No que pensar quando ouvimos a expressão democracia administrativa?  

22/10/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Aviso aos navegantes. As linhas abaixo dedicaram energia à reflexão de formas institucionais, utilizando, para não perder a prática, ferramentas que buscam espremer – mesmo que um pouco – a análise dogmática. Vamos lá. De acordo com Robertônio Santos Pessoa[1] (2021), a Democracia Administrativa transcende as ferramentas de participação direta constitucionalmente garantidas aos cidadãos e, eventualmente, às pessoas radicadas em determinado Estado-nacional. Em verdade, o radical que movimenta a ideia de Democracia Administrativa põe em questão a legitimidade das ações estatais subjugadas ou reduzidas ao conceito de democracia representativa, reivindicando que a participação da sociedade civil na reprodução do Estado seja cotidiana, ou seja, supere a sazonalidade eleitoral e a pontualidade consultiva. Em síntese: nenhum sistema que dilua as desigualdades sociais, raciais, políticas e de gênero na figura da igualdade perante a lei pode ser qualificado como democrático, uma vez que a restrição da democracia à figura da representação aparece como desdobramento da igualdade formal.    

Importante considerar, no entanto, que a forma político-econômica adotada pelo Estado cambia de acordo com as relações sociais experimentadas no interior da sociedade civil e entre a sociedade civil e o próprio Estado, constituindo-se, ainda, a partir das relações travadas entre os Estados-nacionais na divisão internacional do trabalho. Pode-se dizer, em outras palavras, que o poder popular que justifica e institui regras de limitação ao monopólio da força exercido pelo Estado encontra expressão heterogênea em cada Estado-nacional, impondo, por exemplo, diferenças entre as formas de expressão da democracia brasileira e as formas de expressão da democracia em Estados-nacionais centrais.  

Ainda com lastro no artigo publicado por Santos (2021), a análise das relações entre o Estado e os indivíduos e instituições que constituem a sociedade civil pode ser desenvolvida com base na concepção tridimensional do direito administrativo, compreendendo o referido campo do direito a partir da dimensão legal, gerencial e política. Aqui é preciso fazer uma breve ressalva.

Ao contrário dos Estados Unidos da América e dos países da Europa Ocidental que constituíram Estados de Bem-estar Social a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, a contar de 1945, é paulatinamente constrangido a abandonar o projeto de nacional-desenvolvimento autônomo que pôde colocar em prática a contar da crise mundial de 1929 (RAMOS, 1995). Como resultado, a expansão do mercado interno de bens duráveis é amplamente revertida no Brasil a partir de 1964 (MARINI, 2017), restringindo, através da modernização sem mudança (MOURA, 2020), o acesso a serviços públicos essenciais à parcela formal dos trabalhadores urbanos.

O que precisa ser levado em conta dentro da concepção tridimensional do direito administrativo é que o Brasil constituiu o arranjo político-institucional – jurídico – que deu ensejo ao Estado de Bem-Estar Social à brasileira a partir da Constituição de 1988, ou seja, o Brasil passa a contar com a possibilidade de universalizar algumas prestações sociais no interior da conjuntura que determinou o início do desmonte dos modelos de Bem-Estar Social instituídos nos países centrais do capitalismo.

Mas, por que isso é relevante? Explica-se: o aumento da limitação das ações do Estado à Lei, isto é, a materialização do princípio da legalidade e do princípio da publicidade que inexoravelmente o acompanha, reemerge, após o período empresarial-militar, com a Constituição de 1988, encontrando companhia dos artigos 1º, 173, 174 e 175 CF. Os referidos comandos constitucionais determinam, respectivamente, que:

(1) a República Federativa do Brasil é constituída sob a forma política Estado Democrático de Direito, sendo que todo poder emana do povo que o exercerá por meio de representantes eleitos ou diretamente na forma determinada pela Constituição;

(2) que a atuação direta do Estado na atividade econômica está condicionada aos imperativos da segurança nacional[2] ou ao relevante interesse coletivo;

(3) que o Estado atuará como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as atividades de fiscalização, incentivo e planejamento; e

(4) que compete ao Poder Público, diretamente ou por meio de concessões ou permissões, a prestação de Serviços Públicos.

Infere-se, a partir dos quatro comandos constitucionais referenciados acima, a presença simultânea das três dimensões do direito administrativo, podendo-se concluir, principalmente por meio do artigo 1º da Constituição Federal, que a Democracia Administrativa é muito mais do que um conceito jusfilosófico, apresentando-se como verdadeiro princípio norteador do direito administrativo constitucional. Relevante destacar que o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal não restringe a democracia brasileira à representação, instituindo como fundamento da República a participação direta do povo na vida política das instituições que constituem o Estado brasileiro. Não é demais lembrar que o artigo 5º, § 2º, da CF, abre o rol de direitos e garantias fundamentais, permitindo, a partir de leitura sistemática do texto constitucional, que não apenas os cidadãos brasileiros, mas, também, os indivíduos radicados no Brasil sejam titulares do direito fundamental à participação política substantiva, isto é, participação política que transcenda a mera formalidade.

Pois bem, na medida em que as três dimensões do direito administrativo são indissociáveis entre si, cabe registrar que o esgarçamento da economia nacional realizada no período da globalização dos mercados impôs severa mudança na relação entre o princípio da legalidade e o ato administrativo. Para ilustrar a questão, utiliza-se, novamente, o artigo 175 da Constituição Federal como exemplo. Basicamente, a concessão de serviços públicos vinculados à infraestrutura produz apetite em sociedades empresariais estrangeiras de grande porte, exigindo, em virtude da velocidade das relações econômicas, Leis em Sentido Estrito habilitadas a construir contornos ou regras gerais que devem ser preenchidas pela Administração Pública ou, até mesmo, por sociedades empresariais que desempenham serviços públicos a partir de concessão ou permissão.

