O 8 de março tem que chegar ao Direito Brasileiro

08/03/2017

Por Paola Bianchi Wojciechowski – 08/03/2017

Eu lembro do dia marcante em que fui assistir a uma palestra do Amilton Bueno de Carvalho, no primeiro ano de faculdade. Como eu amei ouvir aqueles palavrões reverberarem pela sisuda Universidade Católica de Curitiba. O Amilton fez-me experimentar a primeira sensação de familiaridade no curso de Direito – eu vi meu pai[1] – e foi a primeira vez em que me senti confortável. Os ternos, vocabulário jurídico, simbolismos e “doutores” por todos os lados sempre tiveram o efeito oposto. Mas, eu não pude deixar de pensar, será que na boca de uma mulher aqueles palavrões provocariam divertimento ou constrangimento na plateia? Acho que quem cresceu e ouviu inúmeras vezes a frase - “Mulher bonita não fala palavrão!” - responderia a essa pergunta com assertividade. Aliás, a primeira vez em que ouvi uma mulher falar palavrão em sala de aula foi só anos mais tarde, ao cursar uma matéria no Doutorado em Filosofia na Unicamp.

Antes de causar estranhamento, esclareço que esse texto não pretende ser uma ode ao uso de palavrões. Apenas presta-se a chamar a atenção para o fato de que, na nossa sociedade, a desigualdade entre homens e mulheres vai da restrição ao uso da linguagem/do vocabulário até a restrição ao gozo do próprio corpo. E, quando a maior parte dos palavrões traz em si juízos de valor sobre a sexualidade feminina, é de se pensar a razão pela qual o manejo de tais estigmas, em grande medida, circunscreve-se à esfera masculina – como forma de submissão. As mulheres estão sempre à mercê desses rótulos arbitrários que pretendem nos aprisionar e que nos levam ao descrédito – como os estigmas de Goffman[2].

Nesse contexto, fica fácil adivinhar porque a designação “Marcha das Vadias” incomoda e ofende – e confunde – tanta gente! Eu me convenci da pertinência dessa denominação quando me dei conta de que, a despeito de qualquer comportamento/atitude, em algum momento da sua vida, há uma grande probabilidade de uma mulher ser tachada de vadia – seja pelo uso da roupa, porque subiu na carreira, porque conseguiu um cargo inesperado. Os feitos das mulheres são sempre questionados – inclusive por outras mulheres – a partir de sua sexualidade. Por isso a importância de nos apropriarmos desses termos e ressignificá-los.

Aliás, não posso deixar de mencionar que eu sempre invejei isso nos homens. Imagina que brilhante não ter os seus feitos/conquistas submetidos a esse escrutínio – pelos seus pares e pelo sexo oposto. Quantas vezes, no meio acadêmico, jurídico, profissional, mulheres ouvem – inclusive e principalmente de outras mulheres – que se alcançou aquilo devido a atributos sexuais/beleza física/relacionamentos.

Eu sempre ambicionei que as mulheres direcionassem umas às outras esse companheirismo, essa credibilidade, que os homens dispensam uns em relação aos outros. Durante toda a infância, morei em um conjunto de prédios habitado, fundamentalmente, por meninos e homens. Eu, menina, observava – com uma certa admiração – o orgulho que os meninos expressavam em relação à condição masculina, o que começava no orgulho que manifestavam em relação aos seus órgãos sexuais. A pré-adolescência é uma idolatria ao pênis. No entanto, logo cedo, aprendi que, ao contrário do pênis, a vagina era uma vergonha. Menstruar era uma vergonha. Os seios crescendo eram uma vergonha a ser escondida. E, ao contrário da punheta, a masturbação feminina era… Ops, que masturbação feminina? Tudo começa pelo silêncio. A vagina se torna uma espécie de “aquela-cujo-nome-não-deve-ser-mencionado!”. Quantos designativos para desviar-nos do autoconhecimento. Quantos designativos foram relegados a filmes pornográficos.

