Novos fundamentos para o direito penal: Filosofia da linguagem e a teoria do crime (Parte 2)

28/05/2015

Por Daniel Dore Lage - 28/05/2015

Leia a Parte 1 aqui

Parte 2

1.1  - Os pilares do sistema comunicativo: Ação, norma e liberdade de ação

Utilizando a filosofia da linguagem, Vives Antón elaborou seu sistema a partir de novos conceitos "ação" e de "norma", pilares sobre os quais valoramos o fenômeno delitivo.

Vives Antón (2011, p. 103 a 140) afirma que a problemática em torno do conceito de ação reside na infrutífera busca doutrinária de um substrato unitário para responsabilização penal. Não é possível formular um conceito único de ação sob o qual possamos atribuir condutas comissivas e omissivas, e mais ainda, as dolosas e as imprudentes (Martínez-Buján Perez, 2007, p. 9). Continua seu raciocínio questionando o conceito de ação como um composto pela reunião de um fato físico (movimento corporal) e outro mental (volitivo); podemos, através da filosofia da linguagem, obter outra percepção: ação é a expressão de um significado.

Por outro lado, o sentido expresso por tais ações é definido por regras que as regem. (Vives Antón apud Busato, 2013, p. 205) Estas regras devem ser estabelecidas e reconhecidas como tal por uma comunidade. Somente assim poderemos atribuir um significado a uma ação. Esta lógica também nos permite identificar uma ação desvinculada da finalidade dos sujeitos que as praticam. O exemplo de Vives Antón (apud Busato, 2013, p. 254) é esclarecedor:

[...] minha compreensão de uma partida de futebol depende de que conheça as regras do jogo e de que, por conseguinte, possa efetuar uma correta atribuição de intenções aos movimentos dos jogadores: se desconheço as regras, não sou capaz de inferi-las e ninguém me explica, não entenderei o jogo e não saberei, em realidade, o que está ocorrendo ali (nem sequer poderei prever o que tenta fazer um jogador que esteja de posse da bola). Mas, uma vez as conheço e posso fazer por conseguinte, as atribuições de intenção corretas, nem sempre qualificarei as jogadas (as ações dos jogadores) com base nas intenções que lhes atribuo: v.g., se um defensor tem a intenção de afastar a bola de sua área, mas acaba enviando-a ao seu próprio gol, não direi que aliviou a defesa, mas sim que marcou um gol contra. As atribuições de intenção encontram-se, segundo o referido, encravadas no seguir de regras e são construtivas do significado, em termos gerais, mas não na forma de uma relação um a um: as regras, que se materializam em atribuições de intenção, operam, com frequência, prescindindo do propósito de quem as segue ou infringe”

A ação em Vives Antón não se sustenta na psique do agente nem no movimento corpóreo deste, mas em sua significação para a sociedade. Verifica-se a ação de acordo com as interpretações que distintas regras sociais dão ao comportamento humano. Logo, “há uma intencionalidade externa, objetiva, uma prática social constituinte do significado” (Vives Antón apud Busato, 2013, p. 255). Segundo suas próprias palavras, a ação define-se não "como substrato suscetível de receber um sentido, mas como sentido que, conforme um sistema de normas, pode atribuir-se a determinados comportamentos humanos". (Vives Antón apud Busato, 2013, p. 10). [3] Como consequência podemos perceber a diferença “ação” e "fato". O “fato” é possível ser descrito por regras naturais, físicas, biológicas; a “ação” se interpreta. Explica Busato (2012):

Evidentemente é distinto o movimento físico em si de estender a mão para o alto e esse mesmo movimento realizado pelo guarda de trânsito ordenando que o fluxo de tráfego se detenha. A ação só pode ter sentido jurídico desde que interpretada em conjunto com seu entorno. Logo, as valorações jurídicas só podem ser consideradas como ações dentro do marco de seu significado.

