Por Felipe Daniel Amorim Machado - 27/09/2015
Aportes iniciais
Apesar de passados quase dois anos da ainda recente reforma do Código de Processo Penal (CPP), dada pelas leis nº 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08, vários de seus dispositivos continuam a suscitar dúvidas e entraves, tanto práticos quanto acadêmicos. Tal é o caso da interpretação do art. 212 do CPP, com redação dada pela Lei nº 11.690/08, que alterou a dinâmica da inquirição de testemunhas no processo penal, bem como a atuação do magistrado no respectivo ato processual.
Sabe-se que, antes da reforma de 2008, a audiência de oitiva de testemunhas do processo penal se dava através do sistema presidencialista, no qual devem as partes direcionar as perguntas ao juiz, que as retransmitia, após um juízo de pertinência com a causa, à testemunha. Por aquela redação, o magistrado ainda poderia formular perguntas à testemunha em qualquer momento da audiência.
Por outro lado, privilegiando as disposições de um sistema de fato acusatório, a nova redação[1] do art. 212 do CPP extinguiu o retrógrado sistema presidencialista, aproximando-se do adversarial system americano. Agora, as partes direcionam suas perguntas diretamente à testemunha, de modo que quem a arrolou (defesa ou MP) pergunta primeiro (direct-examination), devendo a outra parte realizar sua arguição logo na sequência (cross-examination). Ademais, outro traço de extrema importância para se concretizar o sistema processual penal disposto na CF88 – diga-se acusatório – veio no parágrafo único do novo art. 212, que retira das mãos do juiz a gestão da prova e a coloca nas mãos de quem é responsável por elas de direito – dentro de um sistema verdadeiramente acusatório –, ou seja: as partes. Logo, a atuação do magistrado na inquirição das testemunhas será supletiva, acontecendo em momento posterior às formulações de perguntas das partes.
“[...] nos termos do art. 212, CPP (Lei 11.690), as testemunhas serão inquiridas diretamente pelas partes (e não mais por meio do juiz), cabendo ao juiz, após as perguntas e respostas, complementar a inquirição. Note-se: complementar. A modificação, portanto, é total, afastando o juiz da função de explorar, prioritariamente, a prova. [...].” (OLIVEIRA, 2008, p. 331, grifo nosso)
Fato é que o art. 212 do CPP despertou várias interpretações, tanto dos tribunais quanto da doutrina sobre seu real significado. Alguns alegam que nada mudou em relação à interpretação do texto anterior à reforma; outros afirmam que o desrespeito a tal artigo gera nulidade relativa do processo; por fim, há os que defendam a nulidade absoluta do processo.
Logo, o presente ensaio destina-se, num primeiro momento, a pontuar a (in)aplicação do art. 212 do CPP nos tribunais, bem como sua interpretação doutrinária. Na sequência, será apontada a gestão da prova como característica central da diferenciação entre sistema acusatório e inquisitório, para, ao final, confrontar as interpretações do art. 212 com o sistema acusatório, a fim de se chegar à sua interpretação constitucionalmente adequada.
A (in)aplicabilidade do art. 212 pelos tribunais
Apesar de já se falar em um novo CPP,[2] algumas das recentes alterações do atual CPP brasileiro são vistas como uma nova roupagem para velhos paradigmas.
Membros da magistratura, bem como parte da doutrina jurídica, defendem que a nova redação do art. 212 do CPP, em vez de lhe trazer modificações, simplesmente reafirmou, em um novo texto, a lógica pretérita. Tal é a posição de Nanuncio (2008), para quem a promulgação da Constituição Federal de 1988 já teria estabelecido a automática inconstitucionalidade do art. 212 caso este fosse contrário ao sistema acusatório. Logo, como ele se manteve vigente, mesmo com a CF88, sua interpretação tradicional é, portanto, constitucional.
Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 480) também dá azo à tese acima referida, ao afirmar que “tal inovação, entretanto, não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova”.
Também Tourinho Filho (2009) e José Barcelos de Souza (2008) põem-se em defesa do sistema presidencialista, alegando que este garantiria um ambiente saudável para o pleno desenvolvimento da audiência. Afirmam, ainda, que o magistrado mantém uma entonação de voz constante, o que já não ocorreria com as partes, as quais podem, com o uso de sua oratória, induzir positiva ou negativamente as respostas das testemunhas.
Esta compreensão doutrinária é mencionada em diversos acórdãos[3], como, por exemplo, o caso do TJ-PR, em agravo regimental interposto pelo MP,[4] no qual o órgão julgador entendeu que a modificação do art. 212 do CPP, feita pela Lei nº 11.690/08, resume-se à elaboração, pelas partes, de perguntas diretas à testemunha sem a intermediação do juiz. No respectivo acórdão, cita-se uma palestra proferida por Guilherme de Souza Nucci, em um curso de atualização de magistrados no Paraná, na qual o autor compara o juiz – que atua garantindo o respeito ao procedimento, indeferindo perguntas impertinentes, pautando sua atuação de maneira complementar à das partes – a uma “samambaia de sala de audiência”. E isso tudo, pois, ainda nos dizeres do acórdão, citando Pedro de Araújo Yung-Tay Neto, caberia ao juiz:
“[...] o indelegável mister de, após a descoberta da verdade real – a qual, por óbvio, jamais poderia ser atribuída à acusação nem à Defesa e muito menos poderia ser obtida com sua inércia no curso do processo – aplicar o direito ao caso concreto visando à pacificação social com Justiça [...].” (AR nº 0413.084-9/01, Órgão Especial do TJ-PR, Rel. Leonardo Pacheco Lustosa, DJ 16/10/2009)
Outros tribunais da federação manifestam-se pela não alteração da ordem de inquirição das testemunhas. Contudo, admitem que, mantida a interpretação anterior se infringir algum prejuízo ao acusado, este, se provado, ensejará a anulação da audiência.[5] Logo, o magistrado estaria apto a inquirir as testemunhas nos moldes tradicionais. Todavia, caso tal atuação perpetrasse algum dano às partes, este, se demonstrado, geraria nulidade relativa.
