Novos fundamentos para o Direito Penal: Filosofia da Linguagem e a Teoria do Crime (Parte 1)

26/05/2015

Por Daniel Dore Lage - 26/05/2015

Parte 1

Introdução

O crime é o principal objeto de estudo do direito penal. Colocado como tal, é possível sua abordagem sob várias perspectivas, por exemplo, considerando-o um fato social com consequências na sociologia, ou um processo de escolha do que é reprovável (na área da criminologia e da política criminal), ou ainda, sob um escopo jurídico, o conjunto de institutos normativos formais que regulam as perspectivas anteriores. O que deve ser percebido é que estamos tratando de conceito dinâmico, que é modificado e evolui por várias concepções. O estudo da dogmática não pode mais estar alheio às contribuições das demais ciências sociais.

Da mesma forma, os juristas tentam organizar os conceitos desenvolvidos sempre orientados pela busca (utópica) do justo (BUSATO, 2013, p. 206). [1] A teoria do crime serve, então, para facilitar a compreensão do que é justo no fenômeno estudado, manifestando claro caráter instrumental.

“O trabalho dogmático de cerca de 200 anos no âmbito da teoria do delito consistiu, basicamente, na formulação de um sistema de imputação capaz de dotar de um certo nível de segurança jurídica as soluções propostas pelo Estado” para a criminalidade (BUSATO, 2013, p. 208). Não temos a pretensão de revisar toda a história da dogmática penal desde a Idade Antiga, visto que o Direito penal desde sempre é um meio de controle social e existe vasta bibliografia a respeito do tema. Mas é necessário constatar que, como dito acima, os conceitos elaborados para um sistema de atribuição de culpa e sua respectiva teoria do crime evoluíram conforme à história do direito e à compreensão filosófica dominante à época de quem os estudou, o que foi posto por THOMAS KUHN em sua teoria sobre a estrutura das revoluções cientificas ao identificar que as mudanças se processam pelo surgimento de novos pontos de vista, de novas maneiras de enxergar um mesmo objeto – o que provoca a “crise” que desencadeia a busca por novos referenciais (MARTÍNEZ-BUJÁN PEREZ, 2007, p. VIII). O mais importante é perceber que a base de imputação tem elementos comuns em todos os modelos, discutindo-se as mudanças em seus fundamentos e correções das estruturas lógicas propostas.

A discussão acerca da dogmática teve início com a pretensão de o direito penal tornar-se um conhecimento chamado de “científico”, que atendesse à sistemática do positivismo, típico das ciências burguesas-empíricas no séc. XIX. De forma a obedecer aos critérios dominantes à época, abandonou-se a concepção hegeliana de crime (expressão de vontade contrária à lei) e, utilizando a metodologia analítica de DARWIN, os juristas dividiram os fenômenos delitivos em categorias comuns, de modo a estudar partes componentes de um todo. Surgiu a concepção clássica do delito, conhecida pelo nome de Causal-naturalismo [2]. Tal teoria foi o marco inicial de um conceito analítico de crime: Um movimento humano, previsto objetivamente em lei como crime, não autorizado e cujo agente deve ser reprovado.

Mas esta teoria sofreu duras críticas e remendos; ficou evidente sua limitação por ser o direito um fenômeno social, passivo de valorações, e que as leis e conceitos da natureza não poderiam descrever todas as ações criminosas de forma neutra e objetiva (lembrando, por exemplo, da incapacidade de explicar o que é um crime de omissão com conceitos das ciências naturais – exige um juízo de valor sobre o que é um “não fazer” criminoso).

Como forma de corrigir tais distorções, os teóricos [3] alteraram o conceito do que é realidade para o direito a referência inicial era a lei da natureza (física, química, biologia); agora partindo da própria norma como realidade, um sistema fechado, baseado em axiomas, modelo chamado Positivismo Jurídico (BUSATO, 2013, p. 222). O problema deste modelo restou no seu exagerado artificialismo ao querer isolar o direito de valores - como justo ou injusto – pregando um legalismo cego.

