Notas sobre a natureza jurídica do IRDR: causa-piloto ou procedimento-padrão? – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

29/05/2017

Sabe-se que o IRDR é uma novidade sem precedentes no sistema processual civil brasileiro, que veio para acompanhar a preocupação do legislador acerca da igualdade de tratamento e da segurança jurídica, com o intuito de uniformizar teses jurídicas no âmbito dos tribunais, porque a decisão do referido incidente configura-se como um “julgamento de casos repetitivos”, conforme dicção do art. 928, I do CPC-15. Ou seja, o IRDR integra o que vem sendo chamado de “rol dos precedentes judiciais obrigatórios” (art. 927 do CPC-15), de controversa existência.

A discussão sobre a existência ou não de um rol de precedentes judiciais obrigatórios, bem assim de eventual conflito entre o que prescreve o art. 927 do CPC-15 e o princípio da legalidade, como também o da separação dos poderes, não será objeto da presente coluna, que, na verdade, se dedicará a analisar, sem pretensão de esgotamento, a natureza jurídica do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas naquilo que está, a olhos vistos, causando mais controvérsia na prática forense, vale dizer: se seria o IRDR inspirado em um regime de causa-piloto ou em um regime de procedimento-modelo?

Embora não haja uma unicidade de tratamento doutrinário sobre o tema e o CPC-15 não deixe claro o regime do IRDR, não se pode esquecer que a exposição de motivos do novel diploma processual acena para a inspiração alemã do instituto, que lá se denomina Musterverfahren:

Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.[1]

A parte final do trecho acima transcrito já dá uma ideia daquilo que a comissão de juristas pensou quando da inserção do IRDR no texto do código projetado, ou seja, a inspiração foi extraída do Musterverfahren, vale dizer, de um procedimento-modelo, com a finalidade de identificar processos que contivessem a mesma questão de direito, mas que estivessem ainda no primeiro grau de jurisdição, para uma decisão conjunta.

Isso fica até mais claro em outra passagem da mesma exposição de motivos:

O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de decisões conflitantes.[2]

Entretanto, quando da redação final do que hoje é o CPC-15, quase nada restou daquela inspiração inicial, chegando-se a afirmar que o IRDR é um instituto genuinamente brasileiro.[3]

Diante desse afastamento, resta a indagação: seria o IRDR um instituto voltado para a solução de casos concretos e fixação de teses jurídicas, ou teria ele apenas o objetivo de formar teses jurídicas, sem a necessidade de uma decisão de um específico caso concreto? Estaria o IRDR, assim, sob o regime de causa-piloto ou sob o regime de procedimento-modelo?

Parece que essa resposta não será encontrada na referida exposição de motivos, mesmo porque, como dito, o redação final do novo diploma processual, naquilo que diz respeito ao IRDR, muito se afastou da redação original do anteprojeto do Senado Federal. Na verdade, para um enfretamento do problema posto, o texto positivado deve ser levado em consideração muito mais do que a vetusta “vontade do legislador”. Até porque, se se quer dizer algo sobre um texto, deve-se deixar que o texto lhe diga algo, em conhecida lição de Gadamer.

Dois dispositivos constantes do CPC-15 trazem grande parte da controvérsia que aqui se pretende analisar, são eles o art. 977, I e o parágrafo único do art. 978. Isso porque, ao tempo que o primeiro dispositivo confere legitimidade ao juiz para pedir a instauração do incidente, o segundo determina que o órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente”.

Analisando-se o que preceitua o art. 977, I do CPC-15, pode-se chegar à conclusão que como o juiz tem legitimidade para pedir a instauração do IRDR, não haveria necessidade de a causa estar no tribunal, bastando a multiplicidade de processos que tenham a mesma questão de direito, mas ainda em primeiro grau de jurisdição (pendentes de análise pelo judiciário), instaurando-se o incidente no tribunal sem a necessidade de a instauração decorrer de um processo em tramitação no tribunal competente para o julgamento do IRDR.

Caso se pense dessa forma, o IRDR teria natureza jurídica de procedimento-modelo, pois o incidente se limitaria a fixar a tese jurídica que, quando fixada pelo tribunal competente, seria aplicada aos demais casos análogos, mas sem qualquer necessidade de o tribunal decidir o caso do qual se originou o incidente. Não haveria, pois, necessidade de que houvesse um caso tramitando no tribunal, bastando a multiplicidade de demandadas com idêntica questão de direito, mas ainda em primeiro grau de jurisdição.

Negando veementemente essa possibilidade, tem-se a lição de Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha:

Sendo o IRDR um incidente, é preciso que haja um caso tramitando no tribunal. O incidente há de ser instaurado no caso que esteja em curso no tribunal.

Se não houver caso em trâmite no tribunal, não se terá um incidente, mas um processo originário. E não é possível ao legislador ordinário criar competências originárias para os tribunais. As competências do STF e do STJ estão previstas, respectivamente, no art. 102 e no art. 105 da Constituição Federal, as dos tribunais regionais federais estão estabelecidas no art. 108 da Constituição Federal, cabendo às Constituições Estaduais fixar as competências dos tribunais de justiça (art. 125, § 10, CF). O legislador ordinário pode - e foi isso que fez o CPC - criar incidentes processuais para causas originárias e recursais que tramitem nos tribunais, mas não lhe cabe criar competências originárias para os tribunais. É também por isso que não se permite a instauração do IRDR sem que haja causa tramitando no tribunal.[4]

Além do propagado no trecho acima transcrito, como também no parágrafo único do art. 978 do CPC-15, tem-se o enunciado nº 344 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A instauração do incidente pressupõe a existência ade processo pendente no respectivo tribunal”. Na mesma linha, o enunciado 342 do mesmo fórum: “O incidente de resolução de demandas repetitivas aplica-se ao recurso, a remessa necessária ou a qualquer causa de competência originária”.