No julgamento da Reclamação nº 2008.00.2.012057-9, interposta pelo MP, que visava anular audiência de instrução e julgamento, em razão do desrespeito ao rito estabelecido no art. 212 do CPP, decidiu o TJ-DFT:
“RECLAMAÇÃO - MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL - NULIDADE DA OITIVA DE TESTEMUNHA - INOBSERVÂNCIA DA ORDEM DETERMINADA NO ARTIGO 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, COM A REDAÇÃO DA LEI Nº 11.690/2008 - INEXISTÊNCIA - NULIDADE RELATIVA - NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO
I - Da leitura do novo art. 212 do CPP, depreende-se que as partes perguntam primeiro. O magistrado, ao final, formulará perguntas complementares sobre pontos não esclarecidos. Pela redação anterior, o magistrado questionava em primeiro lugar. Após, abria-se às partes a possibilidade de perguntas. Se a intenção fosse apenas permitir perguntas diretas, não haveria necessidade da inclusão do parágrafo único, esclarecendo que o juiz pergunta de forma complementar, apenas se houver ponto não esclarecido.
II - Não demonstrado prejuízo, a inversão da ordem das perguntas prevista no art. 212 do CPP não enseja nulidade.
III - Reclamação improvida.” (RCL nº 2008.00.2.012057-9, des. Sandra de Santis, 1ª Turma Criminal do TJ-DFT, DJ 29/1/2009, grifo nosso)
De acordo com o entendimento do TJ-DFT, também o TJ-MG, em sua pouca jurisprudência formada sobre o tema,[6] posiciona-se de forma unânime a reconhecer a inobservância do art. 212 do CPP como caso de nulidade relativa.
“HABEAS CORPUS - OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 402 DO CPP - INEXISTÊNCIA - INÉRCIA DA PRÓPRIA PARTE - AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO DEFINITIVO - INOCORRÊNCIA - EXAME JUNTADO AOS AUTOS - EXCESSO DE PRAZO - ALEGAÇÃO SUPERADA - INSTRUÇÃO CRIMINAL FINDA - INVERSÃO DA ORDEM DE OITIVA DAS TESTEMUNHAS - IMPROCEDENTE - EXPEDIÇÃO DE CARTAS PRECATÓRIAS - OITIVA DAS TESTEMUNHAS - PERGUNTAS FORMULADAS PELA MAGISTRADA ANTES DE SER DADA OPORTUNIDADE ÀS PARTES - MERA IRREGULARIDADE - AUSÊNCIA DE EFETIVO PREJUÍZO - DENEGADO O HABEAS CORPUS
- Encerrada a instrução criminal, caso a parte deseje a realização de eventuais diligências, a mesma deve se manifestar, sendo prescindível sua intimação para tal fim. - Da análise dos autos percebe-se que o Laudo Toxicológico Definitivo foi juntado antes mesmo da Audiência de Instrução e Julgamento.
- Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo (Súmula nº 17, TJ-MG).
- A inversão da ordem de oitiva das testemunhas é plenamente justificada pela expedição de cartas precatórias.
- A inobservância da nova redação do art. 212 do CPP constitui mera irregularidade, devendo restar comprovado efetivo prejuízo para que a Audiência seja anulada.
Súmula: DENEGADO O HABEAS CORPUS.” (HC nº 1.0000.09.508637-7/000(1), 4ª Câmara Criminal do TJ-MG, des. rel. Júlio Cezar Guttierrez, DJ 13/1/2010)
Por fim, posição diversa é formada no STJ, que firma entendimento no qual o desrespeito ao art. 212 gera nulidade absoluta, eis que viola o princípio constitucional do devido processo legal, além de gerar certa confusão entre quem acusa, defende e julga. Nos dizeres do STJ:
“HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO.
1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP, em vigor a partir de agosto de 2008, determina que as vítimas, testemunhas e o interrogado sejam perquiridos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição quando entender necessários esclarecimentos. 2. Se o Tribunal admite que houve a inversão no mencionado ato, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, caracteriza constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanável pela via do habeas corpus, o não acolhimento de reclamação referente à apontada nulidade.
2. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma.
3. Ordem concedida para, confirmando a medida liminar, anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do contido no art. 212 do CPP”. (HC n° 121.216, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma do STJ, DJ 19/5/09, grifo nosso)
Tal entendimento foi confirmado em novo julgamento sobre o tema, o qual tem sua ementa abaixo transcrita.
“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. NÃO-OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.690/08. NULIDADE. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. LIMINAR CONFIRMADA.
1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP pela Lei 11.690/08 determina que as vítimas, as testemunhas e o acusado sejam ouvidos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição se entender necessários esclarecimentos.
2. Se o Tribunal de origem admite que houve a inversão na inquirição, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, patente o constrangimento, sanável pela via do habeas corpus, por ofensa ao devido processo legal.
3. Ordem concedida para, confirmando a liminar, anular a audiência de instrução e julgamento realizada em desconformidade com a previsão contida no art. 212 do Código de Processo Penal, bem como os atos subsequentes, determinando que outra seja realizada, consoante as disposições do referido dispositivo.” (HC nº 137.091/DF, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma do STJ, DJ 1º/9/09).
Este entendimento também ecoa nas palavras de Streck e Trindade (2010), para quem, entre outras críticas, não há sentido em se falar de nulidade relativa quando se está diante de uma ofensa ao princípio do devido processo legal (due process of law). Logo, a violação do art. 212 do CPP acarreta nulidade absoluta.