A proposta de ação significativa consegue, ao contrário de finalismo de Welzel (baseado na intenção), definir os crimes imprudentes. Em relação a estes, Vives Antón simplificou o sistema; ao contrário do que prevalece doutrinariamente, a teoria da ação comunicativa normativizou o dolo, não havendo mais uma real diferença entre dolo e culpa. Definindo o dolo como o compromisso com a ação antinormativa, a imprudência se limita a uma dupla ausência deste compromisso: a ausência deste compromisso com o resultado típico, no qual consiste o dolo; e pela ausência de um compromisso normativamente exigido com a evitação de uma lesão (infração do dever de cuidado). Assim, deve-se determinar as competências do sujeito ativo e sua capacidade de autodeterminação para verificar a gravidade da infração. Conclui dizendo que dolo e culpa, por serem juízos normativos, não conceituam ou definem a ação; representam instâncias de imputação da antinormatividade. (Vives Antón, 2011, p. 259)

Em relação à norma, Vives Antón revisita a polêmica teórica sobre a sua concepção imperativa e conclui que ela tem natureza dúplice: é decisão de poder (mandados) e, ao mesmo tempo, determinação da razão. As normas jurídicas pretendem ser validas e não verdadeiras (pretensão típica das ciências naturais), o que, conforme Muñoz Conde (apud Busato, 2010, p. 196), faz abandonar qualquer mito sobre a busca de uma verdade real no processo penal. Esta pretensão de validação se dá através da função da norma: aplicação da justiça, valor central de todo ordenamento jurídico, e daí derivando seus corolários - segurança jurídica, liberdade, eficácia etc. Com isto, é capaz de legitimar um sistema de imputação penal congruente com sua base filosófica. Arremata Menezes (2014):

Essa pretensão deve estar presente desde a fase legislativa, no momento da seleção das condutas que devem ser penalmente tratadas pelo Estado. É a presença do princípio da fragmentariedade e da subsidiariedade quando da escolha legislativa para incriminar determinada ação. A teoria da ação significativa demonstra que a discussão da norma deve existir desde o momento em que o projeto está sendo levado ao legislativo, pois o Estado Democrático de Direito existe com a finalidade de proteger o cidadão e a vida em sociedade, não devendo ser utilizado para beneficiar pessoas ou grupos específicos, transformando as leis em espelho da injustiça.

É uma demonstração da necessidade da doutrina em ser crítica e estudar o direito penal juntamente com a política criminal, não podendo ser alienada sobre o posicionamento legislativo da normatização de condutas, querendo entender o direito penal apenas teoricamente, afastando-se do meio em que a interpretação da comunicação deve ser aferida.

Finalmente, destaca-se a posição de Vives Antón quanto a liberdade da ação. O elo feito entre ação e norma se dá através da margem de liberdade de um indivíduo, que é pressuposto necessário para um sistema normativo. Com isto, o autor soluciona outro tema muito controverso da dogmática dominante: “o problema da liberdade (o de poder atuar de outro modo), que tradicionalmente vem sendo estudado na esfera da denominada ‘culpabilidade’ e com frequência desde a inadequada perspectiva do ‘livre arbítrio’ [...]” (Martínez-Buján Perez, 2007, p. 23). A liberdade passa a ser pressuposto da ação, não mais da reprovabilidade. Será interpretada como um significado contextualizado, e não uma comparação ao que faria o (questionável) “homem médio”.

Verifica-se, portanto, que o sistema de imputação significativo assume o normativismo na expressão de suas pretensões normativas enquanto mantém o eixo antropológico ao responsabilizar as pessoas por seu modo de agir. (Busato, 2010, p. 201 e 202)

2 – O sistema de imputação de Vives Antón: As pretensões de validade da norma penal

Adotadas as premissas expostas, chegamos ao momento de apresentar o sistema de imputação proposto por Vives Antón. Utilizando a metodologia básica chamada “debilitação do sistema”, partiu da noção de que os sistemas dogmáticos não são reflexos de uma estrutura objetiva. Seriam apenas um modo de ordenar os tópicos das pretensões de validades das normas, uma ferramenta de argumentação dialética. Neste ponto nos afastamos da proposta de Fletcher. No sistema do common law é incomum a apresentação de um sistema dogmático. Mesmo sabendo da aproximação que é feita neste trabalho, preferimos privilegiar o sistema de Vives Antón, visto que poderá ser melhor entendido pelos penalistas brasileiros, visto que estamos acostumados ao sistema civil law.

