O ACESSO À JUSTIÇA E O SISTEMA MULTIPORTAS

23/10/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

A doutrina tradicional considerava o acesso à justiça como vinculado ao princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal, o qual se encontra no inciso XXXV, do artigo 5°, da Constituição Federal, de acordo com o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nessa perspectiva, o acesso à justiça equivaleria ao acesso ao Judiciário. No entanto, nos dias de hoje, essa compreensão é equivocada. Isso porque o Judiciário é apenas uma das espécies de acesso à justiça.

O CPC/2015, realça tal fato ao longo de seu texto, sobretudo no caput do artigo 3°, do livro inaugural de sua obra, denominado “das normas fundamentais do processo”. O caput do referido dispositivo ressalta que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão do direito”. Note-se que a expressão “do poder judiciário”, presente no inciso XXXV, artigo 5°, da Constituição Federal, foi substituída pelo termo “jurisdicional”.

Nesse sentido, acesso à justiça é diferente de acesso ao Judiciário. A Jurisdição passa a ser vista dentro de um modelo multiportas, que não é necessariamente estatal. Inclusive, os incisos I e II do artigo 3°, do CPC/2015, enfatizam a arbitragem, a conciliação e a mediação, estes últimos dentro e fora do processo, ou seja, de modo judicial e extrajudicial.

 O utilitarismo é indispensável para os resultados práticos, razão pela qual houve mudanças significativas na forma de se ver a Jurisdição, como também o processo. A pandemia mundial ocasionada pelo Covid-19, mais do que qualquer outro momento, fez reviver a ideia de que o direito, por meio do procedimento judicial ou extrajudicial, serve à sociedade, como meio de resolver conflitos de forma útil e eficaz.

Para isso, o acesso à justiça precisa estar em constante evolução e ebulição no sentido de refletir o momento social e trazer resultados práticos para a resolução dos conflitos dos membros da sociedade.

A sobrecarga de processos é um dos principais problemas do Judiciário, de modo que a reforma do sistema se tornou de natureza iminente. Com o Judiciário em colapso em face da quantidade processos em curso, notadamente o acesso à justiça resta prejudicado.O último relatório da Justiça em Números, realizado pelo CNJ, aponta o Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam alguma solução definitiva. Apesar do elevado do número de processos, que demonstra o congestionamento do sistema, houve redução da curva de estoque processual na Justiça Brasileira, de aproximadamente 1,5 milhão de processos. O número de processos pendentes em 2019 é próximo ao de 2015. Trata-se do segundo ano consecutivo de queda do número de processos pendentes.[1]

Há de se destacar o impacto do CPC/ 2015 tornou praticamente obrigatória a realização de audiência de conciliação e mediação, dentro e no início do processo judicial, bem como incentiva os outros métodos de solução de conflitos, inclusive no âmbito extrajudicial. Mas, desde 2003, quando se começou a debater sobre a reforma do sistema de justiça, o Ministério da Justiça vem demonstrando o seu apoio à disseminação de outros métodos adequados de solução de conflitos.

A Constituição Federal, através da Emenda Constitucional 45/2004, criou o CNJ, órgão responsável pela transparência e fiscalização da atividade jurisdicional perante a sociedade.

Nesse sentido, o CNJ criou em 2006 o “movimento pela conciliação”, do qual emanou a Semana Nacional de Conciliação, que devido ao sucesso de seus resultados, vem sendo utilizada anualmente em todos os tribunais do país. [2]

O CNJ, considerando que o direito de acesso à justiça não se encontra limitado à vertente formal dos órgãos do Poder Judiciário, buscou a implantação de uma política pública destinada a disseminação do uso de outros meio adequados e consensuais à solução dos conflitos, como a mediação e a conciliação, visando proporcionar condições de expansão e aferição de sua efetividade, por meio da Resolução 125/2010. Essa ideia restou confirmada no caput, do artigo 3°, do CPC/2015.

O ano de 2015 foi um marco ao movimento pelas soluções consensuais, haja vista que o CPC trouxe dentre seus pilares o estímulo a outros meios de solução de conflitos. A Lei 13.140, conhecida como Lei de Mediação, também adveio no ano de 2015, tendo entrado em vigor no mesmo período. Em razão da atual legislação de processo civil foi que também restaram implantadas, no mesmo período, modificações na Lei de Arbitragem Dessa maneira, nasce o Sistema Multiportas que se caracteriza, sobretudo, pelos meios autocompositivos, como a mediação e a conciliação.