Igualmente, defendendo a existência de nulidade absoluta face à ofensa ao art. 212 do CPP, colocam-se Nereu Giacomolli e Cristina di Gesu, ao aduzirem que:
“[...] a formulação de perguntas pelo magistrado, antes das partes, ultrapassa a mera irregularidade da metodologia da inquirição, pois o defeito atinge uma formalidade essencial, por não ter sido observado o devido processo legal, no plano formal (ordem de inquirição) e material (vício substancial, por ofensa ao contraditório e a distribuição das funções entre os sujeitos processuais). A inversão das perguntas ou a inquirição inicial do magistrado invalidam o depoimento e vedam a sua utilização no processo, pois a inutilizabilidade é uma forma de invalidade dos atos processuais (Lozzi, 2007, p. 193). A utilização dos depoimentos defeituosos, no julgamento, contaminam o decisum, o qual há de ser desconstituído e, em cada caso penal, há de ser verificado o desdobramento causal do ato viciado, nos seguintes atos processuais, pois poderá haver contaminação dos atos processuais subsequentes [...]” (GIACOMOLLI; DI GESU, 2009).
A par das orientações divergentes sobre a interpretação do art. 212 do CPP, tanto nos bancos acadêmicos quanto nos tribunais, é mister – para um estudo acerca de sua interpretação conforme à CF88 – uma breve análise do sistema acusatório no paradigma do Estado democrático de direito.
Sistema processual a partir da gestão da prova
Costuma-se dizer que a diferença entre sistema inquisitório e acusatório é que, no primeiro, haveria a concentração das funções de acusar e julgar na figura do juiz; ao passo que, no segundo, ocorreria a divisão de tais tarefas entre órgãos diferentes. Tal perspectiva é extremamente simplista, reduzindo “a complexa fenomenologia do processo penal” (LOPES JR, 2008, p. 10). Isto, pois, não adianta separar funções no processo se, em seu desenvolvimento, abre-se ao magistrado a possibilidade de produzir provas para embasar – ou seria justificar? – sua decisão, a qual já pode ter sido tomada a priori. Um processo de partes como processo pertencente ao sistema inquisitório pode ser percebido na análise das Ordonnance Criminelle de 1670, de Luís XIV na França, a qual, apesar de comportar um processo de partes, serviu como um dos maiores instrumentos inquisitórios fora da Igreja.
“[...] Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata-se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. [...] Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo. [...]” (LOPES JR., 2005)
O que se depreende da estrutura inquisitória – mesmo se tratando de um processo de partes – é que o juiz é posto como o senhor da prova. Logo, ele sai ao seu encalço, a fim de, utilizando-se do pensamento ocidental da lógica dedutiva, escolher a premissa maior para, depois, buscar as provas que confirmem a premissa por ele já eleita. Assim, o julgador pode decidir antes e depois buscar, quiçá obsessivamente, provas para embasar sua decisão (COUTINHO, 2009a). Tal fato já é há muito denunciado por Cordero (1986) como “il primato dell’ipostesi sui fatti”. Ou seja, as hipóteses se sobrepõem aos fatos, gerando, por sua vez, “quadri mentali paranoidi”, de modo que o julgador pode, colhendo as provas que bem quiser, tornar seu imaginário em real possível.
O próprio conceito de sistema processual já indica ser a gestão da prova o caráter diferenciador entre os sistemas acusatório e inquisitório. A noção de sistema processual decorre da lição de Kant em Crítica da Razão Pura, que, ao idealizar a possibilidade de se chegar a uma verdade em estruturas complexas, entendeu haver um conjunto de elementos que se circunscrevem em uma mesma ideia. Tal conjunto foi nomeado de sistema. Por sua vez, essa ideia estaria definida a partir da finalidade do conjunto, sendo, portanto, o ponto de ligação de todos os seus elementos. Logo, a ideia apareceria como um princípio unificador que garantiria a coerência e integridade do sistema, devendo ser dada a priori, por ser o parâmetro de apreciação do pertencimento ou não de algum elemento ao sistema.
Em se tratando de processo penal, se este possui como finalidade, entre outras, o acertamento de um caso penal por meio da reconstrução de um fato pretérito apontado como crime, dando-se mediante a instrução probatória, seria (é) a gestão da prova e o modo pelo qual ela é realizada que identificaria o princípio unificador do sistema (COUTINHO, 2009a). Logo, a finalidade do conjunto que compõe o princípio unificador do sistema acusatório é diversa daquela do sistema inquisitório. No primeiro, busca-se alcançar uma verdade processual (FERRAJOLI, 2002), histórica, dialética, sujeita à verificação e refutação e abalizada por limites impostos pelos direitos fundamentais. Quanto ao segundo, sua finalidade é alcançar uma verdade material, universal, não importando que, para alcançá-las, alguns direitos fundamentais necessitem ser violados.
Como se sabe, os sistemas processuais vinculam-se ao fim último do processo, qual seja: a sentença (sentire). Contudo, para se sentenciar, é necessário impor o conhecimento, o qual se dá por meio da prova (COUTINHO, 2009b). E, pela prova, o processo penal vai reconstruindo o fato pretérito, que é o crime. Essa reconstituição se dá pela linguagem. Portanto, tendo o crime hipoteticamente consumado/tentado, sua reconstrução é feita mediante matéria processual, ocorrendo por meio da linguagem. Em verdade, no processo, principalmente o penal, tudo é linguagem, da notícia de crime, passando pela denúncia, pelas provas, mormente a testemunhal, a sentença, enfim: todo e qualquer ser para ser compreendido é linguagem (GADAMER, 1997).
