O advogado, o STJ e o desacato à autoridade

30/12/2016

Por Gleucival Zeed Estevão - 30/12/2016

Resumo:

O texto tem por objetivo, sem a pretensão de criticar qualquer profissão, apresentar reflexão sobre a situação do advogado após a decisão do Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o Recurso Especial de n.º: 1.640.084/SP, por meio da sua 5º Turma, entendeu que o crime de desacato à autoridade, previsto no art. 331, do Código Penal, viola o disposto no art. 13, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, internalizada no nosso ordenamento jurídico com força de norma supralegal.

O STJ entendeu, com efeito, que qualquer palavra ou gesto que seja direcionado contra o servidor público, mesmo ofensivo, não configura crime de desacato. Tal conduta, portanto, no entender do Tribunal, é atípica porque a criminalização viola a liberdade de expressão garantida pela Convenção.

Assim, o texto procurar chamar a atenção para o fato de que, a prevalecer esse entendimento (da inconvencionalidade), o profissional da Advocacia, em juízo ou fora dele, nos termos do §2º, do art. 7º, da Lei 8.906/94, teria imunidade criminal absoluta, benesse que não contempla nenhum outro integrante da sociedade, fato esse que vai de encontro a uma das linhas argumentativas da própria decisão do STJ, revelando, em última análise - para ficar só no âmbito da Convenção -, violação ao princípio da igualdade, previsto no art. 24, do Pacto de São José da Costa Rica.

Contextualização:

Artigo 331 do Código Penal:

Desacato

Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

Artigo 13.  Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.”

No caso julgado pelo STJ (REsp. 1.640.084/SP), segundo se infere do Acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (processo n.º: 0000422-34.2012.8.26.0590), um cidadão teria ofendido dois policiais militares, xingando-os de: “veado”, “filha da p...”, “vocês não tem coragem de atirar?”, “coxinha”. Detalhe: o agente estava sob efeito de álcool.

Pois bem. O Superior Tribunal, fazendo juízo de convencionalidade no caso concreto, entendeu que o crime de desacato à autoridade viola o direito à liberdade de expressão e, entre outros argumentos, afirmou, com base no princípio de n.º: 11, da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), que as leis de desacato, injustificadamente, criam uma proteção especial à honra dos funcionários públicos, proteção essa que não dispõe os demais integrantes da sociedade. Em resumo: as leis de desacato criam distinção injusta entre servidores públicos e particulares (servidor público > particular).

Transcrevo do Voto do Ministro Relator do REsp. n.º: 1.640.084/SP, a propósito, passagem que cita a justificação do princípio de n.º: 11, da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão:

“A aprovação do Princípio n. 11 sobre Liberdade de Expressão teve a seguinte justificativa:

"50. Como foi salientado anteriormente, o pleno exercício da liberdade de expressão é um dos principais mecanismos com que a sociedade conta para exercer um controle democrático sobre as pessoas que têm a seu cargo assuntos de interesse público. A CIDH se pronunciou claramente sobre a incompatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana:

A aplicação de leis de desacato para proteger a honra dos funcionários públicos que atuam em caráter oficial outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial, do qual não dispõem os demais integrantes da sociedade. Essa distinção inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo. Considerando-se que os funcionários públicos que atuam em caráter oficial são, para todos os efeitos, o governo, então é precisamente um direito dos indivíduos e da cidadania criticar e perscrutar as ações e atitudes desses funcionários no que diz respeito à função pública.

Juntamente com as restrições diretas, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. A esse respeito, a Corte Europeia afirmou que, apesar de as penas posteriores de multa e revogação de um artigo publicado não

impedirem que o peticionário se expresse, elas 'equivalem, não obstante, a uma censura, que podem dissuadi-lo de formular críticas desse tipo no futuro'. O temor de sanções penais necessariamente desencoraja os cidadãos de expressar suas opiniões sobre problemas de interesse público, em especial quando a legislação não distingue entre os fatos e os juízos de valor.

A crítica política com frequência inclui juízos de valor. Quando são aplicadas, as leis de desacato tem um efeito direto sobre o debate aberto e rigoroso sobre as políticas públicas, que o Artigo 13 garante e que é essencial para a existência de uma sociedade democrática. Ademais, a Comissão observa que, ao contrário da estrutura estabelecida pelas leis de

desacato, em uma sociedade democrática, as personalidades políticas e públicas devem estar mais - e não menos - expostas ao escrutínio e à crítica do público. Como essas pessoas estão no centro do debate público e se expõem de modo consciente ao escrutínio da cidadania, devem demonstrar maior tolerância à crítica.

