Nosso «lado escuro»: entre genes, cérebro e ambiente (Parte 1)

30/10/2015

Por Atahualpa Fernandez e Atahualpa Fernandez Bisneto - 30/10/2015

“Precisamente el acento que se pone en el mandamiento «No matarás» nos da la certeza de que descendemos de un linaje infinitamente prolongado de asesinos que llevaban en la sangre el gusto de matar, como quizá lo llevemos todavía nosotros”.

S. Freud

Charles Darwin relegou aos seres humanos a um ramo mais do vasto reino animal. Em seu Caderno de notas Darwin nos deu uma de suas primeiras ideias sobre a natureza humana. Em referência ao ser humano, e uma vez assumida a ausência de Deus, Darwin escreveu: “Es un mamífero —su origen no queda indefinido— no es una deidad, su fin bajo la forma actual vendrá (o qué terriblemente engañados estamos) así que no es ninguna excepción. Posee algunos de los mismos instintos generales y sentimientos morales que los animales —que por otra parte no pueden razonar— pero el hombre tiene capacidad de razonamiento en exceso. En lugar de instintos definidos —esto es, un remplazo en la maquinaria mental— tan análogo a lo que vemos en la física, que no me pasma”. Como sinalou Darwin, nossa maquinaria mental nos faz diferentes: permite perguntar acerca de nós mesmos, do que é um ser humano; permite questionar o que somos, de onde viemos e a maneira em que chegamos a nossa atual natureza.

Uma das coisas que descobrimos é que os humanos possuem certos traços mentais únicos. A autorreflexão e os valores éticos consti­tuem uma parte essencial do que chamamos a condição humana. A evolução, estrutura e funcionamento do cérebro humano levou nossa espécie a ter consciência de si mesma e, ao mesmo tempo, a um sentido da justiça que nos faz estar dispostos, por exemplo, a controlar nossa agressividade e a castigar as ações injustas. Ademais disso, Darwin mostrou com sumo detalhe que há continuidade entre os seres humanos e os animais, não somente no relativo à anatomia e a fisiologia, senão também na vida mental. Hoje, somente os que habitam no “epicentro de la necedad que roe a la sociedad moderna“ (Flaubert)[1] são incapazes de admitir o paradigma darwiniano da animalidade.

Agora, ter boas razões para rechaçar a ideia de uma separação taxativa, um “abismo ontológico” entre o animal e o humano implica, entre outras coisas, que a violência humana também possui um profundo substrato biológico que arraiga em nossa evolução paralela com outras espécies de primatas. Por que é assim? Qual é o significado de nossa tendência, entre outras particularidades, a cometer atos violentos, a defender e compartir valores, a levar a cabo juízos de valor e avaliar a retitude de nossas ações? Somos maus por natureza ou é que ao ser humano não se pode caracterizar unicamente como “rousseauniano” ou como “hobbesiano”? Em que medida são diferentes dos comportamentos comparáveis de outros primates? Que mecanismos genéticos e cerebrais se correlacionam com o “instinto” ou a capacidade humana para atuar de forma agressiva? Pode a violência estar unida a um único gene, exclusivamente ao ambiente ou mais bem é produto da natureza e da cultura, donde colaboram e interagem os genes e o mundo exterior, sendo este último o que modela aos genes? Dado que não há uma distinção significativa entre biologia e tomada de decisões (porque são inseparáveis), tem algum sentido continuar perguntando “até que ponto foi a biologia e até que ponto foi o indivíduo”?  E já que estamos: Não é possível que ao pretender negar ou erradicar o lado escuro da natureza humana corremos o risco de destruir a ideia de uma possível distinção entre o bem e o mal, que se acha na base mesma da civilização?

Trataremos de responder algumas destas perguntas. 

Esclarecendo conceitos: violência e adaptação

O estudo da violência e a agressão entre os seres humanos, e inclusive entre os primates não humanos, é algo mais que uma querela científica. Com frequência a discussão põe em jogo visões morais e concepções ideológicas em conflito desde há vários séculos. Poucas áreas da investigação ilustram melhor o que Daniel Kahneman chama “o mito da ciência perfeita”.

Por quê? Pois porque a violência ou a agressão não são um único traço ou comportamento que se possa descrever facilmente, senão que constituem um conjunto de comportamentos que têm um rango dinâmico e expressões complexas. Daí que para qualquer um que pretenda falar de violência e adaptação, como é o caso, o mínimo que cabe exigir a quem toma a palavra é que saiba tratar do tema de uma forma o bastante precisa no que se refere a estes dois conceitos.

