Por Dóris Ghilardi - 28/09/2015
No passado, contrariando o formato de família existente no Brasil, o legislador, adotando os costumes europeus, definiu juridicamente família como sendo a união entre homem e mulher oriunda do casamento.
Com isso, condenou à marginalidade todas as pessoas que viviam uniões em formatos distintos, fossem informais, fossem entre pessoas do mesmo sexo. Com isso, também deixou de fora as famílias formadas apenas entre um dos genitores e seus filhos.
Apenas com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é que o rol foi ampliado para passar a constar também as uniões estáveis e as famílias monoparentais como entidades familiares. Foi apenas em 2011, com a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, que essa interpretação foi estendida também para os casais homossexuais.
Parecia que os tempos estavam mudando. Que o ideal do amor domesticado começava, nos palcos jurídicos, a ceder espaço para todas as formas de amor. A doutrina já há tempos defende a pluralidade das famílias. O judiciário, rotineiramente se depara com questões impensáveis nas décadas anteriores, tendo que analisar, por exemplo, lides envolvendo famílias paralelas.
O pensamento hermético, conservador, começava a ser deixado de lado! Até que, no dia 24/09/2015, foi aprovado pela comissão especial na Câmara dos Deputados, o texto principal do projeto, que discute o Estatuto da Família, definindo-a como união entre homem e mulher, através do casamento ou da união estável, bem como a formada por qualquer dos pais e seus filhos.
Retrocesso? O que mudou? Se é que mudou?
É preciso retornar aos séculos anteriores para que seja possível compreender melhor.
O amor foi condenado a inimigo quando se precisou construir um formato de mundo em que a mão de obra humana se fazia necessária, não só para a coesão social, discurso manifesto mas, também, para alavancar os ditames capitalistas. O conceito de “bom pai” de família precisava ser disseminado para conter o instinto que move o homem. A partir disso, o casamento entre homem e mulher, moldado pela bigamia e reforçado pelos ideias da igreja, tornou-se o modelo perfeito de instituição social.[1]
O que poderia parecer puro romantismo, a ideia do casamento para sempre e com uma única pessoa, não deixou de lado as verdadeiras obsessões humanas. Portanto, não é novidade de que as famílias concubinárias sempre existiram, bem como inúmeros outros formatos, porém, a imposição de sua invisibilidade e a rejeição criada pelo Código Civil de 1916, em relação aos filhos oriundos de relações extraconjugais, não só criou inúmeras distinções, como parece ter contribuído para a construção de uma sociedade de valores deturpados.
O resultado disso tudo não poderia ser outro: “um século hiprócrita que reprimiu o sexo, mas foi por ele obcecado. Vigiava a nudez, mas olhava pelos buracos da fechadura”, como bem observa Mary del Priore, sobre o Século XIX[2].
Entretanto, com as transformações sociais e econômicas, a libertação do sexo se fez necessária e os desejos precisaram ser liberados. Comemorou-se a vitória do indivíduo. No Brasil, a Constituição Federal o elevou ao centro do sistema jurídico. Um novo direito civil se instalou, abandonando a concepção insular do ser humano e promovendo a releitura de estatutos fundamentais. A mudança de paradigma se refletiu na família e a concepção tradicional foi posta em xeque. A abertura conceitual aconteceu.
O patriarcalismo, a monogamia, a família unicamente casamentária abriram lugar para novos formatos, a família moderna tornou-se receptáculo para uma lógica afetiva. Comemorou-se a conquista, o amor passou a ser valorizado, porém, ao mesmo tempo, mostrou-se coerente com o novo formato de mundo, o consumismo necessitava do amor livre, sem freios, sem restrições.
Diante do exposto, cabe a pergunta: vitória ou armadilha? Conquista ou retrocesso? O amor, outrora domesticado, passou a ser livre, transgressor. Despindo-se das amarras, também trouxe sofrimentos, desilusões. Num mundo em que tudo gira em torno do consumismo, até o amor passou a ser domesticado, tratado como mercadoria. Então, o alerta acende.
Fica a reflexão. Contudo, independente da resposta, é inaceitável a definição fechada de família, porque, definitivamente, não há mais espaço para isso. Família é amor, e amor é genuíno, não tem padrão, não aceita imposição.
E, em que pese o texto constitucional ter trazido garantias como a igualdade, a liberdade e a autonomia privada, o Estado continua a intervir nas esferas mais íntimas do ser humano. Em nome de quê? Da (falsa) moral?
O que incomoda tanto? Será mesmo que as uniões homossexuais representam o fim, a decadência dos valores tradicionais? Como bem analisa Elizabeth Roudinesco “não é mais a contestação do modelo familiar que incomoda os conservadores de todos os lados, mas, ao contrário, a vontade de a ele se submeter”.[3] Em outras palavras, antes, ao menos eram estigmatizados, facilmente reconhecíveis. Integrados, representam perigo, porque podem as mesmas coisas, tornam-se semelhantes, idênticos e, com isso, a diferença é abolida. E isso incomoda.
As relações afetivas familiares merecem ser democráticas, objeto de eleição exclusiva de seus componentes, sem intervenções manipuladoras e totalmente desnecessárias. Com todo o respeito a Tim Maia, não dá mais para aceitar “só não vale (...) homem com homem e nem mulher com mulher", pois é tempo de se criar um espaço melhor para se viver, para se relacionar. É tempo de celebrar o amor, sem rótulos. E a família continua a ser espaço propício!
Notas e Referências:
[1] Com base em Sigmud Freud, Mal estar na civilização e Michel Foucaul, História da Sexualidade.
[2] In História do Amor no Brasil. 3 ed. São Paulo, Contexto: 2012, p. 220.
[3] In A Família em Desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 10
Dóris Ghilardi é Doutora e Mestre pela Universidade do Vale do Itajaí. Professora e pesquisadora na área de direito das famílias e sucessões do Cesusc. Professora convidada permanente da ESA-SC; Membro do IBDFAM, da Comissão de Direito de Família da OAB-SC e do IASC.
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