O modelo neokantista surgiu em resposta às teorias causalistas, trazendo um dualismo metodológico: Ao lado das ciências naturais existem as ciências sociais; as primeiras associadas ao ser e as segundas ao dever ser. Dentro das ciências do dever ser apresentava-se o direito. O direito como ciência da cultura apresentava um método próprio relacionado a valores. Na avaliação da conduta, deveria ser verificada a vontade de praticar a ação e a consciência de a estar praticando. Admite-se, então, um conceito valorativo de ação, na qual a conduta humana será a expressão da vontade do autor no mundo externo.

O tipo penal passou a analisar elementos subjetivos, retirando a drástica separação da teoria causal clássica, na qual o fato típico possuía apenas elementos objetivos. Passou-se a ter um juízo de valoração sobre a tipicidade da conduta, diminuindo a influência dos positivistas, para os quais a norma deveria ser apenas aplicada, sem discussão. (MENEZES, 2014.)

WELZEL negou esta divisão metodológica ao afirmar que o direito consiste em uma forma de regulação da realidade, mas não pode negá-la. Com a constante crítica, surgiu o sistema finalista.

O sistema finalista do delito apoiou-se nas contribuições filosóficas de WELZEL. Ele propôs um modelo de sistema diferenciado, que a um tempo negava a rígida separação entre o mundo ontológico (ser) e o mundo axiológico (dever ser) e a outro tempo, rechaçava a separação entre os aspectos subjetivos e objetivos do delito, sustentando que o direito somente poderia regular aquilo que estava pré-determinado pela natureza, sem que seja possível ao primeiro ultrapassar os limites desta última.

Seu mérito foi trazer a voluntariedade para o primeiro subnível da teoria do crime quando disse que a toda a ação humana é dirigida a uma finalidade e que isto constitui a própria natureza do agir humano. A partir destas premissas, elaborou a base do sistema de imputação moderno.

Porém, na década de 70, com o crescimento da criminologia crítica baseado nas constatações de DURKHEIM E MERTON, e com a superação do ontologicismo, a teoria finalista restou fragilizada. Seus resultados já se mostravam insatisfatórios, pois não considerava dados empíricos na sua aplicação.

Evoluímos para os sistemas de orientação funcionalista no funcionalismo estrutural de PARSONS ou no funcionalismo sistêmico de LUHMANN.

Com a superação do paradigma ontológico-positivista, somado ao fracasso prático do isolamento do sistema penal em critérios formais-ontológicos, a necessária da superação da ideia de uma teoria do delito meramente descritiva aparece justamente na retomada de postulados já destacados por ocasião do neokantismo e que foram obnubilados pelo êxito do finalismo.

Estes postulados dizem respeito à busca de fundamentação material já não só para o sistema penal como um todo, ou seja, para o resultado da imputação, mas como justificação interna, para a composição de cada uma das categorias ou elementos que o compunham.

A verdade absoluta, a ideia de uma realidade unívoca, própria das teorias ancoradas em pressupostos ontológicos é substituída pelo reconhecimento da plurivocidade da realidade, da coexistência de distintas formas de interpretação. Isso conduz, naturalmente, ao envio dos problemas jurídico-penais para uma solução no campo axiológico dos valores que subjazem ao próprio sistema penal. (BUSATO, 2012).

Conforme BUSATO (2012), “já não se trata de aplicar o sistema de imputação tendo como único objetivo o enquadramento do fato no sistema, gerando uma realidade de imputação imutável e presumivelmente verdadeira”. Parte-se das funções que o Direito penal cumpre ou que deve cumprir para, através delas, determinar a configuração dos elementos que compõem a teoria do delito. Dá-se importância à política criminal na aplicação do sistema de imputação penal.

Neste ponto chegamos aos sistemas adotados majoritariamente pela doutrina penalista. O objetivo desta pesquisa é demonstrar que já superamos o paradigma funcionalista e que podemos adotar um modelo significativo de imputação, mais justo e legítimo. Desta forma, exporemos sobre o assunto trazendo bases do que já foi desenvolvido pela doutrina especializada e nos posicionaremos a favor de tal modelo.

