O AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE MATERIAL

07/05/2021

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

No dia 16 de abril deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal - STF, Ministro Luiz Fux, proveu agravo em recurso extraordinário nº 1.307.386 entendendo haver repercussão geral sobre a matéria aventada, qual seja, a licitude da divulgação por provedor de aplicações de internet, de conteúdos de processos judiciais - em andamento ou findos – que não tramitem em segredo de justiça, passando o mesmo a ser designado tema 1141:

Ex positis, PROVEJO o agravo para exame do recurso extraordinário e, nos termos do artigo 1.035 do Código de Processo Civil e artigo 323 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, manifesto-me pela EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL SUSCITADA e submeto a matéria à apreciação dos demais Ministros da Corte.

A decisão citada no agravo (ARE 1307386) segue a disciplina do art. 1.042  do Código de Processo Civil, segundo o qual “cabe agravo contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos”, com redação trazida pela Lei nº 13.256, de 2016. Até aqui, portanto, não houve inovação, uma vez que, ao tratar de recurso interposto contra acórdão proferido em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR, o STF já havia se manifestado, reconhecendo a repercussão geral da matéria constitucional discutida no Recurso Extraordinário (RE 1.293.453)2.

Entretanto, o que atribui caráter estupefaciente, para alguns, à decisão que proveu o agravo para admitir o recurso extraordinário, é o fato de o recurso ter sido interposto pela parte “vencedora” da tese. Inclusive a Terceira Vice-Presidência do Tribunal a quo reconheceu a existência de repercussão geral e negou seguimento ao recurso extraordinário, nos seguintes termos:

O recurso não reúne condições de trânsito. No caso em tela, a parte recorrente resultou vitoriosa no julgamento de causa-piloto de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) no qual restou fixada seguinte tese jurídica: é lícita a divulgação por provedor de aplicações de internet, de conteúdos de processos judiciais (em andamento ou findos) que não tramitem em segredo de justiça, e não existe obrigação jurídica de removê-los. A pretensão deduzida no presente recurso extraordinário é de apreciação do mérito da tese jurídica discutida, viabilizando, assim, que seja firmada uma tese sobre esta temática com alcance sobre todo o território nacional, na forma do art. 985 do Código de Processo Civil. Consideradas as hipóteses estritas versadas no art. 102 da Lei Maior, na esteira da jurisprudência exarada pela Suprema Corte, o pedido não encontra respaldo legal.

Havendo, portanto, repercussão geral e como se demonstrará a seguir, efetivo interesse recursal, uma vez que a parte recorrente intenta o melhor aproveitamento da prestação jurisdicional, o acolhimento do recurso era medida que se impunha.

Primeiramente, cabe-nos definir propriamente o conceito de “recurso” e, para isso, utilizaremos a conceituação proposta por Carolina Uzeda3 em seu livro sobre Interesse Recursal, para quem recurso é

instrumento idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a correção de erro material, esclarecimento, integração, reforma, invalidação e reconhecimento de inexistência - da decisão judicial que se impugna-, o julgamento diretamente pelo tribunal e a formação de precedente vinculante, nas hipóteses previstas em lei.

Deste ponto em diante, analisaremos os requisitos que autorizam a admissibilidade do recurso extraordinário proposto pela parte “vencedora”, com base nesta definição, muito embora o presidente do STF tenha provido o recurso, dentre outras alegações, homenageando o “princípio da eficiência jurisdicional”.

Comumente, quanto aos recursos, faz-se necessário demonstrar o cabimento ou adequação da via eleita, a legitimidade, o interesse, a regularidade formal, a tempestividade, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer.

O recurso extraordinário viabiliza a análise de questões constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, III)4. Entretanto, é necessário que sua interposição se dê tempestivamente (art.1003, § 5º)5, dentro do prazo de 15 dias, e ainda, conforme a EC nº 45/2004, em seu parágrafo 3º, o recorrente deve demonstrar a repercussão geral (regulamentada pela Lei n° 11.418/06) da questão a ser debatida, bem como o prequestionamento da questão em instâncias inferiores.

A legitimidade é regida pelo art. 996 do CPC6, que determina:

O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, como parte ou como fiscal da ordem jurídica. Parágrafo único. Cumpre ao terceiro demonstrar a possibilidade de a decisão sobre a relação jurídica submetida à apreciação judicial atingir direito de que se afirme titular ou que possa discutir em juízo como substituto processual.