No que concerne à adaptação não parece existir demasiados problemas. Trata-se de um termo técnico referido à maneira como se fixam, para cada determinado locus da bagagem genética, diferentes alelos dentro de uma população. Os fenômenos das mutações e recombinações primeiro e a seleção natural depois levam à conservação daqueles alelos que permitem a seus portadores procriar mais em virtude das condições do ecossistema.

Mas, o que é a violência? Frente ao caráter técnico de adaptação, ao falar de violência o estamos fazendo de uma maneira coloquial. Usamos esse termo para descrever e valorar certos comportamentos que se consideram reprováveis. Se os professores nos dizem que nosso filho tem uma conduta violenta no colégio, o fazem dando por certo que não deveríamos cruzar-nos de braços ao respeito.

Mesclar conceitos técnicos e coloquiais não é boa ideia. Poderia levar-nos a realizar perguntas com pouco sentido, transladando a carga valorativa que se enfrenta com a violência ao terreno dos processos adaptativos. Ponhamos um exemplo: a seleção natural estabelece distintos níveis dentro da cadeia trófica, de tal maneira que os mais altos estão ocupados por predadores. Alimentam-se estes vigiando, acercando e matando a suas presas.

Pois bem, são “violentos” os predadores? Cabe qualificar assim a conduta de uma leoa quando lhe rompe o pescoço a uma gazela antes de devorá-la? Talvez não, certamente. Mas este exemplo é de todo alheio ao que fazem as crianças nos colégios. Outro mais próximo aparece ao considerar que muitos animais de vida social levam a cabo condutas dentro do grupo que recordam bastante as brigas nos pátios de recreio. Não se trata já de alimentar-se, senão de estabelecer hierarquias, e a forma comum de fazê-lo é mediante enfrentamentos violentos.

O caráter adaptativo do que, para apartar-se do terreno das expressões coloquiais, haveria de chamar “violência biológica” —ainda que o termo técnico correto é o de “agressividade”— foi analisado nos mesmos alvores da etologia pelo prêmio Nobel de medicina Konrad Lorenz através de um livro publicado em 1963, Das sogenannte bösse, que fazia referência de maneira particular ao comportamento humano. Neste livro dava por demonstrado que nossa evolução por seleção natural nos há feito agressivos —como a todos os demais primatas— mas em umas circunstâncias que deveriam preocupar aos filósofos, sociólogos, politólogos, juristas e pedagogos, para não referir-nos aos médicos, aos agentes de polícia e os políticos.

As  características de uma vida social muito intensa e presidida, ademais, pela evolução cultural acelerada, perturbaram ou transformaram o que a seleção natural haveria resolvido por si só — no dizer de Lorenz—, tanto com relação à conduta agressiva necessária para ordenar a vida em grupo como dos mecanismos inibidores encarregados de limitar seus efeitos de risco. Ao alterar-se a ordem - digamos - natural da agressividade aparece um fenômeno novo que conduz a comportamentos perigosos para o grupo. A “violência biológica” se volta, assim, “violência ética”. 

A violência de interesse ético

Somos capazes de entender o sentido de tal ameaça ao nosso bem-estar social? Onde começa a violência e quem são os violentos?[2] Poderemos explicá-la mais além dos modelos de sentido comum, ao que os anglo-saxões chamam de folk psychology, para decidir em que medida a “violência ética” — a de nossos filhos repreendidos no colégio — depende da “violência biológica” — a que seus genes promovem como consequência da história adaptativa da humanidade? Quer dizer: Está a conduta antissocial também nos genes?

A cadeia explicativa parece em princípio fácil de estabelecer. As pressões adaptativas levaram, durante a filogênese humana, até condutas muito complexas e faculdades cognitivas de ordem social que aparecem graças aos cérebros grandes e capazes, necessários para levá-las a cabo. O binômio violência/agressividade pode entender-se, pois, como um recurso adaptativo essencial para estabelecer as hierarquias, limites territoriais e possessões que nossa vida em comum exige, um recurso cuja chave reside em determinadas conexões cerebrais. Frans de Waal, por exemplo, já advertiu acerca do erro que supõe associar somente consequências negativas a uma agressividade que a seleção natural fixou de forma muito extensa nos primatas.

