Notas sobre juventudes, prisões e acesso à justiça

12/04/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

As guerras estão espalhadas no mundo. O medo da guerra, de seus horrores e seus efeitos parecem importar mais em evidência quando elas estão no dito centro civilizatório do mundo (Césaire, 2020). Não são noticiados com afinco em horário nobre os conflitos no oriente médio, os confrontos no Congo, entre outros. Nem mesmo está em destaque o que acontece aqui, ao nosso cotidiano latino-americano.

O Estado brasileiro é, por si próprio, uma máquina de guerra. E enquanto máquina de guerra funciona com a concessão de forças regulares, ao mesmo tempo em que agregam outras estratégias de segmentação e desterritorialização (Mbembe, 2016). É aqui que cerca de 30 mil jovens são mortos ao ano, com conhecimento dos governos e anuência da própria sociedade.

E em uma guerra, quando não se extermina a vida, se aprisiona. Sendo essa prisão justa ou não. Somente nos três primeiros meses de 2022 diversas notícias sobre prisão indevida de jovens surgiram através da mídia e a discussão sobre elas ganhou mais força nas redes sociais. Para ilustrar a discussão a seguir, seguem três casos resumidos:

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Caso 1:

Em janeiro, dois primos de 19 e 21 anos foram acusados de roubo à mão armada em São Paulo. A prisão foi realizada após a denúncia da vítima do roubo que conseguiu escapar do assalto. Na ronda em busca de suspeitos, a Polícia Militar passou pela casa dos jovens e a motivação pela abordagem, além das características dos jovens serem semelhantes à descrita na denúncia, é que um deles estava com uma arma de brinquedo, atirando em latinhas.

A vítima do roubo diz ter reconhecido os jovens após a prisão deles. Porém, imagens da câmara de vídeo de um vizinho dos rapazes registrou a presença dos primos em casa e na vizinhança durante todo o dia, inclusive durante o horário indicado como sendo o do suposto assalto.

A família e os vizinhos se organizaram para reunir provas da inocência dos primos, indicar incoerências no processo de investigação e reivindicar a liberdade dos jovens. Em 17 de fevereiro, aproximadamente um mês depois da prisão, os jovens foram soltos, embora não estejam livres. Eles ainda responderam pelo crime de roubo e precisarão provar suas inocências em julgamento.

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Caso 2:

Em fevereiro, dois jovens de 19 anos foram apreendidos no Rio de Janeiro acusados de roubar pertences de turistas. A justificativa para a apreensão pela PM do RJ foi que duas mulheres reclamaram que tiveram seus pertences roubados na região do Arpoador e apontaram para os rapazes como assaltantes.

Na abordagem aos jovens nenhum objeto ou pertence do suposto crime foi encontrado, porém, ainda assim, os jovens foram autuados e presos. Além deles, havia também mais um adolescente junto, que também foi acusado.

As famílias dos rapazes apontaram a prisão como sendo indevida e buscaram alternativas de defesa para os filhos. Dias depois, após posicionamento do Ministério Público pela liberdade dos rapazes e aprofundamento das investigações, a justiça determinou pela liberdade provisória dos acusados.

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Caso 3:

Em março, dois jovens irmãos de 19 e 24 anos foram presos pela Polícia Militar em Diadema, São Paulo. A PM notificou que recebeu a denúncia de que uma dupla havia realizado dois roubos a carro, um assalto seguido do outro, e no rastreio de um dos carros roubados chegou até a rua em que os jovens estavam em um bar.

Os irmãos que estavam no bar com o pai, haviam saído rapidamente para o outro lado da rua para fumar ao ar livre e estavam próximos a um dos carros que havia sido roubado e deixado naquele local, coincidentemente quando a Polícia chegou. A apreensão dos jovens foi realizada na frente do pai, que afirmou que a prisão dos filhos estava sendo equivocada, porém não foi considerado em nenhum momento. Na prisão, os dois jovens foram reconhecidos por uma das vítimas como os responsáveis pelo assalto.

