O acordo que queima: a relação entre as queimadas, a 75ª Assembleia Geral da ONU e a dor

25/09/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

É mais do que público o que tem ocorrido no Pantanal, com números alarmantes e que pioraram - principalmente - nos últimos dois meses. O aumento exponencial nas queimadas já devastou mais de 12% do bioma da região[1], segundo os dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Pantanal é um bioma situado no sul de Mato Grosso e no noroeste de Mato Grosso do Sul, ambos no Brasil, e também em partes do norte do Paraguai e do leste da Bolívia. É considerado a maior planície alagada contínua do mundo.

Importa dizer que as queimadas não são um assunto novo. Há muito que os focos de incêndio atingem de forma brutal não só o Pantanal brasileiro, mas também o Cerrado e a Amazônia. Em 2020, entre o total do que foi atingido, cerca de 38,6% corresponde ao Cerrado; 35,1% à Amazônia; e 17,3% ao Pantanal. A seca característica do período também é um fator que pode ser determinante para os focos de incêndio.

O que ambientalistas e militantes de movimentos sociais têm apontado é que, no âmbito de políticas públicas, os órgãos de fiscalização têm sofrido um processo de desmantelamento, enquanto o desmatamento ilegal avança descontroladamente em todos os biomas. O resultado é o desequilíbrio do ecossistema, que causa severos impactos na área. Além disso, se percebe uma expansão do agronegócio nessas regiões, o que também causa desequilíbrio ao ecossistema.[2]

Imagens que circulam amplamente nas redes têm demonstrado que as chamas que destroem o pantanal já atingiram o Parque Estadual Encontro das Águas, região que concentra a maior quantidade de onças-pintadas no mundo, localizado entre os municípios de Poconé e Barrão de Melgaço, ao sul de Cuiabá (capital do Mato Grosso). Não bastasse o alarmante quadro de devastação do bioma, os focos de incêndio atingem também áreas indígenas no Pantanal, avançando para aldeias, destruindo casas e plantações, e fazendo com que o convívio nas áreas atingidas cause problemas respiratórios[3]. Em alguns casos, há notícias que indicam que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) precisou inclusive remover pessoas de aldeias atingidas no Mato Grosso[4]. Em simples palavras, o aumento no nível das queimadas tem devastado a fauna e a flora na região do Pantanal, destruído a mata, atingido os animais e as áreas indígenas localizadas nas regiões afetadas pelo fogo.

Quando comecei a pensar nesse texto, a minha ideia era falar sobre violência, mas, nas últimas semanas, refleti muito sobre a dor, os limites e as dimensões da dor. Que dor constitui violência e o que é violência são perguntas que me faço há anos, não é à toa que ocupam o centro dos meus problemas de pesquisa. Pessoalmente incapaz de não me abalar com as notícias que têm circulado sobre as queimadas, passei a refletir sobre a dor de perceber que nem todo mundo se importa com as riquezas naturais em chamas, com as pessoas que são atingidas ou até com os mais de 100 mil mortos (por coronavírus, se não for óbvio).

Quando estava quase convencida de que era preciso falar sobre dor, pesar e perdas, assisti à fala do presidente do país na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU[5]. Esse texto não bastaria para esmiuçar cada ponto do que foi dito por Jair Bolsonaro, mas para ficar com o tema que já está na pauta, fiquei espantada com a manifestação a respeito das queimadas: segundo o presidente, estaria o país passando por um processo de desinformação sobre o que ocorre na Amazônia e no Pantanal, os focos de fogo estariam sendo combatidos com rigor e os recordes de incêndios seriam resultado da queima de roçado por índios e caboclos – nestes termos.

Os dados sobre a extensão das queimadas e sobre os focos de incêndio  - e muito mais - estão disponíveis no site do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio de informações de satélite do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (ver nota 1). O discurso que choca não é pela falta de compromisso com os dados, também já amplamente divulgados pela mídia, mas é, para mim, pela utilização de uma racionalidade que busca nas pessoas vulnerabilizadas por estes processos uma suposta responsabilidade.

É aqui que eu chego (de novo) na dor. Ainda queria falar sobre violência. Mas as questões que pairavam nos meus pensamentos não eram aquelas que normalmente dialogo enquanto fenômenos de violência. Ocorre que o discurso de Bolsonaro me fez lembrar de quando, lá em março, Judith Butler nos alertou para o desejo de Donald Trump de querer “comprar (com dinheiro) direitos exclusivos para os EUA a uma vacina de uma empresa alemã”, questionando o intento de uso exclusivo de uma vacina somente por americanos e a receptividade da ideia, para o povo, de estarem livres de uma ameaça mortífera quando outros povos não estariam. Num cenário de uma pandemia mundial, Butler questionou os limites do capitalismo para a utilização de algo que pode salvar vidas. Ela afirmou, por fim, que quando houver uma vacina, “nós certamente veremos os ricos e os plenamente assegurados correrem para garantir acesso a qualquer vacina dessas quando ela se tornar disponível, mesmo que o modo de distribuição só garanta que apenas alguns terão esse acesso e outros serão abandonados a uma precariedade continuada e intensificada.”.[6]

Angustiada com essas questões, fico me perguntando quem está preocupado com o fogo e com o que (e quem) queima(m). Vendo notícias sobre as queimadas atingindo terras indígenas, regiões já marginalizadas e excluídas do acesso à saúde pública e outras políticas, me pergunto que valor essas vidas representam para a ordem pública e para a população que vive na área urbana. Pessoas que, antes mesmo da pandemia do coronavírus, já viviam em condições precárias e emergenciais: em entrevista para a National Geographic, é possível encontrar o relato de Ailton Krenak, uma liderança indígena, escritor e ambientalista, que disse que “nós já estávamos de quarentena, porque a gente estava vivendo aqui dentro numa condição de quase refugiados dentro do nosso próprio território. Abastecidos por caminhão-pipa e cesta básica.”, consequências ainda do rompimento da barragem em Mariana (MG), cuja área afetada chegou ao Rio Doce, crime ambiental que ocorreu há mais de 4 anos[7].