É triste observar que a história do amor – e do matrimônio – no Ocidente, infelizmente, foi construída sobre a repressão da sexualidade feminina. E o Direito exerceu – e, quiçá continue exercendo – um papel determinante nessa construção social. Para se ter uma noção de como o Direito se presta a perpetuar essas estruturas que visam ao confinamento da sexualidade feminina basta fazer uma pesquisa jurisprudencial sobre o “débito conjugal”, por exemplo, ou pensar que, até algum tempo atrás, as mulheres eram detidas – ainda correm o risco de o serem – por fazerem topless, o que era interpretado como ato obsceno. A título exemplificativo, o julgado a seguir transcrito expressa, quase de forma caricata, o assalto ao exercício da sexualidade feminina – que merecia ser minuciosamente delimitada no interior do casamento.

LIMITES DO DEBITO CONJUGAL. ÔNUS DA PROVA. O COITO ANAL, EMBORA INSERIDO DENTRO DA MECÂNICA SEXUAL, NÃO INTEGRA O DÉBITO CONJUGAL, PORQUE ESTE SE DESTINA À PROCRIAÇÃO. A MULHER SOMENTE ESTA SUJEITA À COPULA VAGÍNICA E NÃO A OUTRAS FORMAS DE SATISFAÇÃO SEXUAL, QUE VIOLENTEM SUA INTEGRIDADE FÍSICA E SEUS PRINCÍPIOS MORAIS. A MULHER QUE ACUSOU O MARIDO DE ASSÉDIO SEXUAL NO SENTIDO DE QUE CEDESSE A PRÁTICA DA SODOMIA, E NÃO DEMONSTROU O ALEGADO, RECONHECIDAMENTE DE DIFÍCIL COMPROVAÇÃO, ASSUME OS ÔNUS DA ACUSAÇÃO QUE FEZ SEM NADA PROVAR. A PROVA, NOS TERMOS DO ARTIGO 333, INC-I, DO CPC, INCUMBE A QUEM ALEGA. PROCEDÊNCIA DA RECONVENÇÃO OFERECIDA PELO VARÃO. (TJRS - Apelação Cível Nº 595116724, Oitava Câmara Cível, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 07/03/1996).

É bastante impressionante como uma ementa tão breve é capaz de condensar uma longa história de submissão da mulher a papéis sociais estritamente delimitados e tendentes a fulminar a liberdade sexual feminina. Salta aos olhos o trecho que defende a sujeição da mulher ao sexo vaginal – já que esse apenas se destina à procriação –, o que reflete a visão da mulher como mera procriadora.

Quando se trata da abordagem jurídica da sexualidade feminina, indispensável a leitura do texto da Professora Maíra Zapater, “Da 'mulher honesta' à 'mulher rodada': eu vejo o futuro repetir o passado[3], em que ela faz uma exposição detalhada sobre o código moral de comportamento feminino erigido juridicamente em torno do conceito de “mulher honesta” - que só foi excluído do ordenamento jurídico em 2005 –, o qual se perpetua em inúmeros outros estigmas enraizados socialmente.

Há que se lutar arduamente contra os discursos binários que dividem as mulheres em categorias como: “mulheres de verdade” vs. “mulheres de mentira”, “mulheres que se dão ao respeito” vs. “mulheres que não se dão ao respeito”, sobretudo porque essas divisões arbitrárias e estigmatizantes naturalizam a violência contra a mulher. A pesquisa realizada pelo DataFolha explicita diretamente a relação entre a violência e esses estigmas, ao constatar que um terço da população concordou com o raciocínio segundo o qual o comportamento da vítima justifica o crime de estupro, inserido nessas duas frases – causadoras de calafrios: “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar de ser estuprada” e “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.

O machismo se manifesta rotineiramente, às vezes, silenciosamente! São também silenciosas as mortes de incontáveis mulheres em decorrência da violência de gênero! E quando a mulher se insurge contra a reificação, a opressão, a submissão, não raro, fica à mercê das etiquetas. Silenciosa eu leio estatísticas diárias. Tantas palavras ficam atravessadas na garganta perante a atrocidade dos números, mas, dentro de mim, com a força das vozes e dos gritos abafados de milhares de mulheres, só consigo concluir que uma saia curta não fala nada sobre a mulher que a veste, mas fala muito sobre a sociedade que a reprime.

