O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA COVID-19

26/05/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

 

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) elevou a doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) à categoria de pandemia, o que obrigou países em todo mundo a assumirem atitudes preventivas. Poucos dias depois, os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo começaram a executar medidas restritivas com a finalidade promover o distanciamento social, o que fora gradativamente aplicado pelos demais estados brasileiros.

Assim, existia uma realidade A, correspondente ao período pré-coronavírus; existe uma realidade B, que representa o momento atual, no qual se tenta administrar a presença do vírus no Brasil e no mundo. Ainda, virá uma realidade C, equivalente ao momento posterior a doença, mas que inaugurará um novo cenário, diferente das realidades anteriores, com todas as consequências decorrentes das experiências trazidas pelo surto do Covid-19.

As circunstâncias produzidas pela nova doença não são experienciadas apenas por parte da população, nesse aspecto o coronavírus é democrático, e faz com que todo corpo social esteja sujeito ao contágio e demais efeitos econômicos, sociais e jurídicos. Nesse diapasão, crianças e adolescentes não só são afetados pela pandemia, como a vivenciam de maneira muito própria, já que são considerados naturalmente vulneráveis, tendo em vista sua condição de pessoa em desenvolvimento.

Todas as crianças e adolescentes, em alguma medida, são afetadas pelo Covid-19, seja pela suspensão das aulas, pela restrição do lazer, pela convivência suspensa com um dos genitores, avós e colegas ou, até mesmo, pelo próprio contágio da doença.

 Há, no entanto, um grupo milhares de crianças e adolescentes, comumente esquecido pelo corpo social, que está no acolhimento institucional e vive em um contexto muito particular. Esses infantoadolescentes, em conjunturas usuais, já se encontravam em uma realidade que inspirava cuidados e atenção diferenciada, o que no contexto pandêmico fora intensificado.

O acolhimento institucional é uma das medidas específicas de proteção trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 101, VII, Lei n. 8079/1990), e é aplicável quando os direitos reconhecidos pelo Estatuto forem ameaçados ou violados (art. 98, Lei n. 8079/1990).

Essa medida de proteção, por implicar no afastamento da criança do núcleo familiar, somente é apropriada quando a manutenção junto à família natural trouxer riscos. Além disso, o acolhimento possui caráter provisório e excepcional, de modo a funcionar como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para a colocação em família substituta, não implicando em privação de liberdade (art. 101, §1°, Lei n. 8069/1990).

A legislação estatutária é um dos diplomas responsáveis por dar efetividade à Doutrina da Proteção Integral, acolhida pela Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, e incorporada no Brasil pela Constituição Federal de 1988, através do art. 227 que prevê:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Segundo a Doutrina da Proteção Integral, crianças e adolescentes “são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral”. Assim, o ordenamento pátrio fora reordenado com o propósito de garantir a toda população infantoadolescente o resguardo de seus direitos fundamentais, sempre assegurando a prioridade absoluta e o melhor interesse.

Pois bem, ao se considerar o cenário sócio jurídico constituído durante os últimos 30 anos, no que se refere ao Direito da Criança e do Adolescente, deve-se reconhecer que nesse momento pandêmico a Proteção Integral perpassa por reconhecer medidas específicas para os infantes em situação de acolhimento.

As crianças e adolescentes que estão no acolhimento institucional devem ser considerados multivulneráveis, pois são oriundos de uma situação de risco, estão afastados do convívio familiar e ainda estão expostos as consequências produzidas pela pandemia Covid-19.

As instituições de acolhimento são caracterizadas pelo fluxo constante de pessoas, já que são necessários inúmeros funcionários para manter seu funcionamento. Ademais, são ambientes essencialmente pautados na coletividade, ou seja, crianças e adolescentes acolhidos compartilham objetos, espaços e a atenção dos cuidadores. Em alguns casos, a própria infraestrutura física dos ambientes se mostra inadequada para garantir o distanciamento e as políticas de higiene orientadas pelas instituições de saúde.

A ordem do art. 7º, do Estatuto da Criança e do Adolescente garante o direito da “proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Assim, a fim de tornar tal previsão efetiva dentro da conjuntura imposta pelo surto do novo coronavírus, alguns setores, de acordo com suas respectivas competências, movimentaram-se com o intuito de resguardar em maior grau possível os Direitos Fundamentais de crianças e de adolescentes que durante a pandemia vivenciam o acolhimento institucional.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), emitiu uma série de recomendações para a Proteção Integral de crianças e adolescentes durante a pandemia do Covid-19. Constam no documento diretrizes específicas para a população infantoadolescente que está em acolhimento institucional, entre elas, a instrução para a diminuição do número de acolhidos através de iniciativas como a priorização da reintegração às famílias (natural ou extensa), mudança para o regime de famílias acolhedoras, permanência temporária com padrinhos afetivos e inserção em família adotiva.

