O «acaso» nosso de cada dia: o largo braço da fortuna (Parte 2)

05/01/2018

La Providencia es el nombre cristiano de bautismo para el azar.” J. B. Alphonse Karr

Decerto que é nossa instintiva capacidade para detectar pautas e relações causais a que nos permite dar sentido ao mundo, isto é, encontrar sentido às nossas observações e utilizá-las para compreender e predizer os acontecimentos (depois de tudo, a verdade, despida de qualquer complexidade filosófica desnecessária, consiste em padrões repetíveis e verificáveis[1]). O problema (primeiro) é que às vezes nos excedemos em nosso entusiasmo e nos tornamos extremadamente sensíveis no que se refere a ver padrões onde só há ruído aleatório e a encontrar relações causais onde não existem. O segundo problema é que as experiências passadas e a relativa estabilidade do presente são uma referência inútil para prever o futuro: a tendência natural de projetar ao futuro incerto os dados conhecidos e usá-los como guia para tratar de predizer o curso dos acontecimentos não é um procedimento certeiro para enfrentar-se às angústias geradas pela incerteza.

Como explica Nassim Taleb, nossa tendência a construir narrações do passado e tomar como referência os dados do presente (e de crer nelas) faz com que nos resulte difícil aceitar os estreitos limites de nossa capacidade para detectar a fração pasmosamente pequena da realidade que nos rodeia, para admitir que se trata de uma faculdade bastante imperfeita e sumamente falível, para captar com toda a claridade a ideia de que nossa percepção e conhecimento do mundo são  restritos, de que existe informação que nos resulta impossível obter e de que o futuro sempre nos brinda com possibilidades inimagináveis sobre as quais, na grande maioria das vezes, não temos nenhum tipo de controle. Uma espécie de “arrogância epistêmica” provocada pelo círculo positivo da enganosa sensação de (auto) controle, de um otimismo pouco realista ou de uma autoestima exagerada, e que nos leva a sobrestimar o que “sabemos”, a infravalorar o que “não sabemos” e a rechaçar a evidência de que todas as coisas são vulneráveis ante a fortuna.

O velho lema dos humanistas florentinos, Virtú vince fortuna, indica apenas que a virtude incrementa as possibilidades de conseguir aqueles objetivos que requerem esforço, trabalho e sacrifício, mas não garantem nada e nem asseguram sempre o resultado buscado. Nenhuma conquista é firme ante essa que Epicuro chamava “a tirana universal”. Por isso Montaigne advertiu que inclusive em nossos planos e deliberações mais simples, “certamente há de intervir a fortuna, pois não é muito o que pode nossa sabedoria”. A fortuna é onipotente!

Para dizer a verdade, só os néscios consumados e os cegados pela vaidade desconhecem esta elementar verdade e ignoram o protagonismo que a fortuna tem em todas as coisas humanas. Quem pode negar o fato de que a vida toma forma por uma série de acontecimentos esperados e inesperados, e que até as mais insignificantes de nossas decisões têm ao menos mais de dois resultados possíveis? Um aspecto da vida cuja importância não se pode negar: a ambiguidade, que cria um espaço flexível sempre em um equilíbrio impreciso.

De outro modo, o mundo seria uma sucessão de cenas irretocáveis, tediosas e insuportáveis que se expressariam sem nenhuma inquietude e com a felicidade robótica de quem crê que tem o controle de tudo. Conhecer-se a si mesmo, como desejava Sócrates, é também reconhecer que o êxito, o fracasso ou a felicidade dependem em grande medida de um encadeamento de circunstâncias ou confluência de fatores (incluindo a ausência de circunstâncias que impediriam o fato) que escapam ao controle próprio e que são, em grande medida, indiferentes às habilidades e vontades pessoais. Não devemos equivocar-nos: todo mundo não pode fazer qualquer coisa.

Embora encontremos gente que crê que basta uma férrea força de vontade para que as circunstâncias (naturais ou sobrenaturais) sempre conspirem em seu benefício, o certo é que a aleatoriedade, a indeterminação e a casualidade estão sempre presentes e intervêm em todos os aspectos da vida, a favor ou em contra. E da mesma forma que a evidência empírica joga por terra os mitos da exclusividade da habilidade, da vontade ou da motivação pessoal, das tramas visíveis de uma rede de causas mágicas e da previsibilidade dos acontecimentos e circunstâncias em um contexto em que estão ausentes regularidades estáveis (D. Kahneman), a sensatez e/ou a ausência deliberada da estupidez supõem a incerteza, a fortuna, o desconhecido, o contingente, o fortuito, o casual, o indeterminado, o aleatório...; quero dizer, a ocorrência simultânea de eventos que não estão unidos por uma relação de causa e efeito.