Mas também caberia pensar que, em alguns casos ao menos, as condutas que são violentas em excesso poderiam dever-se a certas anomalias aparecidas no transcurso da aparição filogenética de nossos cérebros. De tal forma, se consideramos o tipo de cérebro do que nos dotou a evolução por seleção natural talvez demos com as respostas que buscamos. Dito de outro modo, se fôssemos capazes de identificar as conexões “corretas” que regulam os comportamentos morais poderíamos estar em condições —teóricas ao menos— de detectar as anomalias e ver em que medida são as responsáveis pela violência indesejável. 

Aparição dos grandes cérebros e o livre-arbítrio

Talvez seja razoável intercalar um parêntese antes de seguir em nossa busca de respostas. Como estabelece a hipótese do tecido custoso enunciada pela antropóloga Leslie Aiello, o incremento do tecido dos neurônios que formam o cérebro é uma operação evolutiva nada trivial. Supõe um alto custo em termos de inversão de recursos biológicos. Não é possível, pois, uma expansão azarosa, caprichosa ou arbitrária do cérebro: qualquer aumento que se produza deve estar justificado porque proporciona vantagens adaptativas muito notórias.

Quais poderiam ser essas vantagens quando falamos de seres com tantas capacidades cognitivas como os hominídeos (símios e humanos) é uma questão a que respondeu Nicholas Humphrey já há quase trinta anos: nosso cérebro (e, por certo, o dos chimpanzés) evolucionou para gerar e entender as regras sociais. Chegar-se-ia assim à chamada “inteligência maquiavélica” que permite, entre outras coisas, levar a cabo muito sutil e sofisticadas atribuições de estados mentais aos demais membros do grupo, na linha sugerida por Daniel Dennett ao falar dos sistemas intencionais.

O esquema de explicação estabelece, pois, que o cérebro foi evoluindo, dentro da linhagem comum com os demais hominídeos primeiro e em solitário mais tarde, até chegar, há uns duzentos mil anos, o nosso córtex cerebral. Neste transcurso se estabeleceram o que Noam Chomsky chama “órgãos” da mente: o da linguagem, o da capacidade numérica, etc...etc. Há um “órgão da moral” que pudesse converter-se por culpa das anomalias em um “órgão da violência”?

A resposta parece ser afirmativa. As evidências de todos os tipos de estudos neurobiológicos sugerem que existe uma rede “neuromoral” no cérebro: um “órgão” ou “hardware” dedicado à moralidade. Esta rede, seguindo a lei de Murphy, pode avariar-se e dar lugar a umas respostas emocionais atenuadas ante a possibilidade de fazer dano aos demais e realizar condutas antissociais, agressivas ou delitivas. Dito de outro modo, se a moralidade é inata no ser humano, se existe um “sentido moral”, deve haver uns mecanismos cerebrais, um assento no cérebro, para essa moralidade inata.

Por isso que não se pode julgar no mesmo plano a conduta de alguém que tem seu cérebro moral intacto com a de alguém com transtornos cerebrais que tem seu cérebro moral danificado. A razão é simples: não é o mesmo o comportamento de uma pessoa com o sistema moral (pré-frontal) ileso e uma que não o tem (nos referimos, por exemplo, a certos quadros clínicos e a estudos de fMRI em sujeitos normais, em psicopatas, em psicopatias adquiridas por lesões cerebrais, e na demência fronto-temporal). As pessoas com lesões na rede “neuromoral” têm a bússola moral rota, uma incapacidade para controlar seus impulsos e demais déficits morais. Para ser considerado responsável o indivíduo tem que ter a capacidade de poder atuar de outra maneira; e quando o cérebro moral está lesionado, atuar de modo alternativo não é possível.

Dito seja incidentalmente e de passagem que inclusive quando não sofremos nenhuma lesão cerebral ou transtorno mental tampouco temos a (plena) capacidade de eleger atuar de outra maneira. Sem pretender ingressar no eterno dilema do livre-arbítrio, pensemos no exemplo da psicopatia. Cada vez mais os autores estão sugerindo que os psicopatas não são livres e que não podem atuar de outra maneira (e propõem alternativas aos fundamentos morais e legais que utilizamos para condenar-lhes e castigar-lhes). A verdade é que nem os psicopatas nem os não-psicopatas têm livre-arbítrio porque nenhum deles pode eleger.

Livre-arbítrio é a liberdade para eleger outra coisa e isso não o podemos fazer nem psicopatas nem não-psicopatas. A um psicopata não se lhe pode pedir que responda ao castigo ou que mostre as condutas morais próprias de um cérebro moral, porque não o tem. Da mesma forma, a uma pessoa com cérebro moral normal tampouco se lhe pode pedir que tenha as condutas de um psicopata. Eu não posso sair à rua e violar a primeira mulher que desperte minha atenção, roubar o relógio de um indivíduo simplesmente porque me encaprichei com ele (e de passagem dar-lhe um tiro se mostra resistência) ou roubar um banco [estamos caricaturizando um pouco; mas, se o amável leitor (a) suspeita que os exemplos utilizados tratam de situações extremadamente adornadas ou extravagantes, intente, em um domingo qualquer, atuar como um verdadeiro psicopata por algum shopping de sua cidade]. Simplemente eu faço o que está em minha natureza fazer e um psicopata faz o que está na sua, naturezas que nem ele nem eu elegemos. Ter livre-arbítrio seria poder tomar o outro caminho, eleger a outra opção; ter as duas opções (e poder efetivamente levar a cabo a elegida), não ter somente uma.

Em resumo, a conduta do ser humano, para bem ou para o mal, evolucionou da mesma maneira que a do resto dos animais: “tendremos más algoritmos, más lineas de código de programación si se quiere, pero no dejamos de ser criaturas programadas por la selección natural”. O próprio autocontrole (a capacidade de esperar, de inibir determinadas condutas) de que tanto presumimos e nos orgulhamos tampouco nos situa à margem da natureza. De fato, se podemos exercer esse autocontrole é porque temos umas fibras nervosas que vão desde o córtex cerebral ao sistema límbico e que cumprem uma função inibidora de nossos instintos básicos (e o controle que temos é só parcial). “Y esas fibras las ha puesto ahí la selección natural y lo ha hecho por una buena razón, porque en animales sociales como los humanos inhibir esos instintos en situaciones grupales hace que pasen más copias de genes a las generaciones futuras” (P. Malo).

Assim as coisas, a ideia de livre-arbítrio fundada na capacidade de autocontrole ou controle volitivo (embora selecionada pela seleção natural porque é adaptativa) não somente não se salta as leis da evolução (e nem provém de Céu), senão que, apesar de todas as nossas esperanças e intuições acerca da liberdade de eleição e decisão, na atualidade não existe prova alguma, não há nenhum argumento, que demonstre sua existência de maneira convincente (D. Eagleman)[3]. O que nos leva a inferir que a forma como enfocamos a valoração das questões do livre-arbítrio, da culpabilidade, da responsabilidade e o funcionamento do sistema legal a este nível não é compatível com os descobrimentos da boa neurociência, isto é, de que já não é possível sustentar-se à vista das provas existentes.

Cedo ou tarde terá que cambiar para dar lugar a este tipo de “sorte moral” (B. Williams & T. Nagel) que provoca alterações em funções que afetam a responsabilidade desses indivíduos. O que não se pode mais tolerar são decisões cegas às evidências, decisões judiciais (e legislativas) baseadas no que as estamos fundamentando atualmente, em que determinados sujeitos (por exemplo, os psicopatas) são livres para atuar de outro modo ou de que essa espécie de “suerte moral, más allá de la voluntad” é claramente absurda.

Quer dizer, decisões tomadas por juízes que atuam como zelosos servidores de uma legalidade sem alma, devotos da necedade e da submissão normativa descerebrada, convencidos da infalibilidade do que consideram legal ou ilegal (lícito ou ilícito, “normal” ou “anormal”[4]), que cumprem suas tarefas sem questionar nunca o sentido de seus atos, e que idolatram a autoridade e o exibicionismo moral até o ponto de identificar-se com a lei, os valores e os princípios para pervertê-los melhor.  E todos sabemos que não há fracasso maior na vida que não conseguir evitar ver-nos confrontados com nossa própria estupidez.


Notas e Referências:

[1] Nota bene: Flaubert define a necedade como o mal absoluto (um mal bestial), o pecado capital do advento da democracia burguesa, e por conseguinte o inimigo irredutível. Foi o primeiro em convertê-la em uma perversão ao identificá-la com o poder que sobre o povo exercem as ideias recebidas, a opinião pública, os ideais da falsa ciência e das crenças religiosas (E. Roudinesco). J. Lacan recuperará esta tese em uma fórmula inolvidável: “El psicoanálisis lo cura todo, menos la idiotez”.