Aliás, desde o dia em que descobri que Eros Grau escrevia contos eróticos, eu me questionava, fosse uma ministra mulher haveria essa aceitação ou falariam que ela não estaria se dando ao respeito?

Não ignoro que o âmbito jurídico seja cercado de formalismos, sisudez, restrições, etc., para todos os gêneros. No entanto, para as mulheres, esse formalismo parece recair sempre de forma mais feroz sobre o uso/gozo do próprio corpo. Basta que se veja a Portaria nº 05/2017 da Direção do Fórum da Comarca de Cambará-PR, por meio da qual a Juíza, diante da “necessidade de regular a fluência do serviço forense e não se criar situações de desconforto”, resolveu proibir o ingresso nas dependências do Fórum de pessoas que se achassem “vestidas com trajes incompatíveis com o decoro e a dignidade forenses”, considerando-se como tais os trajes femininos: “a) Com decotes profundos a ponto de deixarem mais da metade do colo dos seios visíveis; b) transparentes a ponto de permitir entrever-se partes do corpo ou peças íntimas; c) Sem alças; d) Que deixem a barriga ou mais de um terço das costas desnudas; e) Do tipo shorts, ainda que com o uso conjugado de meias calças; f) Do tipo saia que não cubra pelo menos 2/3 (dois terços) das coxas; g) Do tipo chapéu, gorro, boina ou boné.[4]A anatomia feminina ainda é motivo de assombro e desconforto para alguns!

O cenário que me veio à mente seria cômico, não fosse trágico: o/a segurança interpelando as mulheres que vestem saias na porta o Fórum e, empunhando uma fita métrica, medindo-as, a fim de aferir se estas cobrem mais de 2/3 das coxas – caso contrário barrando-as na porta? A nudez e as vestimentas femininas estão sempre sujeitas a uma regulamentação mais minuciosa. Inclusive, lembro que, quando jovem, eu ficava confusa a respeito da contraproducência do protesto através do topless. No entanto, certa vez, estudando a obra “The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era” da filosofa Seyla Benhabib, na Unicamp, deparei-me com essa frase: “As mulheres e seus corpos são o local simbólico-cultural sobre o qual as sociedades humanas inscrevem sua ordem moral”[5]. Ora, se é sobre o corpo da mulher que todos esses códigos morais são inscritos, nada mais coerente que a mulher use do seu corpo; goze do seu corpo; proteste com a nudez do seu corpo; a fim de garantir que a única coisa, nele, a ser inscrita seja a palavra liberdade.


Notas e Referências:

[1] Meu pai, Antonio Thadeu Wojciechowski, é um grande poeta curitibano e crescemos rodeadas por punks, artistas, música, poesia. Eu e minha irmã fomos sortudas. Tivemos o privilégio de vivenciar a politização, a inteligência e a sagacidade forte e polida da minha mãe. Com a poesia desconcertante do meu pai e suas cantorias até à madrugada. E isso significava, também, estar rodeada de homens e seus palavrões. E eu, definitivamente, não conseguia entender porque aquelas palavras – que pareciam gerar tanto divertimento – pareciam monopólio deles?

[2] GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988, p. 12.

[3] Texto disponível em: <<http://justificando.cartacapital.com.br/2015/08/21/da-mulher-honesta-a-mulher-rodada-eu-vejo-o-futuro-repetir-o-passado/>>.

[4] Portaria disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2017/1/art20170127-07.pdf. É interessante comparar com as restrições impostas aos homens, a eles se proibiu os seguintes trajes: “a) Do tipo camiseta regata; b) Do tipo camiseta com gola “U” ou “V” que deixe mais da metade do tórax exposto; c) Do tipo chapéu, gorro, boina ou boné”.

[5] Texto no original: “Women and their bodies are the symbolic-cultural site upon which human societies inscript their moral order” (BENHABIB, Seyla. …., p. 84).


Paola Bianchi Wojciechowski. Paola Bianchi Wojciechowski é Mestra em Direito pela PUC-PR. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Política Criminal pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela PUC-PR. Assessora Jurídica no MPPR. . .


Imagem ilustrativa do post: Por Paola Bianchi Wojciechowski


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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