NISE, WARAT E O AMOR COMO CAMINHO PARA A RESTAURAÇÃO

04/12/2019

Nise, o coração da loucura[1] é um filme brasileiro lançado em abril de 2016, baseado na história da Médica Psiquiatra Nise da Silveira, que nos anos 1950 posicionou-se contra os tratamentos convencionais de esquizofrenia aplicados na época.

Nise[2] foi uma das percursoras do movimento antimanicomial no Brasil e ao assumir o setor de terapia ocupacional do Hospital Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, iniciou uma nova forma de lidar com os pacientes, substituindo os procedimentos usados pelos demais médicos (lobotomia, eletrochoque, punição, isolamento, coisificação do sujeito), pelo amor e pela arte.

Ela ousou olhar os pacientes como seres humanos, os quais ao sentirem que assim eram tratados, permitiram-se também ousar na relação consigo e com os demais. Com técnicas simples como o contato com a natureza e a arte, muitos afloraram potencialidades até então desconhecidas aos olhos externos. Passaram a mostrar ao mundo o que viam em seus íntimos.

A história de Nise à frente daquele espaço terapêutico, mostra que quando o ser humano tem suas limitações e diferenças respeitados, seu espaço preservado, e liberdade para expressar o que pensa, os resultados são muito positivos.

Esse método afasta-se por completo do utilizado pelo punitivismo, que aprisiona, despersonifica, castra e estigmatiza, agressividade essa inerente ao sistema penal, que por não compreender as necessidades de cada interno, coloca todos numa mesma categoria de "marginais”, e às margens são relegados.

O que Nise fez com seus pacientes foi lhes dar amor e cuidado, respeito e espaço, voz e oportunidade de se sentirem e de se expressarem, método que se assemelha com o proposto por Warat num livro que escreveu para ajudar as pessoas a “aprender a ser mediadores comunitárias”. O trabalho aborda a mediação enquanto ética da alteridade que se caracteriza no “respeito absoluto pelo espaço do outro”, sendo “radicalmente não invasora, não dominadora, não aceitando dominação sequer nos mínimos gestos”.[3]

Sua proposta é baseada no reencontro amoroso por meio da mediação, que é a realização com o outro dos próprios sentimentos, é viver em harmonia com a sua interioridade e com os outros, é ter o direito de dizer o que se passa, numa busca do ponto de equilíbrio consigo e com os outros.[4]

Warat aborda o que chama de “mediação do excluído-esquecido-oprimido”, método com as características do diálogo, produzido num espaço que facilita “contágios culturais transformadores”, através da arte, justamente o recurso utilizado por Nise; confiança, não para negociar um acordo, mas para um pacto de cultura; criatividade e compaixão (sentir-se desde o outro).[5]

Para Warat, a “linguagem da ciência” não é capaz de compreender os mistérios da vida de cada um e, por isso, é inadequada para “trabalhar os conflitos nos processos de mediação”. Essa compreensão só acontece por meio do sentimento e do amor. Esses são os instrumentos capazes de alcançar as raízes dos conflitos. Altera-se, então, a linguagem da ciência pela “linguagem poética” dos afetos”, essa a sua proposta.[6]

É preciso pensar a mediação como “fórmula de humanização das relações humanas” e de “construção de uma justiça entendida como preocupação em torno da qualidade de vida”, afastando-se da ideia de “castigar supostos desvios valorativos, morais, desvios de sentimentos ou ações, considerados como tais por uma forma de civilização, que faz da ordem uma neurose”.[7]

A mediação em Warat é um exemplo de como agir preventivamente ao desvio, numa concepção comunitária de aproximação e conhecimento de si e do outro que consigo se relaciona. Afastar-se da razão e aproximar-se do sentimento de pacificação. Mediar não porque é o certo (razão), mas porque desejo que assim seja feito, por ser essa uma pulsão íntima que aflora nos espaços de comunicação e autoconhecimento.

Tarefa das mais difíceis, mas possível e genuinamente restauradora, como foi demonstrado por Nise, que transformou um “alojamento de doentes mentais” em um espaço terapêutico de criação e transformação.

Com Nise e Warat fica evidente que o amor é necessário para a mediação. Contudo, onde há poder, não há amor (Jung), o que autoriza a constatação de que sendo o sistema penal uma estrutura de poder, não há como gerenciar um reencontro amoroso na mediação exclusivamente judicilializada.

A percepção sistêmica da violência é um caminho que busca a cultura da paz e, por meio de instrumentos como a Justiça Restaurativa, o Direito Sistêmico e a Justiça Restaurativa Sistêmica, podemos com mais facilidade alcançá-la.

 

Notas e Referências

[1] Direção de Roberto Berliner.

[2] Em épocas de eletrochoques, Nise da Silveira enfrentou os procedimentos estabelecidos e apostou na arte e na interação como métodos de terapia psiquiátrica. Única mulher entre os 157 homens da turma de Faculdade de Medicina da Bahia a formar-se em 1926, foi presa dez anos depois pela posse de livros marxistas. Na prisão conheceu Olga Benário, Graciliano Ramos e outros participantes do movimento comunista, que se tornaram amigos seus.
Iniciou os trabalhos de terapia ocupacional no Brasil e fundou, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, documentando os trabalhos de seus pacientes nas oficinas de modelagem e pintura, valorizando-os como forma de compreender profundamente o universo interior do esquizofrênico. (MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL. Disponível em http://movimentoantimanicomial.blogspot.com.br/2010/02/nise-da-silveira.html. Acessado em 20 de março de 2017).

[3] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 54 e 193.

[4] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 28.

[5] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 200-201.

[6] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 28-29. Ainda o autor: “A linguagem que estou chamando de coração transmite aquilo que não pode ser transmitido pela linguagem fática (entendida intelectualmente), deseja dizer aquilo que não pode ser dito pela linguagem da comunicação ordinária” (p. 29).

[7] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 113.

 

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