No contexto, a relação entre a Lei e a ação administrativa ganha maior espaço de discricionariedade, evidenciando, por consequência, a dimensão política do agir administrativo. É preciso compreender que a divisão cartesiana entre entidades políticas e entidades administrativas não possui limites precisos, permitindo, no plano da realidade concreta, que pessoas jurídicas que integram a administração pública indireta tomem decisões políticas camufladas por meio de justificações técnicas. Quando, por exemplo, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) resolve isentar petroleiras das multas impostas pelo descumprimento das cláusulas de conteúdo local aplicadas aos contratos administrativos firmados com a União há evidente decisão política emitida por entidade administrativa, decisão que reflete na vida da população brasileira e não é acompanhada de discussão que envolva a participação de sindicatos trabalhistas, organizações de base e universidades, carecendo, portanto, de legitimidade. A eficiência técnica, enquanto expressão da dimensão gerencial da administração pública, não encontra relação com o princípio e com o direito fundamental à participação quando utilizada para camuflar a tomada de decisões políticas, afastando a população do processo consultivo e decisório sob o argumento de que o tema analisado não possui dimensão política, devendo, como diria um grande nacional-desenvolvimentista[3], ser reservado aos Phd’s.  

Frisa-se que o aumento da discricionariedade nas escolhas administrativas atrai maior interlocução entre o Estado e sociedades empresariais que muitas vezes possuem mais poder político do que as instituições que compõem o próprio Estado, justificando a adoção de esforço que materialize a participação do povo nas regulações e decisões da Administração Pública. Sem a participação popular as decisões tomadas pela Administração Pública carecem de legitimidade, expressando, muitas vezes, interesses estranhos aos fundamentos e o objetivos da República. É exatamente aqui, aliás, que os atos administrativos podem estar acompanhados da legalidade e distantes da moralidade, ou seja, embora a decisão discricionária possa ter sido tomada dentro dos preceitos da legalidade dogmático-formais, o ato administrativo que contraria os fundamentos e objetivos da República aponta para vício de finalidade, principalmente quando prejudica as bases da população e não convoca ao exercício de quaisquer formas de participação direta constitucionalmente garantidas (art. 1º e, no mínimo, art. 37º, § 3º, da CF).

Um bom exemplo da inobservância do princípio da participação popular na vida política do Estado reside na promulgação da Emenda à Constituição nº 77/2019 do Estado do Rio Grande do Sul. A inovação constitucional retirou a exigência do plebiscito para realização da transferência do controle acionário ou da alienação de duas empresas públicas tituladas pelo Estado do Rio Grande do Sul. No plano da análise dogmática parece evidente que a participação popular é direito fundamental, isto é, cláusula pétrea derivada de princípio estabelecido pela Constituição Federal, ensejando, portanto, a inconstitucionalidade da emenda promulgada pelo poder constituinte derivado do Estado do Rio Grande do Sul. Acredita-se, no entanto, que a referida análise não é capaz de descer à raiz do problema. Embora a Democracia Administrativa surja como princípio constitucional, vige, na qualidade de dogma, compreensão de que a iniciativa privada executa atividades econômicas com maior eficiência que o Estado, “justificando”, a despeito da participação popular no processo decisório, a venda de empresas públicas que muitas vezes possuem papel fundamental na regulação e no desenvolvimento produtivo nacional e regional. A eficiência, isto é, a marca mais pronunciada da dimensão gerencial da Administração Pública, é indissociável da dimensão política do direito administrativo, devendo-se lembrar, ademais, que a eficiência precisa ser mensurada de acordo com os objetivos e fundamentos da República, ancorando-se na participação popular.

Sustenta-se, ao fim, que a garantia das liberdade individuais e a eficiente prestação das providência habilitadas à concreção dos direitos fundamentais dependem da efetiva participação da sociedade civil na reprodução da administração pública, isto é, estão condicionadas à escuta não apenas das grandes sociedades empresárias interessadas em exercer serviços públicos ou atividades econômicas controladas pelo Estado, mas, também, à participação material de organizações de base, movimentos sociais populares, sindicatos, coletivos estudantis e organizações de pesquisa vinculadas às bases da população brasileira.

 

Notas e Referências

MARINI, Ruy Mauro. Sundesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2017.

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2020.

PESSOA, Robertonio Santos. Apontamentos para uma democracia administrativa: a dimensão política do Direito Administrativo. REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, v. 8, p. 01-18, 2021.

QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Revista Novos Rumos, n. 37, ano 17, 2002, p. 4-28. Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2192/1812. Acesso em: 11 jul. 2020.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

[1] PESSOA, Robertonio Santos. Apontamentos para uma democracia administrativa: a dimensão política do Direito Administrativo. REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, v. 8, p. 01-18, 2021.

[2] Embora o artigo 173 determine que o conceito de segurança nacional aplicado à ordem econômica deva ser determinado por Lei Complementar, deve-se considerar que o artigo 1º, inciso I, e o artigo 3º, inciso II, da CF dão a tônica da permissão constitucional para que o Estado exerça diretamente atividade econômica em nome da segurança nacional e do relevante interesse coletivo.  

[3] Já ofertamos críticas ao nacional desenvolvimentismo em texto publicado nessa coluna (aqui). Embora compreendamos que o nacional-desenvolvimentismo é um projeto idealista e, portanto, inconcretizável, é preciso reconhecer que o ânimo anti-imperialista contido no nacional-desenvolvimentismo é ponto decisivo para qualquer projeto político e político-institucional que pretenda obter a livre determinação e autonomia dos povos. Sobre os Phd’s, verificar entrevista de Leonel Brizola (42 min a 43 min e 50 segundos).

 

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