(…)

52. Nesse contexto, a distinção entre a pessoa privada e a pública torna-se indispensável. A proteção outorgada a funcionários públicos pelas denominadas leis de desacato atenta abertamente contra esses princípios. Essas leis invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática, na qual os funcionários públicos devem estar sujeitos a um maior escrutínio por parte da sociedade. A proteção dos princípios democráticos exige a eliminação dessas leis nos países em que elas ainda subsistam. Por sua estrutura e utilização, essas leis representam enquistamentos autoritários herdados de épocas passadas, e é preciso eliminá-las." (negrito no original; grifo meu)

Desenvolvimento:

Não obstante concorde com o resultado do julgamento proferido pelo Superior Tribunal, no sentido da absolvição do denunciado no caso concreto, a reflexão que se faz é a de que declarar a inconvencionalidade do art. 331, do CP, cria uma desigualdade inversa, considerando a figura do advogado, isto é, cria, sem justificativa, uma distinção entre o particular e o agente público (particular > agente público). Explico:

O §2º, do art. 7º da Lei 8.906/94 (EOAB) tem a seguinte redação:

“Art. 7º São direitos do advogado:

§ 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer. (Vide ADIN 1.127-8)” (destaquei)

A Lei 8.906/94 regulamenta o art. 133, da Constituição Federal, que assegura imunidade profissional ao advogado, o qual não pode ser processado criminalmente nem por injúria e nem por difamação praticada(s) contra qualquer integrante da sociedade. O dispositivo constitucional citado tem a seguinte redação:

“Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n.º: 1.127/DF, entendeu que a expressão “desacato”, contida no dispositivo legal acima transcrito, seria inconstitucional, pois, a prevalecer a redação original do dispositivo, em síntese, estaria sendo violada a necessária preservação da autoridade do agente público, transformando, portanto, na visão do Ministro Carlos Britto, em absoluta a imunidade que a Constituição Federal fez relativa (CF, art. 133).

Portanto, acolhida em parte a ação direta de inconstitucionalidade n.º: 1.127/DF, a expressão “desacato” foi destacada do texto do §2º, do art. 7º, do Estatuto da OAB, todavia, a imunidade profissional do advogado, em juízo ou fora dele, foi mantida em relação aos crimes de injúria e difamação.

Ocorre que o STJ, ao entender que o crime de desacato é inconvencional - conduta atípica -, além de tornar absoluta a imunidade do advogado, já que não pode ser criminalmente responsabilizado por injúria, difamação e agora por desacato, criou uma distinção entre o particular e o agente público, contrariando, por via transversa, o princípio de n.º 11, da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, princípio esse que foi utilizado como uma das linhas de fundamentação no Voto condutor do REsp. 1.640.084/SP.

O profissional da Advocacia, portanto, passa a ter um direito à proteção criminal especial que não é extensivo a nenhum outro integrante da sociedade; passa a ter imunidade criminal absoluta.

Assim sendo, a reflexão que fica é a de que, aparentemente, a aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da feita que, por um lado, busca inibir o abuso das autoridades públicas que, com o manejo do crime de desacato, acabam limitando a liberdade de expressão do cidadão; por outro lado, o resultado dessa interpretação acaba, na hipótese aventada, contrariando o art. 24 da própria Convenção, que prevê o princípio da igualdade.


Notas e Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

OEA. PACTO DE SAN JOSÉ DE COSTA RICA. San José: Organização dos Estados Americanos, 1969.

BRASIL. Código Penal (Decret-Lei n.º: 2.848 de 07 de dezembro de 1940);

BRASIL. Supremo Tribunal Federla. Ação Direta de Constitucionalidade n.º: 1.127/DF.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º:  1.640.084/SP.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação n.º: 0000422-34.2012.8.26.0590.


Gleucival Zeed Estevão. Gleucival Zeed Estevão é juiz de direito substituto do Tribunal de Justiça de Rondônia e membro do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Estado de Rondônia – GMF; já ocupou o cargo de juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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