Nulla vindicta sine poena

09/03/2015

  Por Elmir Duclerc Ramalho Junior – 09/03/2015

Introdução

O texto que segue, como o título já anuncia, pretende discutir o papel da vítima no processo penal, a partir de uma concepção agnóstica da pena.

Na verdade, trata-se de desdobrar aspectos específicos de um tema que tem sido objeto de minhas preocupações nos últimos anos: a tentativa de construir uma Teoria do Processo Penal que de fato sirva à tutela da liberdade individual, contra o arbítrio punitivo do Estado; e que seja elaborada a partir da negação de qualquer pretensão de uma Teoria Geral do Processo, com um instrumental técnico próprio e, acima de tudo, pressupostos filosóficos específicos e claramente delineados.

As hipóteses com as quais trabalhamos, portanto, seriam as seguintes: a) qualquer pretensão de construção de uma Teoria do Processo Penal precisa partir do reconhecimento de que a pena criminal, na atual quadra da história, não goza de qualquer justificação racional; e b) uma Teoria do Processo Penal construída sobre essas bases filosóficas, dentre outras coisas, exige uma revisão do papel da vítima no processo penal, que se lhe ofereça efetiva reparação em relação ao dano sofrido e, ao mesmo tempo, lhe devolva o papel de senhora da sua própria vingança.

Para demonstrar a verdade das hipóteses que anunciamos, optamos por realizar uma análise crítica da mais refinada tentativa de resgatar a razão no Direito Penal, empreendida magistralmente pelo mestre Italiano Luigi Ferrajoli, e sua confrontação com o pensamento crítico em ciências criminais, particularmente naquilo em que divergem e convergem, no que respeita à justificação da pena.

O passo seguinte é demonstrar de que maneira o produto desse enfrentamento teórico repercute para redefinir o papel da vítima no processo penal, tendo em conta, repita-se, a aspiração de proteção da liberdade humana contra as irracionalidades do poder punitivo.

O Garantismo justificacionista de Ferrajoli.

Da leitura da obra de Ferrajoli, todavia, o que se percebe é que a própria concepção do modelo garantista decorre de seu posicionamento frente às questões sobre o se e o porque punir.

Como sabemos, Ferrajoli rejeita o abolicionismo, mas também repele qualquer tendência de justificação de cunho  retribucionista que funcionariam à semelhança dos  antigos sistemas mágicos e religiosos de solução de conflitos (a expiação que faz desaparecer o pecado), concebem a pena como um fim em si mesmo (o mal  praticado pelo indivíduo reclamaria uma retribuição na forma de uma punição) e supõem a existência de uma lógica (indemonstrável)  entre crime e castigo.

Em seguida, depois de uma crítica cirúrgica às doutrinas utilitaristas tradicionalmente conhecidas (que teriam em comum “La concepción de la pena como medio, más que como fin o valor (...)”[1]), chega à conclusão de que a justificação racional da pena só seria alcançada mediante uma mudança de foco no que se refere ao próprio conceito de utilitarismo, entendido, nesse passo, como máxima segurança para a maioria não desviada, mas sem abrir mão de um mínimo sofrimento necessário para a minoria desviada. Assim, o que justificaria a pena, em última análise, é a sua função dissuasória, associada à necessidade de evitar vinganças desproporcionais ao criminoso.

Linhas gerais da Teoria Agnóstica da Pena, de Zaffaroni.

Zaffaroni[2], como se sabe, tem os pés bem firmados na pesquisa criminológica. O seu olhar interdisciplinar e crítico sobre a realidade do crime leva-o a perguntar-se o que se pode mesmo chamar de direito penal, e o que se pode chamar propriamente de pena.

Nesse passo, examinando os diversos modelos de intervenção estatal historicamente conhecidos, reconhece a pena criminal como expressão maior do modelo punitivo, ao lado dos modelos reparador (característico do direito privado) e dede intervenção direta ( próprio do direito administrativo).

O confronto do modelo punitivo com os outros, ademais, deixa a descoberto a sua pouca aptidão para de fato solucionar os conflitos, senão simplesmente suspendê-los, isto é, proporcionar-lhes uma resolução meramente simbólica, que exclui a vítima e acaba delegando ao tempo a função real de dissipá-lo. Além disso (e ao contrário do que ocorre com os demais), dificilmente pode ser combinado com outros modelos para tomar por empréstimo suas potencialidades pacificadoras.

Criam-se as condições para um conceito de pena obtido negativamente, isto é, que atribui esse caráter a toda e qualquer medida estatal de coerção que não tenha o caráter reparador (ou restitutivo) e tampouco o caráter de coerção direta. Tem-se, portanto, que a pena é “uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes” [3].

Ao fim e ao cabo, a pena criminal resta tão legitimada quanto a guerra e, nesse sentido, talvez represente o maior dos paradoxos do próprio fenômeno jurídico da atualidade.

Se existe, portanto, alguma racionalidade na pena criminal, ela deve ser entendida como uma espécie de capitulação da razão à nossa animalidade ancestral. Em suma, trata-se de uma racionalidade que compreende os seus próprios limites, e não pode fazer muito mais que reconhecer a vingança como um elemento essencial da formação da própria psique humana, que extrapola a consciência/inconsciência individual e se projeta sobre o coletivo.

Garantismo e crítica da pena.

Da leitura dos tópicos anteriores, pode parecer, numa primeira mirada, que garantismo e teoria agnóstica da pena caminham em direções diametralmente opostas, se levarmos em conta que, enquanto o primeiro encontra uma justificação supostamente racional da pena, a segunda rejeita essa possibilidade.

Curiosamente, entretanto, nada disso impede que esses duas magníficas construções teóricas convirjam no sentido de exigir que o poder punitivo esteja rigidamente limitado por garantias, e justo por isso sejam frequentemente utilizadas, de forma combinada e complementar, por toda uma geração de juristas a que se poderia chamar de “crítica e garantista”. Talvez esse seja o resultado possível de uma crítica que, como toda crítica, aponta na direção da utopia, mesmo que precise fazer concessões a um pensamento fortemente influenciado pela tradição da filosofia analítica e, justo por isso, compreensivelmente conservadora.

A vítima e sua vingança: limitação pela radicalização do modelo restaurativo.

A ideia de vingança, portanto, deve servir como fio condutor para qualquer construção que se pretenda fazer de uma Teoria do Processo Penal, aí incluída uma indispensável reflexão sobre o papel dos chamados sujeitos processuais, especialmente a vítima.

Reconhecer o direito da vítima a uma vingança, portanto, não significa, abrir espaço para uma concepção de “direito penal máximo”. Pelo contrário, a reabilitação do seu direito à vingança deve ser entendida como um fator adicional de limitação do poder punitivo e de sua irracionalidade. Em última análise, o que se propõe é uma espécie de radicalização do modelo de justiça restaurativa, da forma como está consagrado, inclusive no artigo 1º da Declaração da Costa Rica sobre Justiça Restaurativa na América Latina, ao dizer que:

Art. 1º - [...]

- 1º - Processo restaurativo é aquele que permite vítimas, ofensores e quaisquer outros membros da comunidade, com a assistência de colaboradores, participar em conjunto, quando adequado, na busca da paz social.

- 2º - Arrependimento, perdão, restituição, accountability, reabilitação e integração social, entre outros, podem ser incluídos dentre as metas restaurativas.

O modelo que se propõe com a justiça restaurativa, portanto, busca resgatar a figura da vítima, como um ator que precisa ter voz ativa na resolução do conflito e a atenção do Estado no que se refere à cura efetiva das suas dores e traumas, o que não raro dispensará a punição do agressor.

Radicalizar esse modelo, por fim, talvez nos leve a pensar, em perspectiva, na exigência de que a persecução de todo e qualquer delito (ou não será delito) esteja sujeita à vontade de alguma vítima (ou seus sucessores) que, se não deve arcar com os encargos financeiros do processo (que continuaria a cargo do Estado), teria o poder (salvo situações excepcionalíssimas) de pura e simplesmente perdoar, após prévio e necessário procedimento para tentativa de reparação.

Se quisermos fazer uma homenagem à estética majestosa do (simétrico) decálogo garantista de Ferrajoli, bem poderíamos acrescentar-lhe algo, mais um axioma,  que a par de sacrificar a estética “perfeita” de um “decálogo”, imprime-lhe a força cabalística e mítica do número 11. Antes: antes de nulla poena sine crimine...nulla vindicta sine poena.


Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi, op. cit.,  258. [2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al., Direito penal brasileiro, v. 1, p. 38 e sgs. [3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al., op. cit., v. 1, p. 99.

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elmirElmir Duclerc é Promotor de Justiça em Salvador, Professor Adjunto de processo penal da UFBA.

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