Conforme dispusemos, Vives Antón não pretendeu abandonar o que a dogmática já produziu; ao contrário, em seu extenso trabalho busca legitimar o que já foi produzido e reorganizar tudo em uma sequência lógica, aproximando a teoria da realidade. Por isso, é importante notar que não abandonamos conceitos clássicos e tampouco houve apenas uma renomeação dos tópicos. Por isso vamos repassar, mesmo de maneira simplificada algumas categorias já consolidadas.

O sistema de Vives Antón se escora em uma pretensão genérica de validade, a qual pode ser entendida como quatro pretensões específicas: pretensão de relevância, de ilicitude, de reprovação e de necessidade de pena.

De forma a facilitar a compreensão dos juristas formados nas teorias clássicas elaboramos um quadro sinóptico - inspirado no de Busato (2010, p. 211) - colocando lado a lado os sistemas anteriores e a nova proposta defendida por este trabalho.

Após a visualização do quadro, traremos explicações acerca das pretensões que um sistema penal deve ter em consideração ao analisar um fato delitivo.

quadro

2.1 – Pretensão de Relevância: o tipo de ação 

A primeira pretensão de validade no sistema de Vives Antón é identificar que a ação realizada pelo homem é um das que interessam ao direito penal. Por isto, convém lembrar que não iniciamos a análise pela ação, mas sim por uma análise dos tipos de ação previstos em lei. Devemos questionar: Ocorreu algum tipo de ação? Qual é a aparente ação?

O tipo de ação determina a “aparência de ação” ou mesmo ainda se não há ação, cumprindo o papel de delimitar o objeto ao qual hão de referir-se as valorações.

A proposta de Vives Antón se afasta das concepções finalistas e pós-finalistas por entender que os elementos subjetivos nem sempre estão presentes nos tipos de ação. A análise finalista do tipo objetivo e subjetivo, ou mesmo a ideia funcionalista de injusto penal sobrecarregam a análise típica, agrupando momentos valorativos claramente diversos como: relevância, ofensividade e contrariedade ao dever. (Martínez-Buján Perez, 2007, p. 33) Quanto ao conteúdo da pretensão de relevância, ele sugere sua divisão em dois substratos: Pretensão conceitual de relevância e pretensão de ofensividade.

2.1.1- Pretensão conceitual de relevância (tipicidade)

Trata-se da tipicidade formal e das consequências decorrentes do princípio da legalidade. Nas palavras de Martínez-Buján Perez (2007, p. 34),

Trata-se da correta compreensão da formulação linguística com que se define o tipo de ação na lei, e, de outro lado, um a comprovação de que os movimentos corporais realizados pelo sujeito sejam efetivamente aqueles que se acomodam à regra de ação seguida para tipifica-los.

O momento básico da tipicidade depende da ação: estamos diante de uma ação? Trata-se de uma conduta que incorpora um significado, não se tratando apenas de um fato natural?

Convém lembrar que a aparente ação pode ter, ou não, elementos subjetivos integrados ao tipo. Por exemplo, o crime de falso testemunho, que consiste em conhecer a verdade e dizer intencionalmente o falso. Neste crime, a intenção do agente tem função estrita de definir o tipo de ação praticada pelo sujeito, não de desvalorar. Vives Antón os chama de elementos subjetivos do tipo de ação, que são diferentes do dolo. Estes elementos subjetivos somente podem ser verificados a partir da observação de suas manifestações externas, como parte da ação, como componente de um sentido exteriorizado.

Vives Antón (2011, p. 253) defende a normativização desta análise: Tais elementos subjetivos devem ser examinados considerando as competências do autor do fato e as características exteriorizadas, visto não ser possível verificar “representações, crenças ou volições ocorridas em algum opaco lugar de sua mente”.