Todos esses fundamentos levariam a crer que o IRDR estaria sob o regime de causa-piloto, pois haveria a necessidade dele decorrer de uma causa em tramitação no tribunal (de competência originária ou recursal), porque além do julgamento do incidente, fixando-se a tese jurídica, a própria causa seria julgada pelo órgão competente para o julgamento do IRDR.

Nada obstante, a solução não é assim tão evidente. Cássio Scarpinella Bueno adverte para uma possível inconstitucionalidade formal do parágrafo único do art. 978 do CPC-15, o que baralharia, mais uma vez, a solução acima propagada:

No CPC de 2015, contudo – e esta é a segunda razão que acima anunciei –, nada há de similar à exigência do Projeto da Câmara (o precitado § 2º do art. 988 daquele Projeto) sobre o incidente somente poder ser suscitado na pendência de qualquer causa de competência do tribunal. Destarte, a conclusão a ser alcançada é a de que o incidente pode ser instaurado no âmbito do Tribunal independentemente de processos de sua competência originária ou recursos terem chegado a ele, sendo bastante, consequentemente, que “a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito” seja constatada na primeira instância.[5]

Na mesma linha, Marinoni-Arenhart-Mitidiero assim lecionam:

Em conclusão, portanto, tem-se que a instauração o incidente não deve exigir a pendência da questão de direito à análise do tribunal. Bastará que tenha havido multiplicação de feitos com a mesma questão de direito perante o Poder Judiciário, com risco à isonomia ou à segurança jurídica, para que se viabilize o IRDR.[6]

Referidos autores não abordam a questão da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 978 do CPC-15, mas a ele dão a conotação de prevenção (competência por prevenção), ou seja, a interpretação dada ao referido texto é de que o órgão competente para o julgamento do IRDR “remanesce competente para a análise do recurso, do reexame necessário ou da ação de competência originária de onde surgiu a questão e direito que foi enfrentada”.[7]

Permaneceria, entretanto, sem resposta a advertência de Didier e Cunha de que não é possível ao legislador ordinário criar competências originárias para os tribunais, porquanto estas estão presentes na Constituição Federal (CF 102, 105 e 108) e nas Constituições Estaduais, quanto aos tribunais de justiça (art. 125, § 10, CF). Na visão dos referidos autores, a lei infraconstitucional apenas poderia criar incidentes processuais para causas originárias e recursais que tramitem nos tribunais.

Não parece, contudo, que essa interpretação seja a melhor. Não se nega que o legislador ordinário não possa criar competências originárias para os tribunais, decerto estas estão previstas na CF e nas Constituições Estaduais, mas não é correta a afirmação de que os incidentes processuais de competência dos tribunais sempre tenham que se originar de processos que neles tramitam em razão e sua competência originária e/ou recursal.

Basta lembrar-se da arguição de impedimento e suspeição, que embora arguida no primeiro grau de jurisdição (art. 146 do CPC-15), caso o juiz não reconheça a correção dos fundamentos constantes da arguição, remeterá o incidente ao tribunal, que tem competência funcional para julgá-lo. Não se percebe do art. 108 da CF/88 qualquer menção à competência para julgar o incidente de arguição de impedimento e suspeição do juiz federal, mas não se nega a sua natureza jurídica de incidente processual[8], embora se origine de um processo em tramitação no primeiro grau de jurisdição e que será julgado pelo Tribunal Regional Federal ou pelo Tribunal de Justiça hierarquicamente superior ao juiz dito incompatível para a causa.

Nas poucas linhas desta coluna, seria impossível uma análise mais detida do instituto, como também uma afirmação categórica acerca da natureza jurídica do IRDR. Certo é, que deve haver uma necessária compatibilidade do referido incidente com a sua fonte inspiradora e com o microssistema de julgamento de casos repetitivos previsto no art. 928 do CPC-15, procurando-se na compatibilização das regras que o compõem a solução para a controvérsia instaurada, sem afirmações categóricas que ainda precisam de uma maturação mais demorada.

Evidencia-se, portanto, que a solução acerca da natureza jurídica do IRDR, se estaria ele sob o regime da causa-piloto ou sob o do procedimento-modelo está longe de ter um desfecho, merecendo, por essa razão mesma, uma atenção redobrada da doutrina e da jurisprudência, para que tão importante instituto não seja diminuído, retirando-lhe a sua função primordial de uniformização da aplicação do Direito.


Notas e Referências:

[1] BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010, p. 21.

[2] Idem. ibidem.

[3] NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Manual de Direito Processual Civil, Volume único, Salvador: Juspodivm, 2016.

[4] DIDIER JR., Fredie; Cunha, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 625.

[5] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1018.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v.2. São Paulo: RT, 2015, p. 580.

[7] Idem. ibidem. p. 581.

[8] DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v.1. 17ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 671.


 

Imagem Ilustrativa do Post: February 5, 2010 – Paperwork // Foto de: Caitlin Childs // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nerdcoregirl/4335907588

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura