O amor precisa ser insuportável?: O que nos ensinam os crimes passionais

16/11/2015

 Por Maíra Marchi Gomes – 16/11/2015

Cê sabe que as canções são todas feitas pra você E vivo porque acredito nesse nosso doido amor Não vê que tá errado, tá errado me querer quando convém E se eu não estou enganado acho que você me ama também

O dia amanheceu chovendo e a saudade me contém  O céu já tá estrelado e tá cansado de zelar pelo meu bem Vem logo, que esse trem já tá na hora, tá na hora de partir E eu já tô molhado, tô molhado de esperar você aqui

Amor, eu gosto tanto, eu amo, amo tanto o seu olhar Andei por esse mundo louco, doido, solto com sede de amar Igual a um beija-flor, que beija flor, De flor em flor eu quis beijar Por isso não demora que a história passa e pode me levar

E eu não quero ir, não posso ir pra lado algum  Enquanto não voltar Não quero que isso aqui dentro de mim Vá embora e tome outro lugar Talvez a vida mude e nossa estrada pode se cruzar Amor, meu grande amor, estou sentindo Que está chegando a hora de dormir

(Elder Costa)

Os crimes passionais, aqui compreendidos atos tipificados criminalmente e que têm como motor a paixão, permitem-nos interessantes debates. Um deles, já realizado de forma significativa, é a propósito de como o tratamento a eles despendido foi orientado por machismos. Outro, que talvez precise ser mais feito, é sobre o conceito de paixão.

O que aqui se pretende é, abordando o que é a paixão, apontar para a impossibilidade de estranharmos os crimes passionais. Apontar para a hipocrisia de se considerar que a paixão do outro (no caso, a que acarreta num crime) é digna de suspeita. Mais especificamente, de se considerar que ela deixa de ter o estatuto de paixão a partir do momento que se torna acompanhada de violência. Em outros termos, espera-se colaborar para a “desromantização” da paixão.

Freud (1921, p.122) nos dizia, a propósito do objeto alvo da paixão, que “nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo”. Logo, o primeiro alerta é de que, na paixão, quem é desejado não é o outro. Mas sim aquilo dele que o eu gostaria de ser.

Para Goldin (2001, p.38), na mesma direção: “o encontro eufórico e alvoroçado da paixão é efeito do encontro consigo mesmo em dupla via. Os amantes são iguais. Um espelho que fica transparente e se converte em cristal que os amantes tentam dissolver para se encontrarem (...). Império narcisista da paixão que usa freneticamente o outro para encontrar o uno”.

Isto não deveria desqualificar a paixão, porque não deixa de ser admirável encontrarmos alguém que nos permite manter a esperança de que um dia, em algum lugar, seremos aquilo que acreditamos que devemos ser. Esta esperança talvez seja imprescindível a nós humanos, seres por condição descontentes com o que são. Não se pode também deixar de pensar que esta esperança também não é por nós abdicável porque igualmente somos descontentes com o que o outro é. Coisas de quem se orienta pelo “dever ser”, que talvez seja cada vez mais comum numa cultura que cada vez mais espera encontrar em discursos de ordem, com suas prescrições e generalizações, a vida.

Alguns destes criticam a paixão tentando distinguí-la do amor, aqui compreendido como o amor romântico. Aquele belo, eterno, altruísta, incondicional e que traz plenitude. Bom...não se encontra uma distinção entre paixão e amor, pelo menos de acordo com o fundador da psicanálise. Tanto o é que ele chega a dizer que “é mesmo possível descrever um caso extremo de estar amando como um estado em que o ego introjetou o objeto em si próprio” (Freud, 1921, p.123). Como se percebe, o extremo do amor, para ele, seria o ápice do mecanismo que definiu como sendo da paixão.

Há outros autores que, se ainda diferenciam paixão e amor, já desconfiam do amor. Melhor dizendo, já concebem que nele sempre permanece algo da paixão. Mais especificamente, aquilo que lhe é mais definidor: enxergar no outro o que o eu acredita que deveria ser. Um destes autores que, ainda que por outra via, des-demonizam a paixão e des-divinizam o amor é Santos (2001, pp.11-12):

a marca diferencial entre a paixão e o amor: o primeiro está imbuído de um transbordamento paradisíaco imaginário que beira a loucura, lugar pouco sociável, já que tudo delirantemente reside ali, deixando empobrecido aquilo que é da ordem do terrestre (eu ideal); o outro tenta relativizar, interceptar o abraço paralítico incestuoso para poder advir: a genitalidade, a alteridade, a arte, a cultura, as relações afetivas...(ideal de eu). No entanto, aquilo que parecia ser uma renúncia sublime, libido sublimada, olhando bem não se tem tanta certeza

Freud (1921, p.123) nos falava da relação entre amor (incluindo o extremo) e uma inoperância da instância do ideal de ego, e o faz justamente definindo-o como uma condição psíquica que subjaz o ato criminoso.

traços de humildade, de limitação do narcisismo e de danos causados a si próprio ocorrem em todos os casos de estar amando; no caso extremo, são simplesmente intensificados e como resultado da retirada das reivindicações sexuais, permanecem em solitária supremacia. Isso acontece com especial facilidade com o amor infeliz e que não pode ser satisfeito, porque, a despeito de tudo, cada satisfação sexual envolve sempre uma redução da supervalorização sexual.

Ao mesmo tempo desta ‘devoção’ do ego ao objeto, a qual não pode mais ser distinguida de uma devoção sublimada a uma ideia abstrata, as funções atribuídas ao ideal do ego[1] deixam inteiramente de funcionar. A crítica exercida por essa instância silencia; tudo o que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até a diapasão do crime.