Quanto ao conceito de omissão, Vives Antón confere também tratamento normativo. Diz Martínez-Buján Perez (2007, p. 38):

A relevância penal de uma omissão virá dada pela relevância penal (a tipicidade) da situação ou posição de espera que a faz ser tal; por conseguinte, resultará necessário não somente o poder atuar de outro modo, mas ademais um momento normativo do qual caiba inferir a espera do não realizado.

Os autores, assim, se afastam da diferenciação naturalística entre ação e omissão. Esta deve se fundamentar na própria estrutura típica que será diferente e em seu diverso significado normativo.

2.1.2 - Pretensão de ofensividade (Antijuridicidade material)

A pretensão de relevância se escora na clássica ideia de que apenas são relevantes para o direito penal as ações que lesionam ou põem em perigo bens juridicamente protegidos. É necessário um desvalor do resultado para que esteja satisfeita a pretensão de ofensividade. Importante ressaltar que Vives Antón a considera como aspecto material de ilicitude, algo até então distinto das teorias clássicas. Desta forma, nada tem a ver com a pretensão de ilicitude, que veremos a seguir. Uma observação: esta ideia de antijuridicidade material se adequa ao princípio da intervenção mínima.

2.2 – Pretensão de ilicitude: Antijuridicidade formal

Consiste em verificar a realização do proibido (no caso de uma conduta comissiva) ou em uma não realização do mandado (no caso de uma conduta omissiva). A ação ofensiva ao bem jurídico não se ajustava às exigências do ordenamento. Trata-se da antijuridicidade formal acrescida dos aspectos subjetivos do injusto. Com tal pretensão visamos afirmar que um tipo de ação é ilícito.

Nesta etapa, o sistema significativo exige uma dupla análise: a concorrência de dolo ou imprudência, em respeito ao princípio da culpabilidade; e a não concorrência de norma excepcional que retire o caráter reprovável da norma (verificação da antijuridicidade formal). (Busato, 2010, p. 206)

Com isso se produz um afastamento das concepções clássica e neoclássica do delito, onde os conceitos de dolo e culpa assentavam-se no juízo de reprovação (culpabilidade), assim como da concepção finalista, pois nesta o caráter subjetivo da conduta é acolhido pelo tipo penal. O dolo e a culpa, no sistema de Vives Antón, não definem a ação, mas sim permitem ou não a persecução penal da ação.

2.2.1 – A intenção, o dolo e a imprudência

Em nossa opinião aqui reside um dos pontos mais importantes do sistema significativo de Vives Antón: a normativização do dolo.

Segundo o autor (Vives Antón apud Martínez-Buján Perez, 2007, p. 50), a doutrina erra ao configurar o dolo como processo psicológico. Explicamos: assumir o dolo como tal é impossível visto que se quer conceituar um gênero comum às atitudes psicológicas muito diversas, como o dolo direto de primeiro grau, direto de segundo grau e também o dolo eventual. Além disto, como se sabe, na maioria dos casos é impossível determinar quando concorre ou não o elemento intelectual.

Outro erro doutrinário percebido já anotamos quando falamos sobre a ação: consiste em “atribuir à intenção subjetiva um papel definidor da ação sem reparar em que a determinação da intenção entra com frequência em jogo depois de que a ação se ache definida”.

Não se pode atribuir uma intenção a um sujeito se não está presente o compromisso de levar a cabo a ação correspondente. Ou seja, se uma ação foi intencional será necessário verificar se houve um manifesto compromisso do agente de atuar naquele sentido, se houve intenção de violar a norma.

Para aferir a ocorrência ou não do dolo – se existiu ou não o compromisso – necessário se faz a análise das regras sociais e jurídicas que definem a ação como sendo típica e relacioná-las com a bagagem de conhecimento ou a competência do autor (as técnicas que este dominava), de tal modo que seja possível afirmar que o autor sabia que estava levando a cabo a decisão contrária ao bem jurídico (concepção cognitiva ou normativa do dolo). (Martínez-Buján Perez, 2007, p. 38)

Em relação à imprudência, sempre tratada normativamente em outros sistemas, agora com a normativização do dolo, a este se assemelha, produzindo um sistema congruente: consiste numa dupla ausência de compromisso: ausência da intenção de produzir um resultado típico (igual ao dolo) e com ausência de compromisso com norma que exija evitá-lo (o que conhecemos como infração do dever de cuidado).

