No rastro da soberania policial

24/02/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 24/02/2015

Parece irretorquível que, dentre as possibilidades múltiplas de trato com o poder punitivo, há um espaço privilegiado que se entrevê na leitura destas intersecções, local onde ex-surge um ponto cego da soberania política: a polícia.

Para além de um imaginário coletivo capturado, não de hoje, pelo solipsismo de uma violência desigual que, de forma inevitável ao que parece alguns grupos começaram literalmente a respirar, por/pela exceção (falamos diretamente de grupos sociais pouco afeitos a serem provocados mais diretamente por um contexto de violência, fartamente vivido pelo contingente vulnerável de nossas localizações periféricas)[1] – ao menos que sirva oportuna e perversamente a atual condição de violência (naturalizada do cotidiano daqueles restos da história e que choca atualmente por sua presença visível a alguns outros) como pretexto para minimizar o injustificável retardo, nem que seja sob a inspiração de um devir minoritário, para romper o tom da discussão cínica e enfadonha que não raro hoje temos sobre a soberania, e ingressar nas lições sobre as zonas des-localizáveis infinitas de irredutível indistinção entre a vida nua e espaço político.[2]

Quando a íntima solidariedade entre democracia e totalitarismo toma corpo e a soberania demonstra sua forma de relação por excelência que é a da exceção, violência e direito num vínculo inextrincável, como viu Benjamin[3] (prolongado por Agamben), em que o ordenamento jurídico suspende a regra – “aplicar-se desaplicando-se” – dando lugar à exceção, diante desta promíscua e original liminariedade definidora da estrutura jurídico-política fundamental, qualquer crítica radical responsável sobre este abandono – da vida ban(d)ida em si – não pode mais deixar de pôr em questão este enigma.

Se o campo exposto por vidas matáveis, naturalizado pelo cotidiano genocídio dos refugos da história dos excluídos neste instante tenha se aproximado e se tornado sensivelmente ostensivo, talvez algum sentido de negação daí emerge. A concretude das deploráveis e ilegais “prisões por averiguações” que se abateram, por exemplo, escancaradamente nas manifestações de junho de 2013 – apenas ostentando o que se dá de maneira banal rotineiramente  – , ainda que guardem algum fundo comum, nada mais são do que o singelo e filtrado retrato dos “assassinatos sem averiguações” da multidão de “Amarildos” – ao menos este conseguimos nomear, e os outros infames? – que nos assombram, como se tivéssemos que sentir os grilhões, os rasgos ou sermos arrastados literalmente por alguma “Cláudia”, não mais somente destinados a assistir complacentes a uma história que agora convida a ser escrita a contrapelo.

A despeito das nuances, da indeterminação relativa dos embates coletivos que se experiencia, dos fluxos, das trajetórias, das fragilidades e possibilidades múltiplas destes movimentos, há um não que ecoa, apesar das tentativas de calá-lo, advindas das tentativas de encerramento vital que as prementes demandas consensuais por pautas claras e pretensões políticas objetivas impõem a cada oportunidade de protesto. Como escreveu Camus[4], em seu Homem Revoltado, nestas posturas há uma afirmação, um sim desde o primeiro momento, algo que, sobretudo, não se renuncia, mas se recusa.

A insuportabilidade candente de uma condição policial é uma delas. Pulsão esta de um caldo totalitário que no Brasil tem largo lastro: por um lado, representa a militarização das tarefas de policiamento ostensivo pondo as PM´s como força auxiliar e de reserva do Exército, de acordo com o texto constitucional de 88 (art. 144 §6º[5], herança mantida e aprimorada por tempos ditatoriais), ou seja, uma estrutura militar fazendo papel de polícia, comum em período de guerras ou de regimes autoritários[6]; por outro viés, simétrico e correlato a este escárnio, existe um não menor autoritarismo impregnado nas estruturas (nem tão) subterrâneas das práticas difusas de alguma polícia civil (deveria haver alguma polícia que não fosse a rigor civil?) responsável pela apuração das infrações penais na função de polícia judiciária. Sem que fosse preciso lembrar as fartas práticas de tortura e extermínio reconhecidas internacionalmente,[7] pergunta-se se realmente deveríamos ainda nos espantar que, por exemplo, o Estatuto dos Servidores da Polícia Civil do Rio Grande do Sul[8] (apenas para ficar nesta unidade da federação), até hoje, consagre “espancar, torturar ou maltratar preso ou detido sobre sua guarda ou usar violência desnecessária no exercício da função policial” como transgressão média ao passo que “emitir conceitos desfavoráveis a superiores hierárquicos” está capitulada como transgressão grave? Ou ademais precisamos ressaltar os procedimentos investigativos em vigor estruturalmente no processo penal brasileiro desde o séc. XIX como o famigerado inquérito policial?