Visando estimular os meios autocompositivos e ampliar o acesso à justiça através da melhoria da prestação jurisdicional, em 03 de maio de 2016, o CNJ criou o Sistema Multiportas Digital, que permite às partes que estejam distantes fisicamente a celebração de acordos. Essa possibilidade, inclusive, já se encontrava prevista no artigo 46 da Lei de Mediação e art. 334 § 7° do CPC, que estabelecem a possibilidade de realização da mediação por meios eletrônicos, que ganhou notoriedade durante a pandemia mundial do novo coronavírus (Covid-19). Isso porque, em razão do isolamento social, as mediações e conciliações on line mostraram-se alternativas adequadas para evitar a paralização das audiências processuais ou sessões nos procedimentos pré-processuais.

O CPC estimula a solução consensual do conflito, por meios estatais e não estatais, deixando tal incentivo claro logo em princípio, no capítulo destinado às normas fundamentais do processo, quando no artigo 3°, §3°, ressalva que os métodos consensuais de solução de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do ministério público, inclusive no curso do processo judicial.

Nessa mesma perspectiva de pacificação consensual, o Judiciário começou a utilizar a constelação familiar, técnica terapêutica criada pelo alemão Bert Hellinger na década de setenta, como meio de facilitar o acordo, podendo preparar as partes, em casos mais complexos, para a audiência de mediação ou de conciliação, conforme o caso.

O CNJ já vinha no incentivo aos meios consensuais de conflito desde 2010, com a Resolução 125[3], considerando que ao Judiciário cabe estabelecer política pública de tratamento adequado aos conflitos, organizando não apenas os serviços prestados no processo judicial, como também mediante outros mecanismos, em especiais os consensuais, como a mediação e a conciliação.

Dentre esses métodos também se encontra a constelação familiar, considerada pelo CNJ como alinhada com a Resolução n° 125/2010, bem como ao CPC/2015. Tal qual a mediação e a conciliação, a constelação familiar também começou a ser utilizada e incentivada antes da legislação processual em vigor. Foi o Tribunal de Justiça da Bahia, no ano de 2012, por meio do juiz SamiStorch que começou a utilizar a constelação familiar, tendo o uso da técnica surpreendeu pelos resultados[4].  A partir daí a técnica passou a ser empregada em diversos tribunais.

Mas, foi no de 2015 que ela ganhou notoriedade, quando o 3° Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) da comarca de Goiânia/GO ganhou o prêmio “conciliar é legal”, do Conselho Nacional de Justiça. Ressalta-se que antes mesmo dessa premiação houve, em 2014, o recebimento de uma menção honrosa no XI Prêmio Innovare, concedido pelo Instituto Innovare[5].

Vale dizer que atualmente a constelação encontra a sua aplicação no Judiciário de 16 (dezesete) Estados e o DF. Importante esclarecer que a mediação, a conciliação e a constelação familiar são meios distintos e que não se excluem, ao contrário se integram.[6]

A mediação, a conciliação e a constelação familiar, são meios de resolução de conflitos acolhidos e estimulados pelo CNJ, que as acolhe na Resolução 125/2010[7]. As três formas vêm sendo disseminadas nos Tribunais, sendo a mais recente a técnica da constelação familiar. Saber diferenciar essas técnicas é de suma importância para a prática da advocacia atualmente, principalmente se estiver a se falar do advogado colaborativo.

A constelação familiar é reconhecida como ciência dos relacionamentos humanos e vem sendo usada de diversas formas e áreas. O método permite a identificação e compreensão de questões mal resolvidas dentro da história familiar que são capazes de influenciar, inclusive de modo inconsciente, o comportamento dos membros da família.

A partir dessa técnica se busca evitar a repetição ou perpetuação, inclusive inconsciente, de comportamentos destrutivos, movida pelos vínculos com seus antepassados. Na dinâmica da constelação se revelam as “Leis Sistêmicas”, também conhecidas como “Leis Sistémicas”, que tratam as relações e padrões inconscientes de comportamentos. As ordens do amor são: o pertencimento, a hierarquia e o equilíbrio, sendo a base do pensamento sistêmico, pois quando respeitados tende a encontrar um equilíbrio nas relações.

