NO PROCESSO PENAL, O EXAME DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DEPENDE SEMPRE DA IMPUTAÇÃO FEITA PELA PARTE NA DENÚNCIA OU QUEIXA.  

30/06/2020

O recente julgamento do "Habeas Corpus” impetrado pelo senador Flávio Bolsonaro, que atualmente agita o noticiário em nosso país, suscita questões relevantes em nosso sistema processual penal.

Parto da seguinte premissa: não havendo atividade jurisdicional, descabe decidir sobre a competência para um futuro e eventual processo penal.

Por outro lado, a competência dos órgãos jurisdicionais somente pode ser examinada e decidida tendo em vista uma determinada e concreta imputação feita na denúncia ou queixa, apresentada pela parte legitimada para o exercício do direito de ação.

Antes da acusação penal, antes da instauração da relação processual penal, ou seja, antes da acusação formal da parte autora, não são conhecidos os crimes que serão imputados, vale dizer, que serão objeto do futuro processo penal. Assim, não são conhecidos os acusados, os locais da consumação dos crimes ainda não narrados, os bens jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora, etc. Enfim, não são sabidos os “dados materiais da causa”, necessários para o exame da competência de justiça, de foro e de juízo.

Desde logo, tendo em vista a extensão do tema, peço licença para remeter o/a leitor(a) para uma palestra minha que está publicada no Youtube: (https://www.youtube.com/watch?v=66lNjK8s6X4&t=386s&fbclid=IwAR2jzBz_MDAWcvYWX8jFqXRxScys8DaedXyvGqtpoGnNzO9PEU7NFwK9MVE)

Desta forma, está totalmente errado o parecer da Procuradora de Justiça no Habeas Corpus impetrado pelo senador Flávio Bolsonaro, bem como a decisão da 3ª.Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do E.R.J. (não houve unanimidade).

Não me impressiona a existência de medidas cautelares coercitivas contra os outros indiciados (Queiroz, esposa, etc). Vejam: elas não tiveram como objeto o Flávio Bolsonaro, que sequer está formalmente indiciado, ao que me parece.

Nesta hipótese, caberia decidir apenas sobre a competência para os atos jurisdicionais cautelares, levando em linha de conta os indiciados submetidos aos atos judiciais cautelares e os crimes pelos quais foi instaurado o inquérito, segundo portaria da autoridade policial ou requisição do Ministério Público.

A decisão seria apenas de validade ou não destas medidas cautelares judiciais. Mesmo assim, seria mais adequado examinar a competência para estes atos após o exercício da ação penal condenatória, tendo em vista os crimes narrados na denúncia.

Importante notar que não são jurisdicionais os atos persecutórios autorizados pelo Poder Judiciário ou por ele praticados na coleta de prova no inquérito.

Vale dizer, não caracteriza atividade jurisdicional cautelar a coleta de prova no inquérito policial, ainda que dependente de autorização judicial, como a “quebra de sigilo bancário”.

Nesta fase pré-processual, como disse o professor Fernando da Costa Tourinho Filho, trata-se de função anômala outorgada pela Constituição Federal ou pelo Código de Processo Penal ao juiz. Anômala porque, no sistema acusatório, não cabe ao Poder Judiciário participar da investigação inquisitorial.

Voltando à questão central da nossa reflexão, damos um exemplo para melhor entender o motivo pelo que não se pode dizer da competência jurisdicional antes da ação penal condenatória. Vamos supor, somente para argumentar, que o Ministério Público Estadual entenda haver prova mínima de um crime contra um bem da União ou de suas Autarquias. Como ficaria a situação processual que estamos examinando ???

Neste caso, o órgão do Ministério Público Estadual teria que DECLINAR DE SUA ATRIBUIÇÃO e remeter os autos do inquérito para o Ministério Público Federal.

Entretanto, como fazer isto diante desta decisão que "manda" tudo para o Órgão Especial do TJ do E.R.J. ???

Pelo sistema acusatório, o Poder Judiciário não pode "rascunhar" eventual denúncia do Ministério Público. Não pode o Poder Judiciário examinar a sua competência partindo de uma acusação não feita, partindo de uma acusação hipotética.

Na verdade, o Ministério Público, como parte acusatória, é que sabe onde e como vai exercer o seu direito de ação penal. Feita a acusação formal, aí sim, caberá ao órgão jurisdicional decidir sobre a sua competência, TENDO EM VISTA A IMPUTAÇÃO FEITA PELA PARTE NA SUA PEÇA ACUSATÓRIA (denúncia ou queixa).

Ademais, no caso concreto, até onde eu sei, não houve medida cautelar em face do Flávio Bolsonaro. Repito: nem todo ato de produção de prova, ainda que determinado pelo juiz, tem natureza de jurisdição cautelar.

Enfim, vale a pena repetir, não cabe ao Poder Judiciário dizer onde e como o Ministério Público deve exercer o direito-dever da ação penal pública. Isto viola o sistema acusatório. Pode até ocorrer que o Ministério Público não exerça a ação penal pública ...

Desta forma, descabe até mesmo a aplicação da jurisprudência do S.T.F. que não admite o foro por prerrogativa de função se o acusado já não mais está no cargo ou se o crime não foi durante o mandato popular e em relação a ele.

Este sólido entendimento jurisprudencial já seria suficiente para a improcedência do pedido do impetrante. Este exame, como dissemos acima, é evidentemente prematuro, pois o tribunal estaria tratando de competência jurisdicional na fase inquisitorial, vale dizer, no inquérito policial.

Ademais, contra o impetrante do Habeas Corpus não há ainda uma acusação formal (denúncia) e não são conhecidas as imputações que seriam ou serão feitas pelo Ministério Público !!! Não se sabe sequer se o impetrante será processado, conforme dito acima !!!

Em inquérito policial, somente tratamos de atribuição (não de competência) dos órgãos persecutórios do Estado.

Repito: entendo que a validade de eventual medida jurisdicional cautelar somente deve ser examinada após a acusação formal da parte. Salvo situação aberrante, somente diante da futura imputação feita na denúncia é que saberemos se o juiz era ou não competente para a tutela jurisdicional cautelar.

Desta forma, o pedido formulado no referido H.C. deve ser julgado improcedente pela Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Não há a ilegalidade apontada pelo impetrante.

Por derradeiro, mais uma consideração relevante.

Julgo não ser muito técnico falar-se de nulidade ou anulabilidade de prova produzida no Direito Processual Penal. Prefiro falar em exame de admissibilidade ou não da prova. Admissível que seja a prova, aí examinaríamos o seu valor de convencimento, o seu mérito.

Assim, mais técnico é dizer, por exemplo, que a prova ilícita não é admissível no processo e não dizer que ela seja nula.

Ademais, a falta de competência (atribuição) de um determinado juízo, não torna nula (inadmissível) a prova produzida por peritos e demais órgãos de investigação, pois eles tinham atribuição para os seus atos funcionais probatórios que efetivamente praticaram.

De qualquer forma, também é de conhecimento de todos que eventual ilegalidade de atos probatórios do inquérito não “contaminam” o processo penal. Nele é que a prova deve ser efetivamente produzida, com a garantia do contraditório, da ampla defesa e da publicidade dos atos processuais.

Tenho textos e pareceres sobre estes temas em meu livro "Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres", 15a.edição, 2018, Juspodium (em parceria com o amigo, magistrado e professor Pierre Souto Maior Amorim).

 
 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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