere e o defensorar possível

29/10/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Na segunda semana de outubro completam-se quatro anos que a Maria veio ao mundo para nos apresentar a sua mãe, Bárbara Oliveira de Souza. Era um dia comum de trabalho, e de repente fomos atravessados pela notícia: uma detenta do Talavera Bruce havia parido sua cria no interior do isolamento, conhecido como solitária. Abandonada pela família, pelo estado, por qualquer possibilidade de vida plena. Mas aquele não era seu primeiro abandono. Bárbara nunca fora de fato compreendida por ninguém, porque tinha parafusos que não se encaixavam nas porcas pré-estabelecidas pelas instituições capitalistas, patriarcais e coloniais amontoadas ao seu redor, a fazer lembrar:

“Quando Camille transgrediu os estereótipos de gênero de sua época, revelou mecanismos de poder que fabricam esses estereótipos. Era um exemplo perigoso para outras mulheres. Portanto, tentaram “corrigir” violentamente sua anormalidade. O que define o anormal é que ele constitui, em sua existência mesma, a transgressão de leis invisíveis da sociedade, leis que são naturalizadas. O anormal desafia aquilo que é demarcado como impossível e proibido. Imaginem que disparate: uma mulher esculpindo pedras!”[i]

Assim, sua passagem pelo mundo dos viventes – antes de ser jogada no tumbeiro a que chamam de sistema prisional – foi permeada por drogas tornadas ilícitas, afastada de qualquer cuidado saudável das suas enfermidades (do corpo e da alma), buscando fuga nos delírios do universo não palpável. Não se deve esquecer que:

“haveria um tempo qualitativo (existencial) e um tempo quantitativo (social). Parte da constatação de que os muros da prisão são uma ruptura no espaço social [que] aponta essa ruptura social para aprofundar que os muros também produzem ruptura no tempo . Nesse sentido, a privação de liberdade combina os dois elementos: tempo e espaço. É na intersecção deles que fica marcada uma duração de tempo qualitativamente distinta da que se utiliza para marcar o tempo social.”[ii]

Alvo fácil, Bárbara foi pega pela polícia em 2015, com 97 papelotes de crack, sentada numa calçada na favela do Jacaré. Mais um art. 33 da Lei de Drogas para a estatística. Magra, franzina, grávida e em surto psicótico decorrente de sua esquizofrenia, foi considerada perigosa demais para estar livre ou em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico:

“Com efeito, para os usuários da Defensoria Pública a regra sempre foi a exceção. Descendentes daqueles que não foram integralmente triturados nos “moinhos de gastar gente” da empresa colonial, não mais vagueiam por sobre um território integralmente excluído do direito e nem são grosseiramente tratados juridicamente como res e submetidos à normatividade dos direitos reais, mas sim tem formalmente reconhecida sua dignidade humana e os decorrentes direitoshumanos universais, não obstante, graças aos efeitos sofisticados da “colonialidade do poder” excipiente,22 deparem-se cotidianamente com a suspensão de seus direitos fundamentais, de sorte a serem transfigurados em inimigos ou não-cidadãos.”[iii].

 Como afirma Patrícia Magno,

É inegável que as mulheres com transtornos mentais em conflito com a lei, privadas de liberdade por força de medida de segurança de internação, encontram especiais dificuldades para exercer, com plenitude, perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico e estão no epicentro da convergência de fatores diversos de vulnerabilidades.[iv]

A audiência de custódia definiu: vamos nos prevenir, o animal vai para a jaula. A defesa, já em audiência de instrução, pediu a instauração do Incidente de Insanidade Mental e Dependência Toxicológica, e o encaminhamento para o hospital penitenciário para averiguar a gravidez – coisa que jamais aconteceu. Durante todo esse tempo, os psicólogos que a atendiam no CAPS foram impedidos de entrar, seus remédios psiquiátricos foram cortados e ela jamais teve acesso a qualquer atendimento ginecológico. No íntimo, deviam achar que a própria existência de Bárbara não passava de mais um de seus delírios.

Como cantam os Novos Baianos, “No fundo, no fundo / Coloco os velhos no mundo / Boto na realidade”, na verdade foi Maria quem pariu a Bárbara naquele 11 de outubro de 2016. A partir de então, o coletivo formado pelos Defensores Públicos do Rio de Janeiro Arlanza (NUDEM), Daniel (NUDEDH), Emanuel (Coord. Defesa Criminal), Lívia (NUCORA), Melissa (NUSPEN), Patrícia (NUSPEN) e Roberta (NUDEDH) concedeu os megafones para que a voz-grito de Bárbara fosse reverberada.

A Maria, que tinha sido destinada a um abrigo sem o conhecimento da mãe, foi morar com seus irmãos junto da família colateral. A Bárbara saiu do isolamento e foi encaminhada para o tratamento no Roberto Medeiros. Reconheceu os psicólogos que já cuidavam dela, reiniciou o tratamento e explicou firmemente tudo o que havia passado. Graças a ela, a Defensoria ajuizou uma Ação Civil Pública para o atendimento ginecológico de mulheres encarceradas, que contou com a mobilização de muita gente. Depois de muitos obstáculos, ganhamos. Bárbara também carrega outra “culpa”: a DPRJ inaugurou uma nova política institucional para presas grávidas, com novos fluxos, relatórios, orientações e litigância estratégica.

A partir do buraco que ela involuntariamente criou naquele dia, muitas outras companheiras dela falaram, denunciaram e com isso nos fizeram olhar com atenção e seriedade para suas pautas. A situação da mulher presa, aos poucos, sai do lugar comum do recorte para dar lugar a centralidade dos debates atuais. Ali, ao ser atendida, na verdade foi Bárbara quem deu a oportunidade da instituição “defensorar”, e não o contrário. O “defensorar” nas brechas se dá, como afirma Patrícia Magno,

“por meio de um fazer jurídico político que force as brechas existentes e/ou crie espaços para os processos de lutas por dignidade, sempre sintonizado com as vozes e lutas das pessoas em situação de vulnerabilidade. Defensorar é resistir. Defensorar é ser megafone. Defensorar é produzir fissuras.” (grifo meu)

Muito longe de um final feliz, essa estória teve um final possível. Mas para quem defensora exaustivamente todos os dias, alcançar aquilo que é minimamente justo dentro das paredes que conseguimos trânsito, é uma vitória enorme. Se nesse mês das crianças existe uma menina de 4 anos que não está numa instituição do estado porque a Defensoria provocou sua saída, então temos ao menos um grande motivo para celebrar. Agora nosso maior desafio é seguir na construção de um mundo onde a Maria possa crescer livre.

           

Notas e Referências

[i]                       LIMA, Daniela. Camille Claudel: a quem serve a normalidade? Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2015/11/03/camille-claudel-a-quem--serve-a-normalidade/. Postado em 03/11/2015. Acesso em 17 ago. 2016. op. cit. MAGNO, Patrícia.  “Encarceramento Feminino: Um olhar sobre Mulheres e Medidas de Segurança”, 2016: REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA do Rio Grande do Sul, p. 252.

[ii]                     “Ana Messuti (2003, p. 31) – no brilhante Tempo como Pena – trabalha com a ideia de . Idem, p. 230.

[iii]                     Caio Jesus Granduque José, “Defensorar em tempos de exceção”, Florianópolis: 2017, XIII Congresso Nacional De Defensores Públicos, p. 46-47.

[iv]                    Ibidem, p. 238.

 

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