Ninguém é contra os nordestinos, por ser contra a vaquejada

31/10/2016

Por Adriana Cecilio Marco dos Santos – 31/10/2016

Escrevo o presente artigo, em resposta a alguns artigos que li, que realizavam, em apertada síntese, essa ligação: “ser contra a vaquejada é ser contra o povo nordestino”. Com o máximo respeito aos argumentos dos autores, eu, como defensora dos animais, me senti na obrigação de rebater algumas alegações, visto que começam a se proliferar textos na mesma vertente, rebaixando a causa animal a um mero debate bairrista.

1- Nenhum protetor da causa animal está defendendo o fim da vaquejada porque ela se dá no nordeste, ou porque é algo típico do povo nordestino. Essa visão é um grave equívoco, pois apequena um debate pautado em uma preocupação mundial, qual seja: ‘o direito dos animais de não sofrerem arbitrariamente’; para uma esfera personalíssima, que não é o objeto do debate. A discussão nem de longe se perfaz sob a égide de uma perseguição ou discriminação a qualquer cultura regional específica. Os ativistas atuam, se articulam, protestam e se posicionam em todos os lugares do mundo, em relação a qualquer situação em que exista um animal sofrendo maus tratos, violência e crueldade.

A defesa dos direitos dos animais é algo muito mais amplo, que não passa pela preocupação de quem está praticando a crueldade, onde ou porque, ou mesmo, em face de qual animal o ato está sendo praticado. Acreditamos que os animais não estão aqui para nossa diversão e deleite, essa é a questão. Toda vida é sagrada. Eles são seres vivos, sencientes, não são coisas, merecem respeito e devem ser sim, em um futuro muito próximo, destinatários de direitos (vide A era dos Direitos de Norberto Bobbio).

Apenas exemplificando algumas ações dos ativistas: agências de viagens não venderão mais atrações, que envolvam animais; Há uma forte pressão pelo fechamento de zoológicos e aquários no mundo inteiro, alguns países como a Costa Rica já os aboliram; A indústria baleeira no Japão está em colapso com a queda nas vendas da carne de baleia; O Sea World anunciou o fim de espetáculos com orcas. Essas informações são reflexos diretos da atuação dos ativistas pela causa animal, no mundo todo.

Sempre haverá os que se dizem “prejudicados”, principalmente sob a ótica financeira por conta do fim da exploração animal. A atuação dos defensores da causa animal, não se guia por atingi-los, mas sim e exclusivamente, em defender os animais. Sendo precisamente esse o ponto, também em se tratando da vaquejada.

2- Pautar o discurso na tese de que se trata de uma manifestação cultural, de algo ancestral, que deve ser mantido. Bem, havemos de nos questionar, que tipo de cultura, desejamos manter. E porque a manteríamos? Um evento que festeja a covardia contra um animal, que o impinge dor e sofrimento de forma desnecessária e leviana é algo que, necessariamente, deve ser mantido?

As batalhas se davam no Coliseu, na Roma antiga também tinham sua razão cultural de existir. Depois de uma brutal carnificina, de lá saiam, um ou outro, gladiador vitorioso e isto era um motivo de grande orgulho para aquele que sobrevivia. Existiam aqueles que viviam da exploração deste esporte e havia o massivo apoio da população que se divertia, assistindo e aplaudindo aquelas tragédias reais. É razoável criticar o fato dessa pratica ter sido abolida?

Para trazer um exemplo mais próximo e vivo, a farra do boi que ocorria anualmente em Santa Catarina, também era uma tradição, uma manifestação cultural. Através dos esforços e com muita luta dos defensores, ela foi abolida em 1997 pelo Supremo Tribunal Federal. Não há que se falar em perseguição aos catarinenses e de igual forma no tocante a proibição da vaquejada, não se está a falar contra os nordestinos. O mérito do debate é o direito do animal de não sofrer arbitrariamente, por um mero deleite, não se trata de uma afronta ao povo local, um desejo de “encabrestamento”, ou algo que o valha.

É preciso compreender que o mundo evolui e vai deixando para trás, hábitos que não se coadunam mais com o amadurecimento civilizatório.

3- Comparar a vaquejada com esportes violentos, como forma de justificar sua existência, uma vez que até seres humanos morrem durante a prática destes. Penso que há uma diferença essencial bastante simples, que é o poder decisório. O homem sabe o que está fazendo, escolhe com base em seu livre arbítrio, passar pela situação e faz tal escolha com o condão de obter fama e fortuna. Em que isso se aplica aos animais?