A par da virada linguística (linguistic turn), é impensável a permanência de alguns na busca da “descoberta da Verdade”. Estes, ignorando o horizonte interpretativo trazido pela linguagem, refugiam-se na filosofia da consciência, de modo a “assujeitar” o objeto de acordo com aquilo que se quer que ele seja (STRECK, 2009). Logo, no processo penal, como em todo processo, a reconstrução de um fato não se pode orientar pelo “assujeitamento”, dado pelo método dedutivo, mas pelo conhecimento advindo da intersubjetividade, a partir de uma fusão de horizontes (ibid.). Há, enfim, uma inversão de paradigmas, de modo que agora o significante vem antes do significado (ROSA, 2006).
Portanto, a finalidade do sistema inquisitório está ainda atrelada à filosofia da consciência, de modo a buscar a verdade a todo custo, partindo, então, do princípio unificador inquisitivo. Já o sistema acusatório, na construção participada da decisão[7] judicial (HABERMAS, 2003), ao garantir às partes a gestão da prova, contempla o princípio dispositivo. Como se vê, uma ideia única – ou melhor, um princípio unificador – não comporta divisão. Logo, é impossível a figura de um sistema misto (COUTINHO, 2009b). Assim, a afirmação de que todos os sistemas processuais da atualidade são mistos trata-se, em verdade, de um problema conceitual, e não fático (COUTINHO, 2009b). Ainda na esteira de Coutinho (ibid.) o que se pode dizer é que os ditos sistemas mistos não se tratam da somatória de elementos diversos de sistemas distintos. Na verdade, eles são, na “essência”, acusatórios ou inquisitórios, agregando em seu interior elementos do outro sistema. Todavia, repita-se, sistema misto possui um princípio unificador, o qual caracterizará o verdadeiro sistema ao qual ele se filia.
Desse modo, o sistema processual brasileiro disposto no CPP, Decreto-Lei nº 3.689/1941, caracterizado por muitos como misto (TOURINHO FILHO, 2003), revela-se uma legislação autoritária e antidemocrática, adepta do sistema inquisitório. Não obstante incorporar elementos do sistema acusatório, o princípio unificador que rege o sistema brasileiro é o inquisitivo.[8] E, para tal conclusão, basta a simples leitura do art. 156, I, do CPP, que dispõe sobre a possibilidade de o magistrado determinar a produção de provas mesmo antes da ação penal; bem como do art. 311 do CPP, que autoriza o juiz a decretar a prisão preventiva de ofício.
Já estabelecidas as bases-mestras dos sistemas processuais, bem como da filiação do CPP ao sistema inquisitório, mesmo que incorporando elementos do sistema acusatório, resta analisar a interpretação do art. 212 do CPP, tendo por paradigma o modelo processual previsto no art. 129, I, da CF88.[9]
Por uma interpretação conforme do art. 212 do CPP
Leva tempo para romper com velhos paradigmas. Galileu Galilei, por exemplo – ao afirmar que era a Terra que girava em torno do Sol e não o inverso – foi levado ao Tribunal da Santa Inquisição a fim de renunciar à sua conclusão, classificando-a como uma heresia, sob pena de ir para a fogueira. Com relação ao art. 212 do CPP, não haveria de ser diferente. Depois de mais de 60 anos de utilização do sistema presidencialista, a ruptura com tal prática não se dá da noite para o dia e requer, para sua real efetivação, um enforcement dos tribunais, na assunção da nova interpretação. Em prol de nova postura interpretativa – melhor dizendo, de uma nova mentalidade –, impõe-se uma filtragem hermenêutica por parte do intérprete, de modo a analisar as normas a partir da Constituição, sendo esta o início e o fim de toda atividade interpretativa.[10]
A discussão sobre a interpretação constitucionalmente adequada do novo art. 212 do CPP iniciou-se antes mesmo de sua publicação ainda no Congresso. Durante a tramitação do PL nº 37/2007 (proveniente do PL nº 4.205/2001, da Câmara dos Deputados), a senadora Ideli Salvatti apresentou algumas propostas de emendas modificativas ao texto original do projeto, entre elas a proposta nº 7, a qual autorizava o juiz a realizar, antes das partes, perguntas às testemunhas.[11] Tal proposta fundava-se no argumento de que, sendo o destinatário da prova, deve ser o juiz o primeiro a coletá-la.
Contudo, tal proposta fora rejeitada pela CCJ do Senado nos termos do Parecer nº 1.089/2007, emitido pelo relator do projeto de lei no Senado, Mozarildo Cavalcanti. Verbis:
“[...] Sucede que, para impedir que a doutrina e jurisprudência continuem interpretando a lei nova com a mentalidade antiga, cremos ser indispensável radicalizar a redação de alguns dispositivos da presente proposição, de modo a não deixar qualquer margem para uma interpretação salvacionista de cunho inquisitivo. [...]
Dito isto, temos que as emendas apresentadas devem ser todas rejeitadas justamente por – em nosso modesto entender – não contribuírem para a adoção de um sistema acusatório que se pretende efetivo e livre de ranços inquisitivos pelo Brasil.
Como exemplo, podemos citar a Emenda n. 7 que busca preservar a inquirição inicial do juiz quando da oitiva das testemunhas, sob o fundamento que o destinatário primeiro da prova é o juiz, olvidando o fato de que o processo penal moderno é um processo de partes, em que a prova do crime incumbe essencialmente ao Ministério Público, não cabendo ao juiz, portanto, senão supletivamente à atividade das partes, qualquer iniciativa probatória.