[2] Virtous Violence é um livro de Alan Page Fiske e Tage Shakti Rai em que expõem uma tese que a muitos pode parecer insólita: os autores mostram que a gente, a maioria das vezes, é violenta porque sente genuinamente que a violência é o correto, o que devem fazer (de fato, não são poucos os autores que nos vêm avisando já faz tempo - como Roy Baumeister - de que é a gente boa a que comete as maiores barbaridades: a gente normalmente tem razões para utilizar a violência, “es decir, la violencia suele ser instrumental; rara vez la violencia es gratuita”). Segundo os perpetradores da violência, esta é moralmente necessária e é a maneira correta de regular umas relações sociais de acordo com  o que mandam os preceitos e normas culturais. Detrás da violência haveria ideais culturais que a motivam e/ou “circunstancias de las que resulta imposible o que casi les impiden saber, sentir o intuir que realizan actos de maldad o que están haciendo el mal” (H. Arendt). Fiske e Rai argumentam que a maior parte da violência é motivada por razões morais: a moralidade trata de regular as relações sociais e a violência é uma forma de regular essas relações. Para os efeitos do livro, os autores definem a violência como ações em que o ator considera que infligir dor, sofrimento, medo, feridas ou a morte é um meio necessário e desejável para os fins que se buscam. A violência é virtuosa quando o sujeito, seu grupo de referência ou a audiência consideram que o ato é o que há que fazer, ainda que seja difícil e duro de levá-lo a cabo. Por exemplo, se um pai  castiga a um filho por não fazer o que deve, ou por alguma má ação que tenha cometido, o pai crê que está fazendo o que deve fazer segundo suas normas morais. Por fim, Fiske e Rai consideram que para reduzir a violência o que devemos conseguir é convertê-la em imoral.

[3] Nada obstante, que não sejam responsáveis não quer dizer, evidentemente, que não se lhes possa aplicar nenhum castigo. As visões teóricas do castigo legal se agrupam principalmente em dois tipos de teorias: as retributivas e as utilitaristas. A visão retributiva mira ao passado e se centra no agente do ato e em sua relação com esse ato. Para castigar desde o ponto vista retributivo o indivíduo tem que merecê-lo e, por essa razão, atribuir-lhe liberdade e possibilidade de atuar de outra maneira. Este princípio se fundamenta na ideia intuitiva de que é “injusto” que uma pessoa seja julgada ou castigada pelo que não depende dela, pelo que não está baixo seu controle (“princípio de controle”). Mas a visão utilitarista mira ao futuro, às consequências para a sociedade e aos indivíduos do castigo, sem necessidade de que o castigo seja merecido. Desde uma ótica utilitarista, por exemplo, é possível castigar a um psicopata pelo perigo que supõe para a sociedade. Como explica Chris Frith, o sentimento de tomar decisões livres é uma parte fundamental de nossa experiência consciente. Sejamos livres ou não, o importante é que nos experimentamos como agentes livres; também experimentamos as outras pessoas como agentes livres. E esta experiência tem uma função muito importante ou, no pior dos casos, é uma ilusão útil. Tanto é assim que o sistema legal supõe que todos somos igual de capazes de controlar nossos impulsos e de tomar decisões livres. A justiça, o Estado de direito e a sociedade em seu conjunto nos tempos modernos se erigiram sobre o suposto do livre-arbítrio e a responsabilidade das pessoas sobre atos que podem ser premiados ou castigados. É um mito admirável em espírito (necessário, inclusive), mas simplesmente não é certo: não há distinção entre a biologia e a pessoa com sua capacidade de tomar decisões, são a mesma coisa; se a biologia (ou a química cerebral) cambia, cambiam nossos desejos, impulsos, condutas e a capacidade de controlá-los e de tomar decisões livres.

[4] Recordemos que “anormal” é simplesmente um conceito estatístico; ou seja, a maneira não normal de comportar-se. Nas palavras de David Eagleman: “El hecho de que casi todo el mundo se comporte de cierta manera no nos dice nada acerca de si la acción es correcta en un sentido moral más amplio. Es solo una afirmación acerca de las leyes, costumbres y convenciones de un grupo de gente en un momento concreto, exactamente las mismas imprecisas restricciones con las que siempre se define el delito”. Neste sentido o empregamos aqui.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Atahualpa Fernandez BisnetoAtahualpa Fernandez Bisneto é Advogado (OAB/SP); Doutor (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales (Derecho)/ Universitat de les Illes Balears/UIB/España; Mestre (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears/UIB/España; Especialista Direito Penal e Processo Penal/Faculdade de Direito/Fundação Armando Álvares Penteado–FAAP/SP/Brasil; Postdoctoral Research Scholar/Dipartimento di Scienze Penalistiche/Facoltá di Giurisprudenza/Universitá Degli Studi di Parma/Italia; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Genesis // Foto de: jeronimo sanz // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jeronimooo/20905465756

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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