2.2.2 – A exclusão da ilicitude ou da antijuridicidade formal

Na construção de Vives o que fundamenta a exclusão da ilicitude é a força que o legislador resolveu conceder à liberdade de se atuar em determinadas circunstâncias.

Sua premissa é diferenciar os aspectos material e formal da ilicitude: a ilicitude material faz parte da pretensão de relevância, mais especificamente a pretensão de ofensividade ao bem jurídico. Já a ilicitude formal diz respeito a uma análise prospectiva de normas permissivas em face do caso concreto.

Devemos destacar que não se contemplam as apenas as causas de justificação (Por exemplo, legítima defesa) mas também as que Vives Antón denomina “escusas” ou “causas de exclusão da responsabilidade pelo fato” (tradicionalmente encadernadas na esfera da culpabilidade como causas de exculpação). Para Vives Antón não existe diferença ontológica entre ambas, logo, com o mesmo fundamento material (por exemplo, a não exigibilidade) o legislador pode outorgar uma permissão forte – causa de justificação – ou frágil – escusa -. Não há diferença substancial entre as causas de justificação e de exculpação.

2.3 – Pretensão de Reprovação: O juízo de culpabilidade

É a pretensão de reprovação jurídica por ter o sujeito realizado uma ação ilícita, em que pese lhe fosse juridicamente exigível se comportar de acordo com o direito. Tal reprovação, porém, é jurídica, advindo de duas premissas: a) consideração da validade da norma; b) consideração do autor como um sujeito racional, com atitude participativa e capacidade de crítica e argumentação. A reprovação (e não a pena) restitui ao delinquente sua dignidade de ser racional, o trata como pessoa e não como objeto. Nesta pretensão, afirma Menezes (2014), o agente

[...] será o centro, devendo ser visto de acordo com sua liberdade de agir, para verificar se aquele indivíduo específico merece a reprovação da norma pela pratica daquela determinada ação. Não teremos a comparação com o conhecido (ou desconhecido) “homem médio”, pois cada ser humano é único, e assim também deve ser tratado pelo direito penal.

Coloca em relevância o princípio da dignidade da pessoa humana, mostrando que cada pessoa tem a sua individualidade, seu convívio social, seu nível escolar, seu local de morar, sua classe econômica, sua educação, seus familiares, sua noção de mundo etc. Será verificada a “história” de cada indivíduo, para avaliar a sua ação e as consequências penais a serem adotadas dentro do ordenamento jurídico, porque aquela pessoa é única e assim deve continuar sendo ao ser aplicada a norma penal.

Devemos, portanto, considerar nesta pretensão os aspectos criminológicos relacionados com a co-culpabilidade. [4]

Da mesma forma que os sistemas clássicos, a reprovação é analisada em dois momentos já conhecidos: a imputabilidade, que determina se o sujeito possui a capacidade de reprovação; e a consciência da ilicitude de sua ação.

2.4 - A pretensão de necessidade de pena: Punibilidade

O sistema de Vives Antón conecta diretamente a teoria do delito e a teoria da pena, aperfeiçoando o trabalho iniciado pelo funcionalismo sistêmico de Roxin. Segundo Vives Antón (apud Busato, 2013, p. 579), “toda pena desnecessária é também injusta”, o que justifica a inclusão desta pretensão no sistema de imputação significativo que busca o valor central de justiça.

Esta categoria não corresponde ao conceito estrito de punibilidade que estudamos nas teorias clássicas, caracterizado por referir-se àqueles elementos que concorrem no momento da realização da ação (condições objetivas de punibilidade e causas pessoais de exclusão de pena), mas ao conceito amplo, incluindo também as causas pessoais de anulação ou levantamento da pena, assim como todas as medidas benignas que inviabilizem que a pena cumpra a função a que está destinada. Aqui atua concretamente o princípio da proporcionalidade.