Daniel Assumpção Neves7, a respeito da legitimidade, esclarece que “as partes terão sempre legitimidade para recorrer, independente de terem sido vencidas ou vencedoras na demanda, aspecto que, ao exigir a análise do conteúdo da decisão no caso concreto, diz respeito, quando muito, ao interesse recursal”.

Teresa Arruda Alvim8 nos aponta que têm legitimidade para recorrer, “as partes, o terceiro ligado indiretamente ao processo e o Ministério público, seja parte ou fiscal da lei”. E, acrescenta, “interesse tem a parte vencida, sucumbente, no todo ou em parte; tem o terceiro efetivamente atingido por decisão proferida em processo alheio (ou seja, prejudicado) e o Ministério Público.”

Como veremos, a sucumbência pode ser formal ou material. Ao caso em estudo, embora não tenha sido a questão observada pelo Ministro Fux, entendemos que se trata de sucumbência material, e por isso nos cabe diferenciá-las.

 

SUCUMBÊNCIA FORMAL E SUCUMBÊNCIA MATERIAL

Daniel Assumpção Neves define como sucumbência formal a ausência de procedência ou improcedência total dos pedidos, ou seja, “ a frustração da parte em termos processuais, ou seja, a não obtenção por meio da decisão judicial de tudo aquilo que poderia ter processualmente obtido em virtude do pedido formulado ao órgão jurisdicional.”9

Noutro giro, a sucumbência material decorre daquilo que a parte, de fato, deixou de obter no mundo dos fatos.

Neste caso, apesar de uma tese “vencedora”, a parte não obteve tudo aquilo que poderia obter processualmente, que seria a abrangência nacional da tese que lhe aproveitava, gerando insegurança jurídica e desrespeitando o princípio da isonomia. Restou, portanto, nestes termos, sucumbente materialmente.

Não nos parece razoável que uma atuação “x” seja permitida e tida como lícita em determinada região geográfica (Estado), enquanto em outras esta mesma situação possa vir a ser encarada como uma atuação ilícita.

Prudente, como bem salientado pelo Ministro Fux, que, em última instância, essa situação seja uniformizada em todo território nacional, de modo a tratar todos os jurisdicionados de maneira equânime e isonômica.

Vimos, ainda, que a sucumbência autoriza, dentre outros requisitos, a interposição de recurso. Quer seja formal, portanto, mais facilmente perceptível, quer seja, material. A parte será sucumbente e, desse modo, terá legitimidade recursal, toda vez que o provimento de seu recurso possa “trazer alguma utilidade jurídica prática para o recorrente, ou seja, uma situação jurídica objetivamente melhor do que a que ele tinha com a decisão recorrida”10 (utilidade/necessidade). Logo, o interesse é determinado pelo binômio utilidade/necessidade.

Como bem pontua, Gabriela Kazue11:

recursos (especialmente os que se dirigem  aos tribunais de sobreposição) se prestam a uniformizar entendimentos, de modo que situações semelhantes não venham a receber tratamentos discrepantes - o que reduziria a confiança no processo, gerando problema de legitimidade das decisões.

Em mesmo sentido, Carolina Uzeda, nos esclarece que o objetivo principal dos recursos é “qualificar e aperfeiçoar a tutela jurisdicional, entregando à parte tudo quanto for possível, em prol da justiça e da paz social.”12

 

A ABRANGÊNCIA NACIONAL E A OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Pacificar a sociedade através de uma decisão justa só é possível se todos aqueles que se submeterem ao sistema de justiça forem tratados igualmente. O princípio da igualdade encontra-se inserto no caput do art. 5º da Constituição Federal, mas se materializa (igualdade material, equilíbrio processual) de fato, quando as desigualdades/igualdades concretas são pesadas e avaliadas, de modo a permitir uma atuação que trate de maneira desigual situações desiguais e igual, situações iguais.

 O tratamento isonômico aos jurisdicionados tem como objetivo legitimar a atuação estatal por meio da justiça, uma vez que os cidadãos se submetem ao pacto social unicamente por entenderem que suas regras são justas e aplicadas igualmente para todos, salvo exceções que se justificam pela máxima do ‘tratamento desigual para os desiguais, na medida exata de sua desigualdade.”13 Logo, a isonomia (igualdade material) objetiva a pacificação social e com isso a legitimação do próprio sistema de justiça.