A família iniciou uma investigação por conta própria, que reuniu imagens de câmeras da rua onde a família mora, imagens de câmera de segurança do bar, mensagens trocadas pelos jovens em aplicativos, a fala de testemunhas, entre outras informações que pudessem comprovar a inocência dos rapazes. Entre outros argumentos, está o de que um dos jovens, o de 19 anos, se quer sabe dirigir, o que deixa a acusação ainda mais infundada.

Somente um mês depois o Alvará de Soltura foi expedido para os jovens, porém o processo ainda deve seguir.

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É possível, apenas com a leitura dos casos, identificar cor, raça e território de moradia desses jovens, mesmo que essas informações não tenham sido citadas nos resumos? Sim, em todos esses casos os jovens são negros, pobres e residentes de periferias.

Aqui três casos foram apresentados como forma de exemplificar o efeito psicossocial do racismo no imaginário coletivo, mas também de destacar um efeito da localização de classe e de gênero. Ao se delinear o "sujeito suspeito", este certamente será homem, negro, pobre, periférico e jovem. Há uma estética de referência e esta não apenas classifica e estereotipa, como pré-determina quais corpos serão deixados para a vida e quais serão conduzidos para morte (Mbembe, 2016). E a prisão é um tipo de morte. "A prisão funciona, portanto, ideologicamente como um local abstrato em que os indesejáveis são depositados" (Davis, 2018).

É nesse sentido que há tempos os movimentos sociais, sobretudo o Movimento Negro, aponta a seletividade do sistema penal, seja quanto as abordagens policiais e encarceramento, seja quanto a investigação e acesso à justiça. Ainda na década de 1970  Lélia Gonzalez escreveu:

Um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro na força do trabalho se concretiza na sistemática perseguição, opressão e violência policiais contra ele. [...] o negro é preso por vadiagem; em seguida, é torturado (muitas vezes assassinado) e obrigado a confessar crimes que não cometeu. De acordo com a visão dos policiais brasileiros, 'todo negro é um marginal até prova em contrário'. Claro está que esse consenso setorial não é uma casualidade. Gonzalez, (1979).

Mais de quarenta anos depois e está nítido que a situação da juventude negra brasileira não arrefeceu. Ao contrário, há ainda mais denúncias sobre a violência institucional e a desigualdade de tratamento no sistema de justiça criminal. Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen (2014) cerca de 40% da população encarcerada era composta por presos provisórios, cerca de 250 mil pessoas. Os jovens negros protagonistas dos três casos discutidos alimentaram essa estatísticas e outros tantos ainda alimentam, sobretudo aqueles com maior dificuldade de acesso à justiça.

O interior dos sistemas de justiça criminal, a seletividade burocrática e operacional, as condutas e as práticas têm ganhado destaque nas discussões, análises e estudos sobre Criminologia Crítica. Tem se observado a seletividade penal manifesta quando são realizados constrangimentos e seleções de determinados atores sociais pelo sistema de justiça, gerando desigualdades de tratamento.

Em resumo, tomado a discussão de Sinhoretto (2014) como referência, a seletividade penal no campo da segurança pública e da justiça criminal, opera promovendo aos detentores de bens sociais as prerrogativas e privilégios de que seus atos e infrações atraiam pouca ou nenhuma repressão penal, enquanto aos pauperizados, periféricos, participantes da classe trabalhadora dedica-se a repressão penal, as dificuldades e inoperâncias. Aliado a esse processo está o racismo estrutural, produzindo nítidas diferenças de tratamento e acesso à justiça entre as pessoas negras e não-negras (Almeida, 2018).

Podemos observar que nos três casos ilustrados os jovens encontraram-se com obstáculos para administrar os conflitos em que foram colocados como protagonistas contra suas vontades. A este refere-se outro argumento de que o sistema é seletivo o de que ele escolhe justamente aquela parcela da população que não tem condições objetivas de enfrentá-lo.

Nos casos ilustrados os jovens foram reconhecidos pelas vítimas como aqueles apontados como realizadores dos crimes denunciados, mesmo que esse processo de reconhecimento não tenha sido feito de acordo o Artigo 226 do Código de Processo Penal. Os reconhecimentos, de acordo com os relatos em reportagens, foram feitos principalmente considerando a cor/raça, o que reforça a condição racial e o racismo como critérios preponderantes para predição destas prisões.