3 - Conclusão

Pelo exposto, podemos concluir que a dogmática nas vertentes funcionalistas e finalistas encontram-se esgotadas e precisam buscar novos fundamentos que as legitimem como normas regentes de uma sociedade do século XXI.

Utilizar a filosofia da linguagem e a doutrina da ação significativa como base se mostra verdadeira evolução no campo penal: Aproxima a teoria da realidade prática ao definir ação como um significado expresso; elimina a discussão entre ontologia e axiologia ao admitir que ambos influenciam o processo comunicativo; Traz consigo a pretensão de validade, sendo o sistema penal algo considerado legítimo pelos jurisdicionados.

Em relação ao sistema de imputação, esta teoria corrige algumas incongruências das categorias já estudadas pela dogmática, dentre elas merecendo destaque que:

  • Na pretensão de relevância, houve um esvaziamento da análise da ação e do tipo ao levar os elementos dolo e imprudência para a pretensão de ilicitude, além do reconhecimento de que a pretensão de ofensividade é instância de ilicitude material;
  • Na pretensão de ilicitude, o dolo assume caráter normativo, demonstrável objetivamente através da significação do tipo de ação expresso pelo autor do fato;
  • Na pretensão de reprovação alterou-se o referencial: o que era uma concepção moral de livre arbítrio foi substituído pela liberdade de ação, uma reprovação jurídica, cujas premissas são a validade da norma e um sujeito racional.
  • A adoção de uma pretensão de necessidade de pena como manifestação concreta do princípio da proporcionalidade, como forma de corrigir eventuais injustiças, sempre pautado na busca do justo.

Ao oferecer tais bases é possível concluir que o estudo do sistema comunicativo merece atenção, já que foi construído como um todo congruente, de modo a legitimar a imputação penal. Sabemos que muitas questões deverão ser levantadas ainda, da mesma forma que a teoria encontra-se em um ponto mais avançado do que aqui foi exposto. Conforme diz Martínez-Buján Perez (2007, p. 3), “o edifício conceitual que propõe Vives é, prima facie, convincente.” Busato, em sua obra [5], o adapta às leis vigentes em nosso ordenamento além de trazer outros debates que aqui não trouxemos por fugir ao nosso objeto.

Desta forma, concluímos pela adoção do sistema significativo por se mostrar mais democrático, próximo à realidade, sempre orientado pelo valor do justo.


Notas e Referências: 

BUSATO, Paulo César. A evolução dos fundamentos da teoria do delito. 2012. Disponível em:<http://www.gnmp.com.br/publicacao/156/a-evolucao-dos-fundamentos-da-teoria-do-delito> . Acesso em 13/10/2014.

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HABERMAS, Jurgen. Teoría de la accíon comunicativa. 4. Ed. Trad. de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 2003 v. I e Direito e Democracia. Entre faticidade e validade. 2. Ed. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janiero: Tempo Brasileiro, 2003. V. I.

HASSEMER, Winfried. “El viejo y el Nuevo Derecho Penal”. Em Persona, Mundo y Responsabilidad. Trad. de Francisco Muñoz Conde e María del mar Díaz Pita, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

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_________... [et al.]; BUSATO, Paulo César (Coordenador). Dolo e direito penal: Modernas tendências. 2ª ed. São Paulo. Atlas, 2014.

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WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. 2. Ed. Trad. de Alfonso García Suárez e Ulises Moulines. Barcelona: Editorial Crítica, 2002.


Notas e Referências:

[3] Ainda que as correntes funcionalistas partam também do “sentido”, seguem definindo a ação em termos de substrato, e continuam, portanto, concebendo-a como substância. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. P. 204.

[4] Vide o estudo de GRÉGORE MOREIRA DE MOURA – Do princípio da co-culpabilidade no direito penal: DPLACIDO, 2014.

[5] BUSATO, Paulo César. Direito Penal - Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013 e Direito Penal - Parte Especial 1. São Paulo: Atlas, 2014.


daniel

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Daniel Dore Lage é advogado, pós graduado em Ciências Penais (UFJF) e pós graduando em Direito Público (PUC/MG)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       .   .     


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