Como vimos, no caso em análise, o agravo em recurso extraordinário (ARE), interposto quando da inadmissibilidade de recurso extraordinário14, que enfrentava o acórdão proferido em IRDR, antes mesmo da abrangência nacional dos seus termos, buscava obter o melhor resultado possível, que não foi alcançado com a decisão proferida.

Como já exposto, a parte recorrente não obteve do processo tudo aquilo que poderia ter obtido e, portanto, sucumbente, não havendo motivos para que, reconhecida a repercussão geral e presentes os demais requisitos (cabimento prequestionamento, tempestividade), fosse inadmitido o recurso extraordinário.

Contudo, superada a decisão que o inadmitiu, o recurso se mostrou representante legítimo de uma situação que enseja apreciação do Tribunal Supremo, de modo que a abrangência da tese que prevaleça possa tratar todos os jurisdicionados brasileiros de maneira isonômica, permitindo, inclusive, que novas ações com identidade subjetiva ou objetiva, em territórios geográficos distintos, não sejam propostas. Parece-nos que se materializa nesta questão, também, o objetivo maior do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que é “evitar a quebra da isonomia e a ofensa à segurança jurídica.”15

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em última análise, a decisão que admitiu o Recurso Extraordinário que se tornou o tema 1141 concretiza não só a potencialidade de tratamento isonômico a questão de interesse nacional, como nos oportuniza a possibilidade de verificarmos a influência da sucumbência material no descortinamento do interesse do recorrente, que em tese saiu vitorioso, na admissão de seu recurso.

O tema 114116 do Supremo Tribunal Federal ainda não foi julgado, mas a decisão que proveu o Agravo em Recurso Extraordinário já é motivo para que o  olhemos com a devida atenção.

Interposto pela União contra decisão que definia a titularidade municipal das receitas produto de arrecadação do imposto sobre a renda incidente na fonte sobre rendimentos pagos a pessoas físicas ou jurídicas, referentes a contratações de bens ou serviços.

UZEDA, Carolina. Interesse Recursal.Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pág: 92.

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

a regra principal é a de que o prazo recursal tem início a partir da intimação, conforme as regras dos arts. 231 e 1003 do CPC/ AI 703269, O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar agravo regimental no Agravo de Instrumento 703269, na sessão de 05 de março de 2015, modificou seu entendimento e concluiu, por unanimidade (nove votos, ausente o Min. Celso de Mello), que o recurso interposto antes do início do prazo é tempestivo.

AREsp 991257 , AREsp 753708

 

Notas e Referências

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

310.interesseemrecorrer.pdf . Acesso em : 25/04/2021.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Comentários ao art. 996. In: Comentários ao novo Código de Processo Civil/coords. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. - 2ª ed.rev.,atual. e ampl.- Rio de Janeiro:  Forense, 2016. págs: 1493-1494.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

310.interesseemrecorrer.pdf . Acesso em : 25/04/2021.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Interesse Recursal e Sucumbência. Disponível em http://www.professordanielneves.com.br/assets/uploads/novidades/201011151803

310.interesseemrecorrer.pdf . Acesso em : 25/04/2021.

FRANCISCO, Gabriela Kazue Ferreira Eberhardt. Comentários ao art. 994. In: Código de processo civil; anotado e comentado/ coords. Luís Antônio Giampaulo Sarro, Luiz Henrique Volpe Camargo, Paulo Henrique dos Santos Lucon. 1 ed. São Paulo: Rideel, 2020.págs: 747-748.

UZEDA, Carolina. Interesse Recursal.Salvador: Editora JusPodivm, 2018. pág: 93.

NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. pág.42.

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, II, IX, XIV, XXXIII, XXXVI e LX, 37, 93, IX, e 220 da Constituição Federal, a licitude da divulgação por provedor de aplicações de internet de conteúdos de processos judiciais, em andamento ou findos, que não tramitem em segredo de justiça, e nem exista obrigação jurídica de removê-los, de modo ampliar a abrangência territorial de tese firmada por tribunal estadual em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).

GAIO JR, Antonio Pereira e Mello, Cleyson de Moraes. Novo CPC comentado: lei 13.105, de 16 de março de 2015. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. pág.684

Até o presente momento (05/05/2020) acompanham o Ministro Relator, pela existência de Repercussão geral , os Ministros  Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, divergindo apenas o MIN. MARCO AURÉLIO.

 

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