De acordo com Bert Hellinger cada um dos elementos tem o direito de pertencer, ou seja, existir dentro do sistema, de modo que quando isso não é respeitado os efeitos da exclusão são sentidos pelo sistema, seja familiar ou organizacional. A hierarquia significa dizer que a ordem cronológica de chegada assegura aos mais velhos serem tratados com mais respeito e cuidado, o que mantém as relações mais harmoniosas. Já o equilíbrio significa a necessidade de preservar o equilíbrio entre o dar e o receber, vez que todo ser é dotado da capacidade de troca. [8]

Pela técnica da constelação familiar observa-se o desrespeito a essas ordens, a compreensão dos efeitos que disso emana compreensão, ou seja, os traumas e o reconhecimento da repetição de determinados padrões de comportamento. Compara-se a constelação a uma rede em que a pessoa está inserida como um nó que afeta e é afetado por toda a trama da rede

Essa técnica vem sendo utilizada no Judiciário, nos casos de alto grau de litigiosidade, como meio de facilitar acordos, sendo, muitas vezes, empregadas de forma anterior à mediação judicial. Ela vem sendo utilizada não apenas nos conflitos familiares, mas também na área penal e até mesmo trabalhista. No TJPE, por exemplo, ela começou a ser utilizada na esfera penal e depois nas ações de família. O TRT/AL e o TRT/GO, por sua vez, vêm utilizando a técnica nos casos trabalhistas. [9]

A mediação, por sua vez, utiliza técnicas mais simples de psicologia[10] e torna mais compreensíveis as mensagens por meio da escuta ativa, da análise da linguagem corporal, do resumo, da recontextualização, dentre outras técnicas, que mostram a importância de verificar o real interesse das partes, que está por detrás do discurso.  Nela, há uma análise não apenas da lide jurídica, mas também da lide sociológica, que envolve além dos aspectos objetivos, os emocionais e inconscientes. O problema jurídico, inclusive, é tratado em segundo plano, daí a razão pela qual o mediador não deve sugerir propostas de acordo. Trata-se de meio utilizado nos casos em que há vínculos anteriores entre as partes. A intenção é a restauração do diálogo e apenas em consequência a resolução do problema, realizada por propostas que surgem das próprias partes, quando conseguem resolver a lide sociológica e se olhar pela lente do outro.

O ideal é que a mediação seja utilizada antes do processo judicial ou logo em seu início. Isso porque quanto mais tempo o processo tramita maior é o conflito, ficando mais difícil o restabelecimento do diálogo.  Daí porque nos casos mais complexos ou em que o processo já tramita por longo período do tempo vem se aplicando a constelação familiar antes da mediação.

A conciliação é mais simples do que a mediação, pois é indicada para os casos em que não há vínculos anteriores entre as partes. Nela o que prevalece é a lide jurídica. No entanto, ainda assim, não se resume apenas à verificação da existência da possibilidade de acordo. Isso porque é comum ser necessário o emprego de algumas técnicas de psicologias, a fim de estimular o exercício da empatia entre as partes. As mesmas técnicas que se utiliza na mediação podem ser aqui empregadas. A diferença é que sua aplicação acaba sendo mais rápida ante a inexistência de vínculos a restaurar, o que também permite ao conciliador poder agir de forma mais direta, até mesmo sugerindo proposta de acordo, o que é vedado na mediação.

As normas existentes sobre o tema estimulam os meios autocompositivos, trazem regramentos e princípios que procuram por meio da cultura do diálogo uma solução em que ambas as partes saiam satisfeitas e com uma comunicação restabelecida.

Nesse sentido, deve-se destacar o aumento do número de Centros Judiciários de Resolução de Conflitos e Cidadania na Justiça Estadual que em 2014 constituía 362 e em 2019 constitui 1.284 unidades, de acordo com o relatório executivo da Justiça em Números do CNJ de 2020[11]

Observe-se que após a vigência do atual CPC houve um esforço estrutural significativo para implementação de políticas públicas que ampliem o acesso à justiça por meio do sistema multiportas. A questão, porém, vai para além do problema estrutural, pois de nada adianta a estrutura adequada se os operadores do direito não estiverem preparados para utilizá-la no sentido vislumbrado pelo legislador. 