Entre tantas informações pode parecer, à primeira vista, não haver relação entre os cenários de queimadas, regiões e pessoas atingidas e violência. Ocorre que os locais e pessoas afetadas deveriam contar com ações suficientemente capazes de dirimir esse quadro, comprometidas com a vida de todas as espécies, realidade que não é a que se verifica. O governo brasileiro não só direcionou escassos recursos para o enfrentamento das queimadas, como também lançou discurso, em nível internacional, que visa ao reducionismo do que ocorre no país.

Relatos de pessoas que estão enfrentando a realidade das queimadas indicam que muitos brigadistas são indígenas. Além de afetados pelo fogo, estão também comprometidos em impedir a destruição de seus territórios. A reportagem da Agência Pública[8] ouviu Eliane Bakairi, da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), que disse que o número de brigadas é insuficiente, principalmente em territórios mais afetados, como a Baía dos Guató e a TI [terra indígena] Perigara, em Barão de Melgaço. Revelou que “Conversando com o cacique Roberto, ele disse que o fogo passou por lá na aldeia Perigara. E o fogo queimou tudo, queimou toda a TI. Conversando com o pessoal dos Guató, também a situação é bem complicada lá. As brigadas são insuficientes, o PrevFogo sofreu cortes orçamentários e isso está sendo sentido nas brigadas, mas o Pantanal continua queimando”.

Diante desses relatos, só é possível concluir que a falta de estrutura para enfrentar as queimadas parece uma evidente demonstração de que essa questão não é prioridade. Procurar responsabilizar os povos indígenas pela devastação ambiental revela que, neste governo, certa parcela da população teria práticas que podem ser expostas diante de todos os países que se reuniram na 75ª Assembleia Geral da ONU, como se fosse um segmento populacional que valesse menos e, por consequência, importasse menos, então pudesse ser responsabilizado por tudo isso que está acontecendo. Pode parecer que essas inúmeras questões não guardam relação entre si, mas a análise sobre as precárias medidas de enfrentamento às queimadas ao lado do discurso levantado pelo governo em torno disso só mostra que essas medidas caminham juntas, como em um belo acordo para que o estado de coisas permaneça esse: o que facilita o desmatamento ilegal, a expansão desmedida do agronegócio e a repercussão dos severos impactos para os mesmos povos que já sofrem com essa realidade sempre.

 

 

Notas e Referências

BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. Tradução de Artur Renzo. Blog da Boitempo, 20 mar. 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em: 22 set. 2020. 

CHANGE.ORG. O Pantanal importa! Precisamos acabar com as queimadas!. Disponível em: https://www.change.org/p/iniciativa-pantanal-limpo-assine-j%C3%A1?utm_source=catraca&utm_campaign=comunicacao&utm_term=&utm_medium=noticia. Acesso em: 22 set. 2020.

DI BELLA, Gabi. "Nós já estávamos de quarentena, vivendo numa condição de quase refugiados", diz Krenak. National Geographic, 08 ago. 2020. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2020/08/nos-ja-estavamos-de-quarentena-vivendo-numa-condicao-de-quase-refugiados-diz?fbclid=IwAR25xRiJzan72dce40uNolT2mQmGQQo0JxfN5dThLhc9ACphviTzgEiLrGo. Acesso em: 23 set. 2020.

INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Queimadas. Disponível em: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/aq1km/. Acesso em: 22 set. 2020.

MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno; RIBEIRO, Raphaela. Incêndios já tomam quase metade das terras indígenas no Pantanal. Agência Pública, 17 set. 2020. Disponível em: https://apublica.org/2020/09/incendios-ja-tomam-quase-metade-das-terras-indigenas-no-pantanal/. Acesso em: 22 set. 2020.

[1] Os dados apresentados no site são provisórios e correspondem à análise referente ao mês de agosto. Disponível em: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/aq1km/. Acesso em: 22 set. 2020.

[2] Abaixo-assinado “O Pantanal importa! Precisamos acabar com as queimadas!”, disponível em: https://www.change.org/p/iniciativa-pantanal-limpo-assine-j%C3%A1?utm_source=catraca&utm_campaign=comunicacao&utm_term=&utm_medium=noticia. Acesso em: 22 set. 2020.

[3] Os registros dos focos de incêndio são de dados de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Alguns relatos sobre como as terras indígenas estão sendo atingidas podem ser encontrados aqui: https://apublica.org/2020/09/incendios-ja-tomam-quase-metade-das-terras-indigenas-no-pantanal/. Acesso em: 23 set. 2020.

[4] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2020/09/14/fogo-mato-grosso-funai.htm. Acesso em: 23 set. 2020.

[5] O discurso está disponível no twitter no presidente: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1308418422699687939. Acesso em 22 set. 2020.

[6] BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. Tradução de Artur Renzo. Blog da Boitempo, 20 mar. 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em: 22 set. 2020.

[7] Entrevista disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2020/08/nos-ja-estavamos-de-quarentena-vivendo-numa-condicao-de-quase-refugiados-diz?fbclid=IwAR25xRiJzan72dce40uNolT2mQmGQQo0JxfN5dThLhc9ACphviTzgEiLrGo.Acesso em: 23 set. 2020.

[8] Disponível em: https://apublica.org/2020/09/incendios-ja-tomam-quase-metade-das-terras-indigenas-no-pantanal/. Acesso em: 22 set. 2020.

 

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