Neopositivismos e o azedo suco da Laranja Mecânica (Parte 3)

08/06/2015

Parte 3

A forma de terapia de aversão apresentada na clássica obra de Burgess, como antes acentuado, nada mais representa que o impulso mais profundo da engenharia estatal estampada no combate à criminalidade a partir de um estofo cientificamente controlável: a ciência na tarefa incansável de extirpar a criminalidade do horizonte a partir de um criminoso plenamente curado. Burgess, em seu tempo, surpreende esta racionalidade permanente que, nos anos 50´s, dava-se diante dos burburinhos midiáticos sobre a escalada da criminalidade juvenil no Reino Unido, e as efetivas iniciativas governamentais de propostas ancoradas na abordagem behaviorista em grande exposição também à época. O livro, como assume seu autor, é um contraponto radical às apologias do que se poderia chamar uma “lavagem cerebral benéfica” que muito bem foram materializadas no livro Beyond freedom and dignity de Burrhus Frederic Skinner, publicado no mesmo ano em que o filme homônimo de Kubrick surgiu nas telas. O comportamentalismo de Skinner advogava uma renovada “technology of behaviour” para enfrentar os “terríveis problemas que nos afetam no mundo contemporâneo”.[1] Sua leitura reducionista do agir humano pregava que, tais como ratos em laboratório, os homens seriam levados a certos tipos de ações por estímulos de aversão e não aversão. Skinner, todavia, condenava “humanisticamente” os reforços negativos; o que ele deseja, porém, era incentivar os estímulos positivos certos – “você ensina truques a um animal de circo não por meio da crueldade, mas da bondade”[2]. Este nível circense bastante elevado cientificamente pretendia com estímulos corretos, dirigidos aos nossos instintos, condicionar adequadamente cada um para um objetivo maior: tornarmo-nos cidadãos melhores, submissos a um Estado gestor do bem estar social. Naturalmente, o discurso skinneriano jamais admitiria que a “técnica Ludovico” tenha sido outra coisa senão o “tipo errado de condicionamento”.

Assim, a parábola ética de Burgess e, também neste ponto de Kubrick, vai na direção de tentar “declarar que é preferível ter um mundo de violência assumida em plena consciência (…) do que um mundo condicionado a ser bom ou inofensivo.”[3] Através de uma heresia grosseira, “para além da liberdade e da dignidade”, é a morte de qualquer sujeito ético que estava colocada. Mas será tão absurdo assim, ou se trata de uma articulação lógica cientificamente ponderada tendo em vista a finalidade desenfreada pela eliminação do mal, a saber, neste caso, a violência criminal? Afinal, não será o argumento sempre recorrente: “precisamos praticar controle; precisamos limitar nossa liberdade pelo bem da sociedade” (aqui o fundamento de um “direito de punir” posto desde o XVIII) nem que seja ao preço “renunciarmos à nossa liberdade de escolha”[4]– por mais problemática que seja o entendimento sobre o que se possa investir em nome da liberdade?

Sabido que àquela altura, já se notava o declínio da ideologia do estado de bem estar social, que no controle social da prisão significou o enfraquecimento do ideal “progressista” ressocializador.[5]De alguma forma, é o correcionalismo, expoente maior do paradigma disciplinar instalado desde o XVIII,[6]que teve no XX seu apogeu e então começara a entrar em crise. Entretanto, a reflexão deve ser mais profunda. Importante frisar que há um traço contínuo ao longo da história das ideias punitivas o qual não se pode ignorar. O controle social moderno é apenas um capítulo a mais, orientado fortemente pela racionalidade científica (a imposição de tratamento num marco punitivo moralizante é apenas um de seus modos de operar).