Há uma preocupação de levar uma justiça de qualidade ao cidadão por decisões mais adequadas, baseada em uma política de ganhos mútuos e satisfação de todos com a solução empregada ao caso, que traz como consequência a diminuição dos números de processos no Judiciário. Tal fato, também implica a possibilidade de decisões mais rápidas no sistema heterocompositivo.

Nesse sentido, é que a Resolução CNE/CES n/ 5/2018, oriunda do Parecer n° 635/2018, homologado pela Portaria nº 1.351/2018 do Ministério da Educação, fez com que a cadeira de conciliação, mediação e arbitragem passasse a integrar de forma obrigatória a grade curricular do curso de direito. O prazo para as faculdades se adaptarem às novas diretrizes é de dois anos. Essa medida é de extrema importância e reflete uma provocação conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Assim, é que no contexto atual, do sistema multiportas, não se tem como ver o acesso à justiça limitado apenas à possibilidade de ajuizamento da ação ou à proteção judicial. Os meios adequados de solução de conflitos, sobretudo o autocompositivos, com a utilização da mediação, conciliação e constelação familiar, de modo pré-processual, mas também com os processos em curso, demonstra que a forma de exercer e ver o direito se mostra muito diferente da que se tinha no código de processo civil anterior.

A evolução do acesso à justiça é constante no sentido de servir à sociedade, acompanhando suas necessidades e procurando formas mais úteis e eficazes para a concretização dos direitos. Os novos rumos que se veem na atualidade estão entrelaçados a um sistema multiportas e um processo judicial dialogado, mais próximo do cidadão.

 

Notas e Referências

[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça-em-Números-2020. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justiça-em-Números-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf> . Acesso: 30.08.2020.

[2] _________. Movimento pela conciliação. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/movimento-pela-conciliacao/ Acesso: 30.08.2020

[3] _________. Atos Normativos. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/156. Acesso em: 10 out. de 2018.

[4]__________. Juiz consegue 100% de acordos usando técnica alemã antes das sessões de conciliação https://www.cnj.jus.br/juiz-consegue-100-de-acordos-usando-tecnica-alema-antes-das-sessoes-de-conciliacao/ Acesso em 25.08.2019

[5]__________. TJGO é Premiado por Mediação Baseada na Técnica de Constelação Familiar. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79702-tjgo-e-premiado-por-mediacao-baseada-na-tecnica-de-constelacao-familiar Acesso em 25.08.2019

[6]  _________. Constelação Familiar no Firmamento da Justiça em 16 estado. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86434-constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df.   Acesso em: 24.08.2019

[7]__________. Constelação Familiar ajuda a humanizar práticas de conciliação no Judiciário. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83766-constelacao-familiar-ajuda-humanizarpraticas-de-conciliacao-no-judiciario-2 Acesso em 06/09/2019.

[8]HELLINGER, Bert. Ordens do Amor: Um Guia Para o Trabalho com Constelações Familiares. Disponível em: http://www.petropolis.rj.gov.br/petropolisdapaz/artigos/downloads/Ordens-do-Amor-Um-Guia-para-o-Trabalho-com-Constelacoes-Familiares.pdf  Acesso em 06.06.2019.

[9] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Tribunal pernambucano utiliza constelação familiar em conciliação. Notícia divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça em 22 de novembro de 2016. Disponível em:    http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/83966tribunal-pernambucano-utilizada-constelacao-familiar-em-conciliacao .   Acesso em: 30 maio 2017.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DE ALAGOAS. Magistrados participam de curso sobre constelações familiares aplicadas à resolução de conflitos. Notícia. Sem data de publicação. Disponível em: http://www.trt19.jus.br/siteTRT19/portal/portalNoticias.jsp?codigoArt=9508  Acesso em 17/06/2017.

[10] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial, 6ª Edição (Brasília/DF:CNJ), 2016. Disponível em

http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/07/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf . Acesso em: 25 out. 2018.

[11] _________ Sumário Executivo da Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_V2_SUMARIO_EXECUTIVO_CNJ_JN2020.pdf>. Acesso em 30.08.2020.

 

 

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