É exatamente o que assegura, em sua redação atual, o parágrafo único do novo art. 212, do CPP: Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. [...].” (BRASIL, 2007, grifo nosso)
É fato que a mens legislatoris não é decisiva na interpretação da norma, posto que a lei ganha autonomia com a sua publicação.[12] Todavia, merece relevo a discussão travada na proposição e respectiva rejeição da Emenda nº 7, nas quais já se percebe a preocupação do legislador em relação a adequar a interpretação do art. 212 do CPP ao modelo acusatório e, consequentemente, à CF88.
Ademais, ainda no campo legislativo, o PLS nº 156/09 traz à tona um processo de partes ainda mais eficaz, e o faz a partir do interrogatório do acusado – agora expressamente disposto como um meio de defesa –, ao aduzir, nos artigos 70 a 72, que as perguntas sobre o fato serão feitas diretamente pelas partes e, no final, o juiz poderá complementar a inquirição sobre pontos não esclarecidos. Na sequência, ao tratar especificamente da inquirição de testemunhas, o PLS 156/09, art. 175, reforça a tese das perguntas serem feitas também diretamente pelas partes, cabendo ao magistrado complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos. Tal artigo vai além, ao permitir às partes fazerem reperguntas caso alguma resposta da testemunha dada ao julgador implique novos fatos ou circunstâncias (art. 175, § 2º). Esse procedimento já era previsto pelo CPP italiano de 1988, nos artigos 498, 506 e 503.
Como era de se esperar, a discussão travada no âmbito legislativo ganhou novo fôlego na esfera jurídica com a promulgação da Lei nº 11.690/08, resultando nos divergentes posicionamentos descritos no item 2 deste artigo. Agora, analisar-se-á qual desses entendimentos de fato se amolda ao sistema processual penal eleito pela CF88 – diga-se, acusatório –, conforme apresentado no item 3.
Infelizmente, entre as três interpretações do art. 212 do CPP aqui discutidas, uma delas parece estar nitidamente na contramão da Constituição. Acreditar que a nova redação do art. 212 do CPP em nada mudou na sua aplicação prática é desprezar os 20 anos de constitucionalismo democrático, com todas as suas conquistas na luta pela afirmação e concretização do sistema acusatório.
Como já referido alhures: mudanças não são fáceis. Logo, é de se entender alguma resignação por parte de alguns membros do MP, bem como da magistratura, em relação à nova dinâmica da audiência de instrução e julgamento (AIJ), a partir do vigente art. 212 do CPP. Isso, pois, exigirá um maior comprometimento dos membros do MP a assumirem seu múnus constitucional de efetivamente promover a ação penal, o que lhes acarretará uma maior carga de trabalho em razão da necessidade de maior preparação para as AIJs, pois são eles que detêm o ônus da prova. Já os juízes temem perder o seu simbólico poder; e, assim, pleiteiam a manutenção da interpretação anterior, mesmo que isso possa obscurecer sua imparcialidade. Logo, se deve mudar; para isso, é mais que necessário “mettere il pubblico ministero al suo posto – ed anche il giudice” (COUTINHO, 2009c, p. 23).
Não é possível especular que a ordem das perguntas descritas no art. 212 do CPP é indiferente, de modo a trazer sempre o mesmo resultado. Ora, “o modo como se formula pergunta à testemunha e a sequência do questionamento, tudo a depender da maior ou menor sagacidade do advogado ou do promotor, poderão conduzir a resultados diversos” (PIMENTA, 2008, p. 46). Se os tribunais continuarem a entender que o novo art. 212 do CPP nada trouxe de novo, isso significará que os juízes estão liberados para atuar como bem entenderem, de acordo com a velha tradição ou com a nova redação.
Além do mais, a testemunha, quando entra na sala de audiências, encontra-se geralmente nervosa. Logo, sendo inquirida primeiramente pela parte que a arrolou, isso por si só já lhe traz maior tranquilidade, de modo a contribuir para a maior qualidade da prova testemunhal.
Um argumento também contrário à mudança da hermenêutica do art. 212 do CPP diz respeito à possibilidade de transformar o juiz em um mero expectador de um processo penal das partes. Contudo, tal crítica não se sustenta. No paradigma do Estado Democrático de Direito, não cabe ao juiz o papel de um observador que atue tão somente na manutenção do procedimento formal a ser seguido pelas partes, como antes se dava no Estado liberal. No atual paradigma constitucional, o magistrado posiciona-se como garante do Estado democrático e dos direitos fundamentais dos cidadãos, a função que lhe exige a nova exegese do art. 212 do CPP. O juiz deve se abster da gestão da prova; mas, por outro lado, deve resguardar o respeito os direitos fundamentais das partes, bem como o Estado democrático, ao não admitir nenhuma postura que atente contra os pilares da república. Aí reside a diferença entre um processo penal das partes e um processo penal de partes.
Em sua atuação como garante, não cabe ao juiz produzir provas para a defesa ou para a acusação. Diante de eventual deficiência da defesa, ao magistrado cabe declarar o réu indefeso; e, perante falha no trabalho do promotor de justiça, oficiar o procurador-geral de justiça. O magistrado não deve atuar de modo suplementar na desimcumbência do ônus probatório, que cabe exclusivamente ao órgão acusatório.
Admitindo-se um processo penal de partes, fácil é de se perceber que a manutenção do juiz como gestor da prova – mormente na colheita de uma das principais provas do processo, a testemunhal – degrada o caráter cognitivo de apuração dos fatos, culminando num procedimento de investigação no qual o magistrado busca as provas que lhe confirmem a tese por ele já pensada. Logo, o juiz prefere acreditar na mentira que sustenta – ou pode sustentar – sua hipótese do fato do que aceitar a possibilidade de ver sua versão refutada no e pelo jogo dialógico do processo, em que a sentença deve ser um ato de conhecimento construído em conjunto entre juiz e partes, e não um ato de poder de um julgador solipsista.
Tal postura consagra a deformação do processo, o qual tem, nesse delineamento, o “apetite de saber tudo” (GARAPON, 2001, p. 86), característico do modelo inquisitório, em contraposição ao anglo-saxão, que delimita o objeto do conhecimento às provas admitidas.
Portanto, admitir que o art. 212, do CPP, com redação dada pela Lei nº 11.690/08, nada alterou a interpretação de sua redação pretérita é negar a concretização do sistema acusatório no Brasil, em defesa de práticas inquisitoriais que guarnecem a gestão da prova na mão de um único sujeito – o juiz solipsista (STRECK, 2007). Logo, impera-se aplicar alguma sanção à violação do art. 212 do CPP, devendo esta ser o reconhecimento da nulidade do ato processual. Carrara (1897) já dizia que um código de processo que preceitua determinadas formas sem reconhecer a anulação do que é feito sem sua observância é mistificação mal-intencionada.
Outra vertente da doutrina e dos tribunais entende haver no desrespeito ao art. 212, do CPP, uma hipótese de nulidade relativa, sendo necessário, portanto, comprovar a existência de prejuízo (pas de nullité sans grief). Ora, o sistema acusatório, mais do que um mero sistema processual, corresponde a uma garantia constitucional das partes e do próprio processo. Logo, sua violação não é uma mera irregularidade, mas sim uma afronta a preceito constitucional. E “a atipicidade constitucional, no quadro das garantias, importa sempre uma violação a preceitos maiores, relativos à observância dos direitos fundamentais e das normas de ordem pública” (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2009, p. 22). Aqui se insere a terceira vertente de interpretação do art. 212, do CPP, que aduz a nulidade absoluta em razão de sua violação. Dessa corrente participa parcela da vanguarda jurídica brasileira: Aury Lopes Júnior, Lenio Streck, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Flaviane de Magalhães Barros, Paulo Rangel, Salo de Carvalho, Fauzi Hassan Choukr, Gustavo Henrique Badaró, Alexandre Moraes da Rosa, entre outros.
O dito prejuízo, requerido pelos defensores da tese da nulidade absoluta, está, em verdade, presente na mera violação ao dispositivo. O art. 212 do CPP deve ser entendido como norma que concretiza o sistema acusatório, sendo sua violação, para além de uma afronta ao próprio sistema processual, uma ofensa ao princípio constitucional do devido processo legal – portanto, uma nulidade absoluta. O prejuízo é presumido em razão do desrespeito de normas[13] de ordem pública.
“[...] Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público [...], o ato processual inconstitucional, quando Não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada. [...]
É que as garantias constitucionais-processuais, mesmo quando aparentemente postas em benefício da parte visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo seguindo as regras do devido processo legal.
Resulta daí que o ato processual, praticado em infringência à norma ou princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas. [...]” (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2009, p. 23)
Ademais, a atuação do juiz que não se mantém equidistante das partes e distante da produção das provas já é, por si só, um prejuízo – e grave! Logo, na esteira de Paulo César Busato:
“[...] não há de se falar em nulidade relativa, convalidável mediante ausência de prejuízo. Isto porque a contaminação da prova pela atuação do juiz gera duplo e incontornável prejuízo: por um lado, invalida a prova, cujo aproveitamento implica evidente pressuposto; e, por outro, torna suspeito o juiz, ao menos à luz de um sistema acusatório [...]” (BUSATO apud STRECK; TRINDADE, 2010)
Nos dizeres de Busato, o juiz vicia a prova ao produzi-la em razão da consequente atenuação do ônus probante de uma das partes, o que fere a imparcialidade do órgão judicante. Desse modo, a prova viciada não terá o condão de ser aproveitada na formulação do decisium. De outro lado, o juiz que assume o ônus probatório de uma das partes queda-se suspeito. Portanto, não há nulidade relativa, mas, sim, absoluta. Conforme diz Prado (2006, p. 111), “a confiabilidade das partes na isenção do juiz emerge como condição de validade jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito estaremos diante de atos absolutamente nulos”.
Outra discussão que recai sobre o art. 212 do CPP diz respeito à atuação complementar do magistrado sobre os pontos não esclarecidos. Afinal, o que se entende por complementar? E por pontos não esclarecidos? Poderia o juiz inovar na linha argumentativa das partes? Ou estaria vinculado às teses por elas apresentadas?
Tal questão certamente demandará um estudo específico. Contudo, fácil é a conclusão de que mais adequado ao sistema acusatório seria, a exemplo do que ocorre no processo penal italiano – na primeira parte do art. 506 do CPP italiano – o fato de o juiz, em vez de complementar a instrução probatória, seja pela inquirição de testemunhas, pela produção antecipadas de provas, atuasse no dibattito indicando os temas e os fatos que considera relevantes para as partes, a fim de que estas produzam a prova.
“[...] Art. 506. (Poteri del presidente in ordine all’esame dei testimoni e delle parti private).
1. Il presidente, anche su richiesta di altro componente del collegio, in base ai risultati delle prove assunte nel dibattimento a iniziativa delle parti o a seguito delle letture disposte a norma degli artt. 511, 512 e 513, può indicare alle parti temi di prova nuovi o più ampi, utili per La completezza dell’esame.
2. Il presidente, anche su richiesta di altro componente del collegio, può rivolgere domande ai testimoni, ai periti, ai consulenti tecnici, alle persone indicate nell’articolo 210 ed alle parti già esaminate, solo dopo l’esame e il controesame. Esta salvo il diritto delle parti di concludere l’esame secondo l’ordine indicato negli articoli 498, commi 1 e 2, e 503, comma 2. [...]” (ITÁLIA, 2007, p. 753-754, grifo nosso)
Pelo exposto, nos moldes de um Estado de direito que se quer democrático, não há espaço para se falar em nulidade relativa e muito menos em conservação do art. 212 do CPP. A Lei nº 11.690/08 trouxe novos traços democráticos ao processo penal, ao privilegiar sua estrutura dialógica em contraponto à concentração de poderes nas mãos do ser onipotente – o juiz. Logo, face à ofensa do art. 212 do CPP, está se violando o sistema acusatório e o próprio princípio do devido processo legal. Nesse caso, deve, portanto, reconhecer-se a nulidade absoluta do ato.