Não é incomum que os bezerros fiquem paralíticos depois do tranco que recebem no pescoço, quando são laçados em rodeios. Os animais que são utilizados em vaquejadas são puxados pelo rabo com extrema violência, quebram patas, rompem tendões, nervos, ligamentos e vasos sanguíneos. Há informações de muitos destes animais, são apenas encaminhados para descarte, sem nenhum tipo de analgesia para aplacar sua dor. Como é possível comparar essa situação, com esportes radicais praticados por seres humanos?

4- Dizer que não há como provar, que os animais sofrem durante esses eventos? Vide parágrafo acima. Bem, é preciso ter olhos para ver. O sofrimento é algo que está ali, gritante, ululante, mas é preciso querer ver. E isso é algo que, não poderia ser difícil, não deveria requerer sensibilidade ou conscientização, porque é absolutamente nítido e notório. Essa “cegueira” vem da ideia de que, não há problema em os animais passarem por isso.

Quem luta pelo direito dos animais desafia o conceito estatuído pelo antropocentrismo. Acreditamos o ser humano, não é o centro de tudo, somos parte, estamos dentro do todo. Humanos e animais possuem habilidades e recursos mentais diferentes. Mas isso não nos aufere o direito de fazer deles objetos, que podemos impingir sofrimento por pura diversão. (Fora todas as outras atrocidades que são perpetradas contra eles, que são muitas e reclamam um artigo próprio para discorrer a respeito). Este manejo do raciocínio lógico que nos diferencia dos animais deveria, sim, nos trazer o dever, de trata-los com dignidade.

A decisão do Supremo Tribunal Federal se pautou, acertadamente, no inegável sofrimento que é impingido aos animais nas ditas vaquejadas. A escorreita interpretação literal do art. 225, §1º, inc. VII, que dimana a obrigação do Poder Público de assegurar a proteção aos animais, para que não sejam vítimas de crueldade, é absolutamente clara e aplicável ao caso em comento.

Mister destacar que a determinação de não utilizar mais os animais, não tem o condão de extinguir a cultura. Será necessário, apenas, alterar a forma como essa manifestação cultural é realizada. Será preciso criar algo novo, sem abandonar o conceito que se deseja preservar. O ser humano tem essa profunda capacidade inventiva, basta que se disponha a adaptar-se ao novo paradigma.

Ademais, tratar todos os seres vivos de forma digna, “desnaturalizar” a violência, tem o poder de resgatar em nós um sentimento muito relevante: a compaixão. E isto é benéfico para toda a sociedade, não só para os animais.

5- Estaríamos lutando para auferir direitos aos animais, que nem os humanos possuem. Essa assertiva, não se coaduna com a realidade, visto que nenhum ser humano é utilizado como coisa, contra a sua vontade, em nenhum tipo de esporte. Essa fala se traduz no corriqueiro argumento: “há tantos problemas a resolver, você está se preocupando com isso?” Sim. Somos muitos, podemos e devemos sim, cada um lutar por um ideal. Se a humanidade precisasse resolver apenas um problema por geração, estaríamos, talvez e com sorte, na idade das trevas ainda.

A singela verdade é que grande parte das pessoas, se incomoda com mudanças. Primam para que as coisas fiquem como estão e reclamam muito daqueles que aspiram mudar o que está posto. Não lutam por nada, são figurantes da história, não a constroem, não deixarão nenhum legado a não ser o de ter sido um entrave, para a evolução mais próspera da humanidade. Zelar pela manutenção dos nossos equívocos é uma erronia de per si. Como foi errada a escravidão, como é errado o racismo, o machismo, a homofobia, achar que temos o direito de maltratar os animais, também é um erro.

Os que lutam pelas mudanças são sempre odiados, pichados de chatos, de utópicos, são incompreendidos e por vezes batalham uma vida inteira, mas não chegam a colher os efeitos dos seus atos, porque a resistência é sempre muito grande, é preciso gerações para conseguir alterar qualquer entendimento que habite o inconsciente coletivo. Mas como disse Galeano: “a utopia serve para isso, para nos fazer caminhar”.

Há muito que se dizer sobre a defesa dos direitos dos animais, mas reduzo a minha fala a um ponto simples, que concentra o que existe de essencial a ser dito: o mundo está evoluindo, lenta, mas vigorosamente e proibir a vaquejada é um passo rumo a um mundo livre de exploração animal. Que será, com isso, um mundo um pouco melhor. É esse o foco da luta.


adriana. Adriana Cecilio Marco dos Santos é Advogada, Sócia Fundadora do Escritório Adriana Cecilio Advocacia, Especialista em Direito Constitucional Aplicado, Membro efetivo da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP, Membro da Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos – ANPAC e da Associação Nacional dos Constitucionalistas da USP – Instituto Pimenta Bueno..


Imagem Ilustrativa do Post: Manifestação // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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