Se não logramos entender e aceitar essa realidade, nos veremos encarcerados em um universo perfeitamente previsível que simplesmente não existe, a não ser no interior de nossa própria cabeça. Não podemos, a partir de uma simulação mental de nossa própria pessoa, subir ou elevar-nos sobre nossos próprios ombros. Deveríamos saber que nada pode fazer-nos invulneráveis à casualidade. Como disse em certa ocasião Gabriel García Márquez: “La vida no es sino una continua sucesión de los golpes del azar.”… O resto são castelos no ar.

Evidentemente que nossa maneira de ver as coisas e de como nos sentimos em um determinado momento da vida depende em grande medida de como pensamos ou antecipamos o que sentiremos no futuro: o que se espera é o que importa em realidade (I. Kirsch). De fato, ninguém nega que nossas expectativas específicas do mundo influem poderosamente no que vemos; melhor dito, que as expectativas que temos condicionam consideravelmente o que percebemos e experimentamos no presente, influem em nossa maneira de reagir ante situações concretas, na percepção que temos de nós mesmos e na motivação respeito a acontecimentos futuros.

Mas a memória (tanto a do passado como a do futuro), além de ser uma amiga desleal, distribuída e reconstruída, é frágil e a realidade é mais ambígua e complexa do que aparenta à simples vista. E sucede tudo tão depressa que na maioria das vezes não somos capazes de alcançar ver a relação entre os acontecimentos e nem tampouco de medir com exatidão as consequências futuras de nossos atos; cremos na ficção do tempo, nos resistimos ao fato de que o presente sempre está aberto a vários futuros e olvidamos que a “fortuna supera em retitude os preceitos da prudência humana” (Plutarco). Não podemos ser donos da sorte ou do azar e não há método humano capaz de domesticá-los.

Com isso não quero dizer que não se deve planejar nada, que devemos viver com pessimismo ou que nossas vidas e nossos objetivos vão tomando forma somente sobre a base de acontecimentos arbitrários e caprichosos, e/ou que a fortuna implica arrancar de nossa consciência o fato de que somos responsáveis, ao menos em parte, tanto de nossos êxitos como de nossos fracassos. Unicamente digo que parecem avançar por um terreno que na maioria das vezes está sem sinalizar. Por exemplo, não são poucas as ocasiões que nos esforçamos por algo e nos desesperamos porque não chega ou não sucede como ou no momento que havíamos planejado. Outras vezes anelamos tanto que passe algo e, ou nunca ocorre, ou quando sucede, o evento resulta inacessível porque estamos fisicamente impedidos, não "temos tempo" ou já não estamos onde deveríamos haver estado.

Resultado: o mundo, tão generoso em opções, não é tão simples como “se desejas ou fazes A ocorre B”. Na verdade, funciona mais bem assim: “se desejas ou fazes A há um X% de possibilidades de que ocorra B”. Esta pequena distinção é fundamental, porque implica que os resultados que obtemos não somente dependem de nós e de nossas ações, senão que também dependem do acaso. É uma lástima que a realidade nem sempre se ajuste a nossos desejos, a nossa conveniência ou a nossa vontade.

Sigamos.

 

[1] Segundo John Tooby, nossa mente está acostumada a pensar em termos de um só causa, em termos lineares e, ademais, temporais: o que vem antes é a causa do que vem depois. Contudo, assinala o autor, se queremos entender melhor as coisas temos que pensar que os resultados são causados por um “nexus” ou confluência de fatores (incluindo a ausência de circunstâncias que impediriam o fato): ante qualquer fato a lista de fatores “que intervienen es probablemente infinita (y azarosa). Pero nuestra mente evolucionó para extraer de la situación el elemento que podemos manipular y conseguir un resultado favorable, estable y seguro para nosotros.” Na verdade, parece que (somente) há um sucesso único no mundo, que é tudo o que sucede; e há uma única rede de causalidade, que é tudo o que existe, baixo a tirania da fortuna.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Infinite // Foto de: Raúl Sánchez Castellón // Sem alterações

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