Os discursos legitimantes do poder punitivo, em particular sobre a imposição de dor e sofrimento justificadamente veiculadas, sob diferentes matizes, nunca deixaram de distar de um objetivo positivo sobre a penalidade – instrumento benéfico para a eliminação de um mal. Os argumentos científicos dispostos sobre a questão criminal, para além de dar fundamentação à punição (quer sobre o ideal repressor ou preventivo), provenientes das mais diversas áreas do conhecimento, em especial o saber médico-psiquiatrializante, continuam a prescrever “racionalmente” meios de erradicação do resto bárbaro que insiste em emergir nos ideais civilizados da cultura.[7]

Variando suas justificativas, a neutralização de um sujeito capturado pelo sistema penal (inimigo, estranho, louco etc.) que carrega o signo da uma diferenciação, será sempre o alvo politicamente estipulado. Quando o ideal “humanista” disciplinar passa a impor aos corpos dóceis a ortopedia da alma, que mais tarde tomará a roupagem da ressocialização, ainda estará em xeque a perene tentativa que acompanha todo o campo da “questão penal” de eliminar este resto anacrônico individualizado em alguma essência criminosa. Nesta correlação de forças, coube sempre ao discurso científico fazê-lo, em especial desde o XIX com inalcançável protagonismo médico-biologicista.

Haveria éden político maior que cientificamente poder-se eliminar em sua raiz mais profunda a maldade delitiva? Alex, como personagem emblemático, apenas representa esta pulsão indeclinável. Burgess já apontava o alerta: “Como lidar com eles? Prisões ou reformatórios os pioram. Porque não poupar dinheiro dos impostos sujeitando-os a um tratamento fácil de condicionamento, algum tipo de terapia de aversão que deveria fazê-los associar atos de violência e desconforto, náuseas ou até insinuações de mortalidade? Muitas cabeças acenaram positivamente para esta proposta. (…) Muitas cabeças acenam positivamente até hoje.”[8]

Atualmente, sem nenhum exagero, os argumentos behavioristas de Skinner (ele funciona, frise-se, apenas como parte de todo um sistema de pensamento muito mais amplo e contundente) não precisam ser muito remasterizados para alcançarmos os causalismos pouco inteligentes camuflados tecnologicamente nos mais avançados estudos daquilo que se poderia chamar de uma “neuropsiquiatria do controle”. Scanners de última geração (EEG – electroencephalograph) a verificar alterações (ações criminosas) que possa ser identificadas, neutralizadas e até mesmo previstas[9] não são mais histórias dos contos de PKD (Philip Kindred Dick – Minority Report, também trazido às telas em 2002 por Steven Spielberg). Persiste o intuito (neo)positivista de essencialização (não esqueçamos a linha de continuidade do positivismo com o próprio utilitarismo que fundou a clássica escola penal: aquele nada mais era que um positivismo com cálculo de rentabilidade[10]) do crime na carcaça miserável do criminoso detentor de alguma degeneração pronta a ser diagnosticada e mesmo predita.

Certo dispositivo psi hoje reconfigura-se num protagonismo talvez inédito inclusive na aurora da instalação da ciência criminológica no XIX. Produto que é da atual psiquiatrização da vida cotidiana, quantidades inimagináveis de investimento e pesquisa são canalizados nos mais diversos e respeitados centros científico-tecnológicos pelo mundo, prontos a mobilizar o patológico com pretensa objetividade (nosologia). Perante o cientismo elevado à religião, o paradigma do homem comportamental (homem-máquina) das ciências cognitivas, que visa reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química (porque afinal seus tratamentos químicos conseguiram atingir as causas ditas cerebrais da aflição da alma),[11] em matéria criminal, possui enredo bem conhecido: com a sua ilusão difusa de cura, pode-se captar a anormalidade com alguns estímulos capturados num tecnológico écran e sedutoramente pregar a prevenção de atos nocivos futuros. Controle, neutralização e segregação em arranjos finamente ajustados e atualizados, ou seja, o poder do controle psiquiátrico tecnologicamente disposto a “prever para prover” a eliminação do fenômeno criminal. Ao que parece, a esta altura, os ensaios comportamentais de Skinner não são mais que idílicas canções de ninar frente aos auspícios da uma neurociência heavenmetal[12] preocupada com o crime.