O foco nos jovens negros, assim, é justificado pela maior incidência dos casos de homicídios e encarceramento entre a população negra, de 15 a 29 anos. Os casos relatados aqui ganharam mobilização nas redes sociais, sobretudo em mídias pautadas pelos movimentos sociais, movimento negro, grupos, organizações nacionais e   internacionais, os mesmos que há tempos chamam a atenção para essa problemática social tendo como argumento central o de que este tipo de violência tem cor/raça, classe, condição socioeconômica, gênero e território.

Em outras vias estão as famílias, que continuam sendo expostas a um processo midiático que criminaliza os sujeitos por sua cor/raça, classe social e gênero. Os programas policiais matinais (ou da hora do almoço) costumam fortalecer apenas o discurso dos operadores da da segurança pública e da justiça (Jesus, 2016), sobretudo dos policiais e delegados, pouco dão voz às famílias das vítimas, e por vezes à criminalizam também.

No processo de acesso à justiça a essas famílias há carência de informações e justificativas, embora sejam elas que, com recursos escassos e contribuições comunitárias, conseguem elaborar argumentos que contribuam com a defesa dos filhos/sobrinhos/irmãos/vizinhos.

Para estes jovens em análise, há a alternativa de estar fora da prisão enquanto os casos continuam a serem investigados, mesmo que haja risco de não serem inocentados, esses são três ocorrências que se tornaram públicas e ganharam notoriedade, diferente de outros tantos que apenas dão corpo à estatística, sem alarde, sem câmeras, e sem debate.

A guerra brasileira ainda é silenciosa ou os gritos não têm sido ouvidos? Em uma sociedade onde a justiça é um espetáculo, vozes negras ganham projeção? Até que tudo cesse, há corpos que não cessarão de lutarem pelo direito de existir livremente. Como nos ressalta Davis (2018), a liberdade é uma luta constante.

 

Notas e Referências

Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA.

Band News. (2022, março, 02). Jovens presos no Arpoador são soltos; Família afirma engano. Recuperado de: https://www.band.uol.com.br/bandnews-fm/rio-de-janeiro/noticias/dois-jovens-presos-injustamente-no-arpoador-na-ultima-segunda-feira-sao-soltos-16482198

Borges, J. (2018). O que é encarceramento em massa? Letramento Editora e Livraria LTDA.

Césaire, A. (2020). Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta.

Davis, A. (2018). A liberdade é uma luta constante. Boitempo Editorial.

Davis, A. (2018). Estarão as prisões obsoletas? Editora Bertrand Brasil.

G1 SP. (2022, abril, 02). Pai investiga assalto por conta própria e irmãos são soltos após um mês presos; defesa alega falha no reconhecimento. Recuperado de: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/02/pai-investiga-assalto-por-conta-propria-e-irmaos-sao-soltos-apos-um-mes-presos.ghtml

Gonzalez, L. (1979). A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. II Annual Meeting of the African Heritage Studies Association, Pittsburgh.

Jesus, M. G. M. D. (2016). O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. (Doctoral dissertation, Universidade de São Paulo).

Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, (32), 123-151.

RAPMAIS. (2022, abril, 01). Jovens são presos injustamente por roubo de carros; imagens mostram que eles estavam em outro local no momento do crime. Recuperado de: https://portalrapmais.com/jovens-sao-presos-injustamente-por-roubo-de-carros-imagens-mostram-que-eles-estavam-em-outro-local-no-momento-do-crime/

Sbt News. (2022, janeiro, 20). Jovens são presos em São Paulo acusados de um crime que não cometeram. Recuperado de: https://www.sbtnews.com.br/noticia/sbt-brasil/194201-jovens-sao-presos-em-sao-paulo-acusados-de-um-crime-que-nao-cometeram

Sbt News. (2022, fevereiro, 17). Primos presos injustamente são soltos em São Paulo. Recuperado de: https://www.sbtnews.com.br/noticia/sbt-brasil/197671-primos-presos-injustamente-sao-soltos-em-sao-paulo

Sinhoretto, J. (2014). Seletividade penal e acesso à justiça. In: Lima, R. S. de; Ratton, J. L.; Azevedo, R. G. (Org.). Crime, segurança e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto.

 

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