Deve-se ter em consideração, neste ponto, que a repressão policial militarizada é ancestral no Brasil, longe de ter sido inaugurada pela ditadura civil militar instalada em 1964. O grupo de assalto que tomou o poder no país nada fez senão focalizar e alçar a uma nova escala a maquinaria de combate, agora adequada ao momento histórico de guerra contra o “inimigo interno”. Não haveria necessidade de rememorar o ano de 1808, em particular o alvará de 10 de maio, que criou a “Intendência Geral da Polícia”, responsável por acomodar “pacificamente” a chegada do então príncipe regente e o seu séquito ao Brasil, ou seja, auxiliar a nobre missão civilizatória de manter a ordem pública com a chegada da família real, nem tampouco resgatar a organização na mesma época da “Guarda Real da Polícia da Corte” (eternizadas a um preço de certa filtragem aos interesses civilizatórios europeus pelas pranchas do artista alemão Johann Moritz Rugendas) com a sua sintomática chibata, a qual dava início à ação policial (nada muito diverso do atual e conhecido “pé-na-porta”), para perceber o arbítrio supremo e o militarismo impregnado desde a instalação das forças policiais em terras brasileiras. A postura violenta da inquisição policial já não era novidade nem mesmo aos tempos da sua instituição, num século XIX de crescente diversidade social e étnica – vale lembrar as contundentes críticas aos excessos feitas, dentre outros, por Hipólito José da Costa. A ação repressiva era a marca voltada para o controle e manutenção da segurança do Estado, traço perene que ultrapassou o império e resistiu às mudanças republicanas de forma incólume. O que o regime ditatorial militar traz com a sua doutrina de segurança nacional[9] é o ajustamento do azimute, do calibre (para usar o comum da linguagem bélica), o aprofundamento do modelo autoritário da instituição policial, ou seja, a disposição de todo o aparato estatal de repressão à persecução dos inimigos do regime, em que o desaquartelamento das PM´s e a tortura ostensiva nas delegacias – prática já rotineira há época, diga-se de passagem, porém que tomou ares mais visíveis à sociedade, pois, vez mais, começara a atingir em especial a classe média – tais fatores são “apenas” um breve delineamento da prioridade dada à segurança pública no período. Não obstante, em nada isto retira ou atenua do aparato policial ali montado na ditadura alguma responsabilidade sobre os horrores daí advindos, nem o necessário peso da reflexão acerca da desmilitarização das polícias hoje em pauta de debate, exatamente para que na efervescência de um caldo totalitário que permanece a pulsar cotidianamente, particularmente nas práticas policiais, aqueles restolhos do “progresso histórico” não restem emudecidos.

Assim, percebe-se que tal estado obsceno da soberania política, o qual a polícia opera e se encarrega de testemunhar com a maior clareza a zona de indiferenciação entre violência e direito, não pode senão comportar em si, a seu turno, a tradição de um modelo de combate ao inimigo, potencializada pela contínua viabilização da guerra e do extermínio de vulnerabilizados politicamente determinados. Portanto, a exceção, inclusiva da vida através da sua própria suspensão, é transparecida pelo traço que a decisão de uma soberana polícia apenas desnuda, e que atualmente apenas demonstra o quanto espaços como estes são re-territorializáveis, re-personificados e re-atualizáveis a qualquer momento e em qualquer lugar.

A polícia, a sua maneira, realiza o trabalho soberano obsceno conduzido pela política, o serviço sujo que não assumimos. Criando perenes zonas de indiferenciação, ademais, a um nível óbvio, começamos a ser confrontados com uma conclusão radical: de uma forma mais elementar, todos somos “excluídos”, capturados da exceção soberana, no sentido da ex-posição inexorável de todos aos vínculos entre direito e violência[10] – para além da coação direta (i)limitada respaldada juridicamente, onde o espaço público democrático é tornado uma máscara da sua decisão. No instante em que a figura do homo sacer parece ausente da cultura contemporânea como tal, não temos senão que concordar com Pelbart de que isso só é possível porque algo da sua sacralidade (matável e insacrificável) se deslocou, mais profunda, vasta e obscuramente para espaços indiferenciados de neutralização.[11] – Somos todos homines sacri afinal.

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Sem título-23

Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.

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Referências:

[1] Vide as chamadas “jornadas de junho” de 2013 em que a pauta da violência policial tomou lugar privilegiado. Ademais, cf. MADARASZ, Norma; SOUZA, Ricardo Timm de. Lógicas de Transformação: críticas da democracia. Porto Alegre: Editora Fi, 2013; e MARICATO, Ermínia (et. al.). Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Carta Maior/Boitempo, 2013.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16.

[3] Doravante, as referências ao texto benjaminiano são retiradas da seleção realizada por Willi Bolle na obra: BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência – Crítica do Poder”. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie (escritos escolhidos). Seleção e apresentação de Willi Bolle. Tradução de Celeste de Sousa et. al.. São Paulo: Cultrix/Editora da USP, 1986.

[4] Cf. CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2011.

[5] Vide o pioneiro e já clássico estudo de CERQUEIRA, Nazareth. “Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre segurança pública”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 6, nº 22, 1998, pp. 139-182.

[6] ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que Resta da Ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.

[7] ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2012 – O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Londres, 2012, pp. 109-112. Disponível em http://files.amnesty.org/air12/air_2012_full_pt-br.pdf

[8] Disponível em: http://arquivonoticias.ssp.rs.gov.br/edtlegis/1108057903Estatuto_servidoresPC.pdf

[9] Sobre o tema, para entender a ideologia de segurança nacional como elo de um esquema internacional de suporte estratégico da Guerra Fria, planejada a partir de centros de comando do mundo capitalista, imprescindível a análise, principalmente com relação ao Brasil, de COMBLIN, Pe. Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Tradução de Veiga Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, pp. 151-164.

[10] DERRIDA, Jacques. “Force de Loi: “Fondement Mystique de l´Autorité”. In: Cardozo Law Review. Translated by Mary Quaintance. New York. Vol. 11 (July/Aug. 1990), Numbers 5-6 , pp. 919-1045

[11] PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 62.

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