Bases para uma perspectiva de ação comunicativa 

A nova “crise” do Direito Penal, identificada por HASSEMER (1999, p. 47), trata-se da constatação de que a ideia funcionalista de proteção de bens jurídicos se converteu em critério positivo para justificar decisões criminalizadoras, que levam a desumanização do Direito Penal. O autor também traz críticas ao uso político criminal do chamado efeito simbólico do Direito Penal, que passa a ser justificativa para a criação massiva de bens jurídicos a serem protegidos por normas incriminadoras e mitigar garantias processuais em nome da ordem. O funcionalismo, em qualquer vertente, converteu-se em instrumento discursivo, de pedagogia social, utilizado para justificar a aplicação do sistema penal como forma de afirmação pública da necessidade de respeito e proteção de determinados bens ou interesses, convertendo o discurso punitivo de ultima ratio em prima ratio. (BUSATO, 2013, p. 248)

Chegamos novamente a um impasse, onde a teoria já dá claros sinais de insuficiência para tratar da realidade, o que exige uma busca por novos fundamentos.

O modelo de sociedade do século XXI tem por características, essencialmente, ser uma sociedade de consumo e de comunicação (BUSATO, 2013, p. 248). Convivemos em uma sociedade com enorme volume de informações interferindo nas relações pessoais. Tal volume facilitou a divulgação de produtos e alterou a lógica de mercado capitalista. Devemos concordar com BAUMAN e COSTA (apud. BUSATO, 2013, p. 249) que o mundo já “passou a etapa marxista da divisão entre capital e trabalho e das classes divididas entre industriais e trabalhadores, passando para o mundo da excedência, que divide as pessoas basicamente entre os que consomem e os que não consomem.” Surge, portanto, a necessidade de problematizar as normas que regem a sociedade: elas expressam os interesses dos grupos e merecem aceitação por parte deles? Em outras palavras, as normas podem ser justificadas e ser consideradas legítimas?

A validação das normas passa a depender da justificação pelo contexto, pela expressão de comunicação de um sentido que as torne válidas para um grupamento humano determinado. E é justamente a realização dessa ponte entre o ser e o dever ser que insere o direito enquanto expressão linguística. (BUSATO, 2013, p.249)

A filosofia da linguagem mostra sua grande contribuição ao direito neste momento; mesmo que de forma tardia, ao contrário das outras ciências sociais, propostas como a contribuição de HABERMAS e WITTGENSTEIN (Apud. BUSATO, 2013, p. 250 e 251) geram uma completa mudança de estrutura metodológica, pois analisam a sociedade como uma estrutura de comunicação (e não mais como estrutura de produção) e clamam por reorientação das estruturas normativas.

As teorias de imputação penal, até então dominantes, mostram sua insuficiência a “partir de uma migração completa do âmbito ontológico ao normativo” (BUSATO, 2013, p. 250). Inegável é que chegar aos extremos, como no finalismo de WELZEL (ontológico) ou no funcionalismo de JAKOBS, não respondeu os problemas da realidade. Constata BUSATO (2013, p 250 e 251):

Não é possível desprezar o componente ontológico completamente, porque este interfere de modo necessário no próprio sentido de aplicabilidade da norma, bem assim, é igualmente óbvio que esse condicionamento também é bilateral, posto que a norma interfere no sentido da realidade. Não há, em verdade, uma subordinação, que os dois pontos de vista pretenderam, do ontológico ao axiológico ou vice-versa. O que há é uma perspectiva holística, de mútua interferência, estabelecida através de um processo de comunicação de sentido, este sim, campo sobre o qual se constrói a pretensão de validade do sistema punitivo em face das condutas humanas.

O processo de comunicação se diz completo quando exprime um sentido. Desta ideia, consoante HAFT (Apud. BUSATO, 2013, p. 251), afirmamos que não existe um direito inicialmente dito correto, tendo em mente que a validade das normas e as decisões que delas se originam só podem ser afirmadas a partir de um caso concreto, através de um processo argumentativo que busca o consenso dos interessados sobre a percepção do sentido exprimido, assemelhando-se ao que é feito no modelo jurídico anglo-saxão do common law. As normas de direito penal devem buscar sua validade em um sentido da realidade.