Em mesmo sentido, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos emitiu uma nota pública com medidas de prevenção, reconhecendo que o cenário pandêmico exige orientações específicas para a administração de cuidados nos serviços de acolhimento institucionais do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). As orientações envolvem a organização e cuidados com os espaços físicos, com os acolhidos e profissionais, com fluxo de pessoas e visitas, com as atividades realizadas e prevê o mapeamento de riscos e planos de contingência.

No âmbito do Poder Judiciário, foi protocolado o Pedido de Providências à Corregedoria Nacional de Justiça com a finalidade de flexibilizar as audiências concentradas, que habitualmente ocorrem no mês de abril e objetivam a reavaliação de medidas protetivas. A decisão julgou procedente o pedido, de modo que as audiências poderão acontecerem de modo remoto. O deferimento possibilita ao Sistema de Justiça se fazer presente apesar do distanciamento social, fiscalizando e resguardando a integridade de milhares de crianças e adolescentes.

A Recomendação Conjunta n. 1 de 16 de abril de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério da Cidadania e Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, ao dispor sobre cuidados a crianças e adolescentes com medida protetiva de acolhimento, no contexto de transmissão comunitária do novo Coronavírus (Covid-19), reafirma a necessidade do direcionamento de um olhar particular para essa parcela de infantoadolescentes. Dentre as múltiplas instruções, o documento orienta a adoção temporária do regime de funcionamento emergencial, com cuidadores residentes, de modo a reduzir o fluxo diário de entrada e saída de profissionais.

A Portaria n. 59, de 22 de abril de 2020, emitida pelo Ministério da Cidadania, aprofunda as disposições trazidas pela recomendação supramencionada e aprova orientações gerais aos gestores e trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social - SUAS dos estados, municípios e Distrito Federal quanto ao atendimento nos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no contexto de emergência em saúde pública decorrente do novo Coronavírus.

Em períodos de quarentena, todas as crianças e adolescentes devem ser tutelados de maneira diferenciada, sobretudo aquelas institucionalizadas, que por serem multivulneráveis, necessitam de dedicação ainda mais singular. Assim, são providências indispensáveis ao acolhimento:

  • Por serem ambientes pautados na coletividade, é importante que se busque diminuir o número de crianças e adolescentes acolhidos, o que pode ser feito por meio da reintegração às famílias de origem (natural ou extensa); mudança para o regime de acolhimento familiar (famílias acolhedoras); permanência temporária com padrinhos afetivos ou cuidadores diretos e demais profissionais do Serviço de Acolhimento; e inserção em família adotiva. É imprescindível que para a implementação de qualquer uma dessas mudanças haja a participação direta do Judiciário, com atuação dos magistrados, membros do Ministério Público, e produção de laudos técnicos, a fim de que todo procedimento seja realizado de forma segura e de acordo com as conformidades legais. Ademais, a oitiva da criança e do adolescente é indispensável, de modo que possam expressar suas expectativas, desejos e predileções com relação as mudanças;
  • A realização de novos acolhimentos deve ser exceção e ocorrer somente em casos excepcionais, para tanto deve ter precedência a aplicação do disposto no art. 130, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê a medida cautelar de afastamento do agressor da moradia comum quando verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável;
  • Devem ser adotadas medidas que diminuam o fluxo de pessoas nos abrigos institucionais, com o objetivo de diminuir as chances de contágio e propagação da doença. Assim, tem de se implementar temporariamente o regime de funcionamento emergencial com cuidadores residentes e restringir as visitas, garantindo a manutenção do contato remoto com familiares e pessoas relevantes para a criança e o adolescente;
  • É preciso a adaptação do espaço físico e reorganização do serviço para promover em maior grau possível o distanciamento social. A separação interna em subgrupos de dez crianças e adolescentes é uma opção para que os cuidadores possam atendê-las de forma mais individualizada. Os cuidados com a higiene também precisam ser redobrados, o que perpassa não só pela infraestrutura do acolhimento, mas também pela informação aos acolhidos, que devem ser esclarecidos, de forma clara e apropriada a seu estágio de desenvolvimento, sobre a pandemia e cuidados que ela demanda.
  • O contexto pandêmico traz implicações não só para saúde física, mas também para a emocional. Infantoadolescentes podem sentir os efeitos do novo cenário de forma ainda mais intensa, por isso é substancial a promoção da escuta ativa para que estes possam expressar seus desconfortos, medos e inseguranças. A construção de um ambiente afetuoso é fundamental.