Alguma futurologia a funcionar desde laudos criminológicos reconhecidamente de profunda fragilidade epistemológica impostos via uma moral totalitária torna-se, neste viés, peça de museu. Sepulta-se ideologicamente qualquer discussão ética em favor de um discurso que privilegia elementos mensuráveis, quantificáveis e diferenciáveis desde um conjunto operacional de características de base. Por que mais discussões infindável sobre o violência, sistema penal, crime, processos de criminalização etc. se um exame da atividade cerebral através de testes de inibição podem prever (não absolutamente, mas com alguma probabilidade, é claro…) se um criminoso voltará a delinquir; se tais resultados sugerem (pasme!) um “biomarcador neurocognitivo para o comportamento antissocial”?[13] Tratar o psiquismo e a questão criminal em termos de uma neurobiologia, tecnologicamente ar(ri)mada, não vai fazer com que tais práticas deixem de exalar os odores dos velhos naturalismos de antes-de-ontem como novidades reluzentes do depois-de-amanhã, nem conseguirá esconder a crença de que a racionalidade tecnocientífica queira deter a derradeira palavra sobre a humanidade.

Se a “laranja mecânica” de Burgess e Kubrick acaba por apontar e acalentar os sonhos de um Estado Policial ideal é porque há uma política criminológica causalista plenamente reatualizável, nunca distante da permanente ontologização do criminoso. Criminologia como signo da guerra à criminalidade e véspera de seu extermínio – por isso não deixará de se irmanar com qualquer discurso capaz de legitimar o poder punitivo, inclusive os “bens intencionados”, todavia fracassados, hipócritas e moralizantes discursos humanitários de ressocialização. A razão moderna das ciências criminais foi espremida pela laranja. Exposta a perversão do “direito” de punir estatal que comunga os dispositivos capazes tanto de ritualizar e reificar quanto inovar e dinamizar as pulsões desumanizantes, que sirva os urros de Alex de testemunho. Ao fim, será como que para estabelecer alguma memória: “Alex é um bom, ou mal, exemplo de homem eterno. É por isso que ele chama vocês de irmãos.”[14]


Notas e Referências:

[1] SKINNER, B. F.. Beyond Freedom and Dignity. Westminster: Penguin Books, 1971, p. 09 ss.

[2] BURGESS, Anthony. “A Condição Mecânica”. p. 302.

[3] BURGESS, Anthony. “Geleia Mecânica”, p. 318.

[4] BURGESS, Anthony. “De uma entrevista inédita com Anthony Burgess”, p. 333.

[5] Cf. por todos GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social em La sociedad contemporánea. Traducción de Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.

[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 117 ss.

[7] SOUZA, Ricardo Timm de. Em Torno à Diferença: Aventuras da Alteridade na Complexidade da Cultura Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 129.

[8] BURGESS, Anthony. “Geleia Mecânica”, p. 318.

[9] Para um minucioso acompanhamento das pesquisas sobre indicadores neuropsicológicos de disfunções cerebrais e comportamento anormal, ver VOLD, Georg B.; BERNARD, Thomas J.; SNIPES, Jeffrey B.. Theoretical Criminology. New York/Oxford: Oxford University Press, 2002, pp. 46-54; e principalmente sobre as aspirações psiquiátricas de predição de periculosidade e seus aspectos policiais, pp. 69-83.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raul. La palabra de los muertos: Conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires, 2011, p. 72.

[11] ROUDINESCO, Elisabeth. Porquê a psicanálise? Lisboa: Livros do Brasil, 2001, p. 10 ss..

[12] Neologismo criado por Burgess para descrever o êxtase sentido por Alex ao ouvir a música de seu ídolo, Ludwig van Beethoven. Não há como admirar a previsão involuntária do autor: a expressão heavy metal só seria criada anos depois.

[13] AHARONI, Eyal et. al.. “Neuroprediction of future rearrest”. In: PNAS, vol. 110, nº 15, April/2013, pp. 6223-6228.

[14] BURGESS, Anthony. “Nota a a clockwork Orange 2004”, p. 342.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Ilustração de Angeli para a nova edição do livro Laranja Mecânica // Com alterações

Disponível em: https://medium.com/@editoraaleph/laranja-mecânica-50-f9cbd39e3fc3

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