Nosso norte é o Sul: nova agenda de direitos humanos?

06/07/2016

Por César Augusto Baldi – 06/07/2016

Virou mais ou menos consenso, no campo crítico, a utilização, quando se trabalham aportes vindos da América Latina, da utilização do mapa, com o Sul virado para cima, de autoria do uruguaio Joaquín García, em 1943. Raras vezes recorda-se que já em 1154, Al Idrisi havia se antecipado, não somente em relação ao latino-americano, em direção ao que se convencionou colocar o Sul dos mapas ao Norte, mas também, cartograficamente, em relação a Mercator e sua famosa projeção. O fato de ter nascido em Ceuta recorda que esta permanece como enclave colonial da Espanha, e ter morrido na Sicília deveria indicar que a hoje Itália também teve presença muçulmana. Não parece ser coincidência, pois, que a herança islâmica seja insistentemente suprimida, mesmo nas “teorias do Sul” que tem estado em voga nos últimos anos.

De fato, as “teorias do Sul” são, ainda, um campo em disputa e que podem ter antecedentes buscados em Said, como usualmente se reconhece, mas também nos trabalhos, dez anos anteriores a este, do egípcio Anour Abdel-Malek. E mesmo no Brasil, com o trabalho pioneiro de Guerreiro Ramos, negro e baiano, discutindo a necessidade de uma sociologia que não “fosse enlatada”, mas sim adequada à realidade nacional. Às vezes, paradoxalmente, buscam-se no Norte sementes de teorias que estavam presentes, mas ignoradas pelo cânone, no próprio Sul.

Se para Boaventura de Sousa Santos, o Sul é a metáfora do sofrimento causado pelo sexismo, capitalismo e colonialismo, em Raewynn Connel, ele é o momento da periferização do conhecimento, ou seja, o reconhecimento de que também a agenda “científica” internacional parte do pressuposto de que as coletas de “dados” são realizadas nas colônias, mas a teorizações, feitas nas metrópoles.

Sul, para ela, é Southern theory, ao passo que para Boaventura é “epistemologies of South”; para tanto, na autora trans, o Sul tem locais definidos- América Latina, Índia, África, Irã e, paradoxalmente, Austrália. A lógica, pois, é de partilhar do colonialismo pelos efeitos na produção científica. O Sul, para ela, são relações de autoridade, exclusão e inclusão, hegemonia, parceria, apoio, apropriação entre instituições, intelectuais tanto na metrópole quanto na periferia. Não é o momento para fazer as críticas a tais posições. Muitas vezes nesta ânsia de procurar o que o Norte tem produzido pelo Sul, ignoram-se as contribuições de Aníbal Quijano para o processo moderno-colonial e de instauração de uma matriz teórica a partir de 1492, com a invenção, simultânea, da América e da Europa e, pois, da racialização de índios, negros e mouros no mesmo processo.

Interessante seria a criação de novas categorias não coloniais para descrever os processos e as teorias vigentes. Algo que Spinoza, nascido depois que Holanda deixou de ser colônia espanhola, faz com o conceito de Deus que, sendo único, acaba sendo uma nova visão completamente distinta da tradição judaica. Não é por acaso que suas discussões de natura naturans e natura naturanda tenham causado polêmica.

Talvez Spinoza fosse um pós-colonial avant la lettre que merecesse ser recuperado. Mais que isso: se a Teoria Crítica, na versão da Escola de Frankfurt, foi praticamente produzida por intelectuais judeus e considerando o quadro crescente dos fundamentalistas religiosos, não seria a hipótese de trabalhar os conhecimentos ignorados, silenciados e suprimidos por esta teoria, em especial Benjamin, que, partindo de um marxismo heterodoxo, também retrabalhado o tema da religião e do messianismo, tão difícil de ser aceito pela teoria crítica ainda hoje?

De toda forma, é interessante observar que a preocupação com o Sul não-imperial muitas vezes esquece as produções científicas do “Sul do Norte”. O Parti des Indigènes de la République, na França, é um exemplo de movimento teórico, político e epistemológico, ancorado nas lutas anticoloniais e de imigração, criticando não somente a racialização de islâmicos e negros, mas também a permanência de estruturas coloniais na metrópole. Para tanto, não se fundamentam nem em Marx, nem nas Luzes, menos ainda nos “valores da República”. Não é coincidência que deem tanto valor aos trabalhos de Angela Davis e de Malcolm X, este último negro e islâmico, defensor de uma luta transnacional por dignidade.

O mesmo pode ser dito pela invisibilização de marxistas negrxs do Caribe. Esta região não somente funda a colonialidade (Hispaniola é um dos lados da ilha que hoje alberga República Dominicana e Haiti), mas permanece como o espaço geográfico formado por 17 países e 11 colônias estrangeiras. O trabalho do grupo capitaneado pela Caribbean Philisophical Association merece ser destacado, no sentido de “creolizar” o cânone, utilizando Fanon, Glissant, Lamming, Césaire e outrxs, para repensar Hegel, Rousseu, etc. Talvez os inéditos de Fanon, recentemente publicados, possam abrir novos temas de abordagem. Na Ásia, há muitos anos, tanto Syed Alatas quanto Vineeta Sinha incluem, nas abordagens sociológicas, os aportes de Harriet Martineau, Rizal e Ibn Khaldun, mostrando que a sociologia não tem somente pais brancos “fundadores”- Marx, Weber e Durkheim.

Uma nova agenda de discussão de direitos humanos poderia ter em conta, a partir das discussões que estas teorias têm feito novos campos de pesquisa. Sugerem-se, aqui, alguns:

a) as discussões metodológicas não incluem, na prática, as questões de gênero e raça para os conhecimentos, as relações sujeito-objeto e continuam entendendo, na “prática”, o sujeito como branco, hetero e masculino. Não é por outro motivo a dificuldade, por parte da academia, de aceitar que negros estudem racismo, gays e lésbicas estudem questões lgbt, etc. O privilégio epistemológico branco, heterossexual e masculino nunca é posto em questão em outros campos de discussão.

b) assexualidades não normativas continuam vistas colonialmente na academia, dando-se pouca atenção em especial às formas de “trânsito” existentes tanto no tempo da colônia, no âmbito de Abya Yala, nem ainda hoje em dia, mesmo nas religiões de matriz africana. O trabalho de Horswell sobre a descolonização do sodomita é, neste ponto, um início de discussão necessária. O gênero e, pois, as sexualidades não normativas continuam a ser o grande “Sul” das ciências sociais.

c) a necessidade da discussão do que Mbembe chama de “políticas da viscerabilidade”: novas formas de resistência ligadas à reabilitação dos afetos, emoções, paixões. Os novos imaginários de luta buscam a “reabilitação do corpo” e não apenas a presença “no espaço público”. Não por outro motivo, como recorda Rita Segato, as novas formas de violência são comunicativas em relação aos corpos.

d) a proliferação das discussões sobre autogestão, democracia direito, apoio mútuo, assembleias, horizontalidade, nos últimos anos, ocorre simultaneamente à invisibilização das contribuições de anarquistas e libertárixs. O caso do 15-M é exemplar: a ascensão do Podemos se faz no mesmo momento em que se ignora que, tanto neste movimento, quanto na luta contra o franquismo, as posições libertárias e anarquistas tinham um substrato forte na Espanha. Que ausências esta sobre-presença da linha marxista ocasiona para as lutas contra o capitalismo, o sexismo e o racismo? Recorde-se o mesmo em relação à Bolívia: a ascensão indígena não pode ser vista separadamente da forte presença anarquista entre as lideranças, algo que já fora analisada no Taller de Historia Oral Andina, por Silvia Rivera Cusicanqui. Recorde-se que Emma Goldmann já discutia o tráfico de pessoas nos anos 1900, e Louise Michel, como bem destaca Antoní Aguilló, não somente participou da Comuna de Paris, mas questionou o patriarcado e a situação colonial. O anarquismo é ainda um Sul nas teorias críticas de direitos humanos.

e) como os corpos são construídos não somente como na lógica sexo-Gênero, mas também como humanos e não humanos e como isso é alterado com as novas tecnologias continua sendo um campo em aberto. Os trabalhos de Butler, em relação às distintas formas de vulnerabilidade apontam questões que, na Índia, já foram abordadas por Upendra Baxi.

f) como as novas oralidades alteram os conhecimentos científicos ainda não mereceu a devida atenção no campo de direitos humanos, ignorando-se conhecimentos de indígenas, afros e islâmicos como sendo orais.

g) como a discussão de direitos humanos ainda é associada com secularismo e libertação de mulheres.

h) como as discussões de direitos humanos necessitam descolonizar a concepção de religião e de secularismo, algo que vem sendo tematizado tanto pelas feministas islâmicas, quanto, no tema de pensar o secularismo como normatividade e forma disciplinar do Estado de regular a presença religiosa, por Talal Asad e Saba Mahmood. No Brasil, o secularismo continua, muitas vezes, sendo visto como separação entre Estado e religião (no caso, muito mais Igreja católica), ignorando que este modelo teórico não dá conta da forte presença de religiões de origem africana no país.

i) o esforço que Alatas e Sinha têm realizado mereceria atenção especial, no campo de direitos humanos, recuperando as teorias endógenas na América Latina. Não são poucos os aportes que o cânone deslegitimou ou ignorou nos últimos anos: Abdias do Nascimento, Lélia González, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos e, em parte, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra.

A discussão de direitos humanos precisa romper a “jaula de aço” que a tríade liberdade-igualdade-fraternidade, na realidade um avatar da bandeira da Revolução Francesa, deixou a colonialidade reprisada.


César Augusto Baldi. César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS), doutor em “Derechos Humanos y Desarrollo”, pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador dos livros “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004) e “Aprender desde o Sul” (ed. Forum, 2015). .


Imagem Ilustrativa do Post: World Map - Abstract Acrylic // Foto de: Nicolas Raymond // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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