À guisa de uma conclusão
Uma possibilidade de consenso sobre a interpretação do art. 212, do CPP, ainda se demonstra um árduo desafio. As três interpretações esboçadas pela doutrina e pelos tribunais brasileiros sobre o art. 212, do CPP – não houve alteração, acarreta nulidade relativa e configura nulidade absoluta – possuem fortes defensores. Não obstante, como demonstrado no presente ensaio, possível é identificar a que melhor se amolda ao sistema acusatório eleito pela CF88.
Logo, num primeiro momento, analisou-se o que de fato diferencia os sistemas processuais penais. Concluiu-se que seu ponto nevrálgico repousa na gestão da prova. Portanto, se a gestão da prova cabe ao magistrado, privilegiado está o princípio inquisitivo; e, portanto, tem-se o sistema inquisitório. Por outro lado, se a gestão da prova é entregue às partes, configurado está o sistema acusatório, que possui como princípio unificador o princípio dispositivo. Quanto ao sistema misto, percebeu se tratar de uma questão conceitual, pois em verdade não existe. Não há como fundir os dois sistemas processuais num terceiro, já que seus princípios unificadores, vistos como a ideia que une todos os elementos, são antagônicos. Na realidade, há sistemas acusatórios acrescidos de elementos do sistema inquisitório e vice-versa, mas sistemas misturados, cabalmente, não existem. Como exemplo, tome-se o próprio Brasil, onde, não obstante a Constituição ter eleito o regime acusatório, tem-se, na prática, a proeminência de um regime inquisitório (representado primordialmente pelo ainda atual CPP de 1941), com enxertos de elementos do sistema acusatório.
A gestão da prova, como característica principal dos sistemas, produz efeitos completamente opostos em cada um. No sistema inquisitório, o juiz, como gestor da prova, corre o risco de ir à sua busca para simplesmente confirmar a tese por ele já eleita no caso penal. Logo, ele desincumbiria as partes de seu ônus probatório, atuando em seus lugares, de modo a comprometer inclusive a sua imparcialidade. No sistema acusatório, a gestão da prova é dada às partes, cabendo a elas se desincumbirem de seu ônus probante. O magistrado não produz provas, mas garante que elas sejam licitamente produzidas. Assim, caso a acusação não tenha produzido as provas necessárias à condenação, o acusado deve ser absolvido. De outro lado, caso a defesa não apresente condições técnicas adequadas, cabe ao juiz declarar o réu indefeso.
O sistema acusatório representa a opção feita pelos regimes democráticos – por mais que apliquem o sistema inquisitório. Logo, da mesma forma que não existe meia democracia, também não pode existir um regime acusatório parcial ou às avessas. A compreensão das normas infraconstitucionais deve ser abalizada pelo texto constitucional, de modo que não só o art. 212, mas o CPP como um todo deve ser (re)lido a partir da Constituição, e não o inverso. A hermenêutica constitucional não é mais uma opção, mas uma condição de possibilidade para a correta aplicação da norma num Estado democrático de direito.
A interpretação que nega a alteração do art. 212 do CPP defende uma concepção solipsista de juiz, o qual deve manter o poder em suas mãos. A função do processo penal deixa de ser o acertamento do caso penal, em consonância com os direitos fundamentais das partes e com os princípios fundantes da república, para se transformar na concretização da justiça social, a partir da mente solipsista do juiz soberano. Os adeptos desse entendimento não visualizaram que o juiz não será relegado a expectador que assiste impassível ao duelo das partes. Ele, na verdade, garantirá o contraditório, assegurará o respeito aos direitos fundamentais e aos princípios que fundam a República Federativa do Brasil. Assumir esse papel não é um reducionismo, mas, sim, a assunção da principal função da estrutura jurisdicional. Logo, longe de ser uma samambaia, o magistrado se comportaria como um garantidor do Estado democrático de direito e dos direitos fundamentais.
Entender que a violação do art. 212 do CPP acarreta nulidade relativa também não contempla toda evolução constitucional que se quis dar ao dispositivo. Como se disse, a produção de prova pelo julgador pode representar sua busca pela confirmação da hipótese por ele já idealizada para o deslinde do fato. Assim, sua imparcialidade estaria comprometida; e, em um regime democrático, a mera aparência de ausência de imparcialidade pelo órgão judicante por si só já retira toda a legitimidade da decisão, a qual deve, portanto, ser declarada nula. O próprio magistrado, ao produzir a prova, já deve ser considerado suspeito, pois auxilia uma das partes a se desincumbir de seu ônus probatório.
Ademais, a não observância de um dispositivo que se amolda à Constituição, concretizando o seu art. 129, I, que tem sua base no sistema acusatório, representa um desrespeito ao próprio princípio do devido processo legal. Com isso, afirma-se que a nova redação do art. 212 do CPP implementa sim o cross examination, o qual prestigia o princípio dispositivo, princípio este unificador do sistema acusatório.
Logo, a infração a tal disposição legal acarreta violação ao sistema processual erigido pela CF88, e, portanto, ao princípio do devido processo legal – o que gera, por sua vez, nulidade absoluta.