O primeiro trabalho importante a perceber e adotar tais referenciais da filosofia da linguagem, da ação comunicativa e da teoria do discurso, para refundamentar o direito penal advém do estudo de VIVES ANTÓN, publicado em 1996, na Espanha. [4] Seu mérito foi racionalizar a estrutura penal a partir dos “jogos de linguagem expressos na ação e as formas de vida que dão racionalidade prática às regras.” (BUSATO, 2013, p. 252). Conclui BUSATO (2013, p. 252) que VIVES ANTÓN produziu, portanto, o sistema mais adequado ao modelo de sociedade atual, capaz de atender à realidade “a partir da compreensão da linguagem como acordo comunicativo que legitima as normas segundo pretensões de validade”.

Ao contrário do que pode parecer, VIVES ANTÓN não pretende romper totalmente com os sistemas até então discutidos; na verdade, ele propõe uma nova perspectiva à teoria do crime, estruturando-a através de significados distintos para as categorias já exauridas como ação, tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Sua nova visão simplifica o sistema de imputação e traz ínsito um resultado legítimo.


Veja a Parte 2 dia 28/05 às 15h!


Notas e Referências:

BUSATO, Paulo César. A evolução dos fundamentos da teoria do delito. 2012. Disponível em:<http://www.gnmp.com.br/publicacao/156/a-evolucao-dos-fundamentos-da-teoria-do-delito> . Acesso em 13/10/2014.

_________. Bases de uma teoria do delito a partir da filosofia da linguagem. Revista Direito e Liberdade – RDL – ESMARN – v. 14, n. 1, p. 241-264, jan./jun. 2012.

_________. Direito penal & Ação Significativa - 2a edição, revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

_________. . Direito Penal - Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013.

_________. . Direito Penal - Parte Especial 1. São Paulo: Atlas, 2014.

FLETCHER, George Patrick. O justo e o razoável. Novos estudos jurídicos: revista semestral do curso de pós-graduação stricto sensu em ciência jurídica da Univali / Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Imprenta: Itajaí SC, Univali, 199   v. 9, n. 2, p. 183–229, maio/ago., 2004.

HABERMAS, Jurgen. Teoría de la accíon comunicativa. 4. Ed. Trad. de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 2003 v. I e Direito e Democracia. Entre faticidade e validade. 2. Ed. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janiero: Tempo Brasileiro, 2003. V. I.

HASSEMER, Winfried. “El viejo y el Nuevo Derecho Penal”. Em Persona, Mundo y Responsabilidad. Trad. de Francisco Muñoz Conde e María del mar Díaz Pita, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

MARTÍNEZ-BUJÁN PEREZ, Carlos. A concepção significativa da ação T.S. Vives e sua correspondência sistemática com as concepções teleológico-funcionais do delito. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

_________... [et al.]; BUSATO, Paulo César (Coordenador). Dolo e direito penal: Modernas tendências. 2ª ed. São Paulo. Atlas, 2014.

MENEZES, Rodolfo R T. A teoria do delito e o significado da ação. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3837, 2 jan. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26311>. Acesso em: 12 mai. 2014.

VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. 2ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. 2. Ed. Trad. de Alfonso García Suárez e Ulises Moulines. Barcelona: Editorial Crítica, 2002.

* Trabalho originalmente publicado como monografia de conclusão de curso de especialização em Ciência Penais.

[1] Ver também o trabalho de FLETCHER a respeito do conceito de “justo”: O justo e o razoável. Novos estudos jurídicos: revista semestral do curso de pós-graduação stricto sensu em ciência jurídica da Univali / Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Imprenta: Itajaí SC, Univali, 199   v. 9, n. 2, p. 183–229, maio/ago., 2004.

[2] Categorizado pela primeira vez por Albert Friedrich Berner em 1857. Importante citar a evolução conceitual proposta principalmente por FEUERBACH, VON LISZT, BELING.

[3] Período de contribuição de KELSEN, BINDING, HART E ROSS.

[4] VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. 2ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.


daniel

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Daniel Dore Lage é advogado, pós graduado em Ciências Penais (UFJF) e pós graduando em Direito Público (PUC/MG)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       .      


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