Jorge (2001, p.19), acompanhando Freud, diz-nos tanto de uma indiferenciação entre paixão e amor, como de como não é inesperado que a paixão/amor acarretem num crime. Em suas palavras:

o amor vem estabilizar a relação – tão instável – do sujeito com o objeto do desejo e, sendo assim, ele vem tentar preencher a falta que no campo do desejo não consegue jamais ser preenchida. O amor dá sentido àquilo que, no campo do sentido, não tem nenhum sentido. A paixão amorosa é igualmente um efeito derradeiro da estrutura: quando na paixão o sujeito tem a ilusão de ter preenchido esta falta com algum objeto amoroso, ele tem a vivência de estar muito próximo daquele gozo absoluto que havia perdido originariamente. É nesse ponto que surge o perigo do crime passional: quando o sujeito perde um objeto que ele sente como sendo o objeto, ele pode passar ao ato no suicídio ou no homicídio, já que sente que algo nele também morreu ou foi morto – a sensação de plenitude

Torna-se insuportável o objeto que, tendo tudo para fazer crer ao eu que enfim havia conseguido ser o que imagina que deve ser, recusa-se a manter esta esperança/ilusão. Alguns sujeitos conseguem, em nome da sobrevivência de seu eu ideal, apaixonar-se/amar outros objetos (seres vivos ou não). Outros não. E há ainda quem precise de um tempo (maior ou menor) apenas em companhia de si para depois conseguir sair. Há, por fim, quem primeiro lide de uma forma com suas frustrações amorosas/passionais, e depois de outra. Enfim, não há regras de como seria mais saudável lidar com um amor/paixão que a partir de um momento só pode ser jogado ao vento, e não mais num objeto.

Responsabilizar os sujeitos pelo que fazem com seu amor/paixão quando o objeto recusa-se a ser sua miragem no deserto que é a vida, é necessário. Afinal, também não podemos ter o dever de sermos amados/apaixonáveis. O que parece inviável é o olhar de espanto dos operadores do direito perante os crimes passionais, como se não soubessem que o coração dos olhos de todos nós sempre e rapidamente se transforma em lanças.

Afinal, por qual outro motivo seria tão difícil a todos nós conviver com quem mais amamos? Com quem por mais somos apaixonados? Talvez saibamos que a distância, nestes casos, assegura a nós e ao outro.

Mas talvez seja também possível pensarmos se isto também não se daria porque pouco sabemos lidar com alguém que, no cotidiano, inevitavelmente nos mostra que não precisamos ser o que imaginamos precisar ser. Com alguém que nos mostra que podemos ser o que somos. E não é qualquer alguém: é justamente alguém que mais nos fez (ou ao mesmo tempo faz) acreditar que este imperativo ideal que o eu se impõe poderia se tornar realidade.

Preferimos, em grande parte das vezes, a infelicidade. Preferimos ficar ao lado de quem não nos ama, de quem não amamos, daqueles por quem não somos apaixonados, daqueles não apaixonados por nós. Assim mantemos a dor da falta do objeto de amor/paixão. E, mais essencialmente, assim mantemos o sofrimento inerente à ilusão de não nos bastarmos. Sim, porque a dor de ser o que se é maior quando vem daquele que nos possibilita viver a delícia de ser o que somos.

Na casa de espelhos que é o mundo, o espelho comum não entra. Anda-se por aí, procurando um espelho que reflita as mais lindas deformações que o ego faz de si. Infelizmente poucos suportam levar para casa aquele espelho que melhor lhes agrada. É que todo espelho, em algum momento, reflete o que somos. E para sujeitos que não se satisfazem com que os próprios olhos refletem de si, talvez dê mais vontade de quebrar os espelhos que melhor fizeram acreditar/manter a crença de que poderiam ser o que não são e que, em algum momento, ousaram refletir precisamente o que estes sujeitos são. Para estes, resta se mirarem em espelhos que os deixam feios, ou que lhes digam que só são bonitos se deformados. O que dá na mesma.


Notas e Referências:

[1] Segundo Laplanche & Pontalis (1998, p.222), ideal do ego é uma “expressão utilizada por Freud no quadro da sua Segunda teoria do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se”. Laplanche & Pontalis (1998, p.139) definem o ego ideal, por sua vez, como “formação intrapsíquica que certos autores, diferenciando-a do ideal do ego, definem como um ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil. Já o ideal do ego, parece ser uma transformação do ego ideal, uma perspectiva de simbolização da impossibilidade de se alcançar o ideal, já que ele se constitui a partir do contato com algo que não o próprio ego. Logo, com uma certa perspectiva de alteridade.

Freud, S. (1921/1996). Psicologia do grupo e a análise do ego. In: _____. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XVIII. Imago, Rio de Janeiro.

Goldin, A. (2001). O império narcisista da paixão. Revista Viver Psicologia, 97 (8): 38. Segmento, São Paulo.

Jorge, M.A.C. (2001). Amor, desejo e gozo em Freud e Lacan. Revista Insight, 117(11): 19. Lemos Editorial e Gráficos Ltda., São Paulo.

Laplanche, J. e Pontalis, J.B. (1998). Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes, São Paulo.

Santos, T.B. (2001) Os (des)caminhos do amor – um enfoque pulsional. Revista Insight, 117(11): 08-13. Lemos Editorial e Gráficos Ltda., São Paulo.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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Imagem Ilustrativa do Post: Disillusioned by the thought of flawless love // Foto de: LK // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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