Portanto, entendimento outro não há senão aquele que reconhece a nulidade absoluta da AIJ e dos atos posteriores a ela face à não observância do art. 212 do CPP. Violar o sistema acusatório é desrespeitar uma garantia tanto do indivíduo como da sociedade. Do indivíduo, ao passo que o sistema acusatório impõe limites à persecução penal, oferecendo ao acusado uma posição de simétrica paridade frente ao próprio Estado, representado pelo órgão de acusação, na reconstrução do fato penal. Da sociedade, na medida em que o mesmo sistema estipula que os cidadãos terão uma defesa ampla contra qualquer acusação estatal que sobre eles recaiam.
Deve-se romper com a cultura secular da inquisitoriedade judicial. É normal certa resistência a mudanças. Contudo, normal não é atrelar-se a paradigmas passados sem abrir horizontes para o futuro. No paradigma do Estado democrático de direito, ao intérprete se impõe uma nova postura hermenêutica, em prol de uma interpretação sempre conforme à Constituição. Deve-se reconhecer a evolução, em termos de democracia processual, trazida pela nova redação do art. 212 do CPP. Mas estariam os juízes preparados para tanto? Se não estiverem, melhor ficarem, pois é isso que lhes reclama tanto a Constituição quanto a própria cidadania.
Notas e Referências:
[1] Redação dada pela Lei nº 11.680/08: “Art. 212 - As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único: Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição” (grifo nosso).
[2] Em março de 2008, foi protocolado no Senado Federal o Requerimento nº 27, de autoria do senador Renato Casagrande, pleiteando a nomeação de uma comissão de juristas para elaborar o projeto de um novo Código de Processo Penal. Tal comissão, composta por nove pessoas, fora reunida e elegeu para sua coordenação o ministro do STJ, Hamilton Carvalhido, e, para relatoria do anteprojeto, o procurador da república, Eugênio Pacelli de Oliveira. Em 22/4/2009, essa comissão apresentou ao presidente do Senado, José Sarney, o produto de seus trabalhos, ou seja, o anteprojeto do novo Código de Processo Penal, que foi convertido no Projeto de Lei do Senado nº 156/09.
[3] AP nº 70028395408, 1ª Câmara Criminal, TJ-RS, rel. Manuel José Martinez Lucas, DJ 8/7/2009; RCP nº 2008.077.00045, 8ª Câmara Criminal, TJ-RJ, rel. Denise Bruyère Rolins Lourenço dos Santos, DJ 17/11/2008.
[4] AR nº 0413.084-9/01, Órgão Especial do TJ-PR, rel. Leonardo Pacheco Lustosa, DJ 16/10/2009.
[5] AP nº 70029599941, rel. des. Luís Gonzaga da Silva Moura, 5ª Câmara Criminal do TJ-RS, DJ 8/7/09.
[6] AP nº 1.0090.08.019079-7/001(1), rel. des. Antônio Armando dos Anjos, 3ª Câmara Criminal do TJ-MG, DJ 20/10/2009; AP nº 1.0242.04.007610-9/001(1), rel. des. José Antonino Baía Borges, 2ª Câmara Criminal do TJ-MG, DJ 28/1/2010; AP nº 1.0144.08.023046-5/001(1), rel. des. Antônio Carlos Cruvinel, 3ª Câmara Criminal do TJ-MG, DJ 17/11/2009; HC nº 1.0000.09.502226-5/000(1), rel. des. Renato Martins Jacob, 2ª Câmara Criminal do TJ-MG, DJ 20/8/2009.
[7] Fazzalari (1992) trabalha a ideia de procedimento em contraditório, com a diferenciação entre procedimento e processo: o primeiro, caracterizado como uma estrutura sequencial de atos, normas e posições subjetivas que se encadeiam até a obtenção de um provimento estatal; já o segundo se dá pela mesma conceituação do primeiro, porém com a inserção de um item: o contraditório. Logo, processo é um procedimento realizado em contraditório. A proposta de Fazzalari resulta na efetiva hipótese de uma participação equilibrada das partes no iter procedimental, exercitando seus direitos e faculdades em simétrica paridade.
[8] Ao passo que os sistemas de common law – como, por exemplo, o norte-americano – seriam regidos pelo princípio dispositivo, com o incremento de alguns elementos do sistema inquisitório.
[9] Andrade (2009, p. 170) sustenta não haver um sistema processual penal no Brasil, mas tão somente modelos de processo. Isso em razão da inexistência de unidade sistêmica, a qual seria a ausência de uma consolidação da legislação processual penal em torno de um sistema previamente eleito. A seu turno, a fim de sanar quaisquer dúvida ou contradição sobre o sistema processual adotado no Brasil, o PLS nº 156/09 estabelece de maneira clara que: “Art. 4º. O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”
[10] Nessa seara, importante o art. 6º do PLS 156/09, o qual veda toda interpretação que amplie as possibilidades de restrição dos direitos fundamentais: “Art. 6º A lei processual penal admitirá a analogia e a interpretação extensiva, vedada, porém, a ampliação do sentido de normas restritivas de direitos e garantias fundamentais.”
[11] O teor da emenda rejeitada é: “[...] Art. 212. Após a inquirição inicial do juiz, as perguntas serão formuladas, sucessivamente, pelo acusador, assistente e advogado do réu, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida [...]”.
[12] Ademais, conforme aduz Peter Habërle (1997), estamos em uma sociedade aberta de intérpretes.
[13] Normas aqui entendidas no sentido dado por Dworkin (2002), como princípios e regras.
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Felipe Daniel Amorim Machado é Advogado. Doutorando em Direito (PUC Minas). Mestre em Direito (UFMG). Especialista em Ciências Penais (Instituto de Educação Continuada/PUC Minas). Professor de Processo Penal (PUC Minas / Pro Labore / UFOP). Professor de Direito Penal (PUC Minas / Ibmec). E-mail: felipemachado100@gmail.com
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