As recomendações promovidas pelos órgãos públicos são de extrema relevância para que crianças e adolescentes não sejam esquecidos. O Poder Judiciário possui função elementar dentro dessa sistemática, atuando enquanto órgão fiscalizador e promotor de condições que tornem efetiva a garantia dos Direitos Fundamentais dos acolhidos. Que a sociedade civil e todos aqueles possuem alguma atuação junto à infância e adolescência possam compreender que, para vislumbrar o futuro, é preciso zelar por quem o compõe: nossas crianças e adolescentes.

Por fim, reitera-se que para a adoção de qualquer das medidas indicadas é imprescindível a oitiva da criança – que apesar da situação excepcional, permanece considerada sujeito de direitos e, portanto, não pode ser vítima de decisões arbitrárias que desconsiderem sua vontade.

 

Criança de quem?

De ninguém!

A criança é dela mesma

tem interesses

predileções

e voz

Mas falta o tempo...

o tempo que a molda

que a constrói

e a desenvolve.

E assim,

enquanto o tempo não passa

A criança,

cidadã

e sujeito

permanece sob responsabilidade

da família,

da sociedade,

do Estado,

de todos.

 

 

Notas e Referências

BRASIL. Corregedoria Nacional de Justiça. Pedido de Providências - 0002302-31.2020.2.00.0000. Brasília-DF: Corregedoria Nacional de Justiça, 2020. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/cnj_corregedoria_autoriza_audiencias_covid19.pdf. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 15 mai. 2020.

________.L. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Presidência da República. Ministério da Cidadania. Recomendação Conjunta, nº 1 de 16 de abril de 2020. Dispõe sobre cuidados a crianças e adolescentes com medida protetiva de acolhimento, no contexto de transmissão comunitária do novo Coronavírus (Covid-19), em todo o território nacional e dá outras providências. Brasília-DF: Ministério da Cidadania, 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/recomendacao-conjunta-n-1-de-16-de-abril-de-2020-253004251. Acesso em: 15 mai. 2020.

­________. Presidência da República. Ministério da Cidadania; Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Nota Pública. Medidas de Prevenção ao Coronavírus nas Unidades de Acolhimento Institucional. Brasília-DF: Ministério da Cidadania; Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, 2020. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/nota_publica_mmfdh_prevencao_covid19_acolhimento.pdf. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Presidência da República. Ministério da Cidadania; Secretaria Especial do Desenvolvimento Social; Secretaria Nacional de Assistência Social. Portaria n. 59, de 22 de abril de 2020. Aprova orientações e recomendações gerais aos gestores e trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social - SUAS dos estados, municípios e Distrito Federal quanto ao atendimento nos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no contexto de emergência em saúde pública decorrente do novo Coronavírus, COVID-19. Brasília-DF: Ministério da Cidadania; Secretaria Especial do Desenvolvimento Social; Secretaria Nacional de Assistência Social, 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-59-de-22-de-abril-de-2020-253753930. Acesso em: 15 mai. 2020.

________. Presidência da República. Ministério do Desenvolvimento Social. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Recomendações do Conanda para a Proteção Integral a Crianças e Adolescentes durante a Pandemia do Covid-19. Brasília-DF: Conanda, 2020. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/covid19/recomendacoes_conanda_covid19_25032020.pdf. Acesso em: 15 mai. 2020.

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EXAME. ABRIL. Coronavírus: SP e RJ começam maior quarentena do país. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/sp-e-rj-comecam-maior-quarentena-do-pais/. Acesso em: 15 mai. 2020.

SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas. uma reflexão de 7 de abril de 2020. Hora de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. 2020. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direito+de+fam%C3%ADlia+em+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+escolhas+tr%C3%A1gicas.+Uma+reflex%C3%A3o+de+7+de+abril+de+2020. Acesso em: 13 mai. 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry. A Proteção Integral da Criança e do Adolescente no Direito brasileiro. Revista do TST, Brasília, v. 79, n. 1, p.38- 54, jan. 2013. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/38644/003_veronese.pdf?sequence =1. Acesso em: 15 mai. 2020, p. 49.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os direitos da Criança – 30 anos – sua incidência no Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvador: JusPodivm, 2019

 

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