Neopositivismos e o azedo suco da Laranja Mecânica (Parte 2)

01/06/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 1º/06/2015

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Parte 2

O choque proposto pelo romance de Burgess precisamente está na capacidade de ser reconhecido como realidade atemporal, todavia com a agudeza do concretamente perverso do nosso cotidiano. Por (apenas) sugerir uma sociedade ainda não presente é que descortina a intempestividade de cada instante de horror numa convivência moderna marcada pelo aniquilamento do que radicalmente de humano a poderia sustentar. Terrorismo maior não há que a vitória naturalizada de processos técnico-científicos, dispositivos médico-psiquiatrizantes incrivelmente apurados e racionais, prontos a legitimar, a todo momento, o poder punitivo e naturalmente pretensos a eliminar o caos da criminalidade da face da terra, ou seja, a violência e seus monstruosos protagonistas do meio social. Ilusões de uma razão delirante que não negam a realidade, mas propriamente dão substrato a ela. Ficção que dá consistência à lógica real de extermínio que empurra uma razão perdida em/de dignidade – (nem tão) cega a perceber o drama de ver-se a si mesma como o verdadeiro mal. O desejo dessa razão científico-universalizante [1] – neutralizador da diferença e planificador do acontecimento – que esquece das racionalidades plurais para salvar sua própria honra, neste registro, facilmente converter-se em puro poder, perdendo o sentido e a humanidade do mundo.

Portanto, a história de nosso protagonista e as passagens de violência – gratuita e pornográfica para algum hipócrita e tirano protagonista da ordem – prestam-se muito menos como simbologias ou alegorias prontas a serem neutralizadas com confortantes epitáfios, mas potencializam a crítica ao poder punitivo racionalizado exatamente pelo poder político de sua literalidade. Metáfora que serve de hipérbole para ressaltar o pavor de sua condição. Tal como os velhos personagens kafkianos [2], Alex, um outsider radical, toca o cerne da realidade carcomida das instituições de controle e seus conluios jurídico-científicos normalizadores para diretamente ser capaz de questionar, na exposição das relações do poder punitivo dentro do Estado Moderno, a (a)versão obscena do processo civilizador em si, alavancado para degradar as motivações éticas da ação social.

Assim, a cumplicidade das terapias jurídicas, campo riquíssimo da psiquiatrização da vida cotidiana particularmente aplicada à plataforma do crime e da violência, nada destoam e apenas vão canalizar-se na finalidade irretorquível consagrada pela ciência criminológica inaugurada no XIX: a erradicação do mal criminoso, abjeto inimigo da ordem social racional. Processo este que tem o nome de progresso e que ostenta desavergonhadamente os escombros de uma violência infinitamente maior do que aquela que pretende suprimir. Anseios da razão que, ademais, não confessará jamais a produção obscura da tendência que ordena sua lógica: eximir-se permanentemente de normas éticas ou inibições morais. [3] Diante disto, a incalculável dignidade é reduzida à calculabilidade racional, característica mais antiga ainda que a própria civilização moderna, mas que não deixa de reinar soberana e subordinar o uso austero da violência. E se o emprego do poder de Estado é aqui originariamente abusivo, havendo algo de canalha na onipotência soberana que o determina, [4] salvar a honra da razão passa de qualquer forma em fazê-la “razoar” – contar com o incalculável e, mais ainda, tomá-lo justamente em conta.

Componente apenas de um registro numérico nesta engrenagem, desta maneira, o jovem Alex (redução cômica de Alexandre, o Grande) – potente realizador no início da história de sua própria lei (a própria lex, para todos um sem-lei, a-lex) e adiante tornado sem uma lex e também sem léxico (sem palavra) – surge e carrega em si, sobretudo inapelavelmente como alerta Burgess [5], o real significado de “defensor dos homens”: assume a imagem da radical singularidade soterrada pelo bloco monolítico científico. Será a (in)capacidade de nos reconhecermos em Alex (em todo seu deleite pela beleza musical, por exemplo, e especialmente na sua agressividade), que constituirá nosso inaudito veredicto? Noutros termos, o escândalo de que Alex nada tem a dizer, senão a obedecer e ser conduzido mançamente; de que nada teremos nós a ouvir dizer pelo outro, senão a mera recondução tautológica de um dito condicionado e cientificamente autorizado? Feliz a arte que, sem rodeios, pode expressar diretamente a tarefa mais urgente ao pensamento: a tarefa política de “criticar o jogo das instituições aparentemente neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa lutar contra elas”[6] Fundamentalmente, pois, denunciar uma ordem na qual a injustiça se chancelou naturalmente.

Perdida sua capacidade humana genuína por uma terapia hipnopédica “racio-des-eticizante”, pouco haverá de espantoso nesta condição para qualquer um (e para o leitor em especial) e, em contrapartida, muito de alívio nisto – aí a conotação decisivamente irônica da obra – se a constituição racionalizada de uma sociedade complexa que necessita cada vez mais de analgésicos éticos para justificar o que não suportamos prepondere e denuncie que já fomos cooptados pela mesma “lavagem cerebral” de mando e cedidos a uma servidão voluntária. “Em pouco tempo, passamos a gostar de nossas amarras” [7] e a experiência de adular o chicote que nos açoita não mais assombra.

Por que “Laranja Mecânica” poderia ser, sem exagero, o epíteto da utopia moderna (nem tão invertida assim) de civilidade, em especial no tocante ao poder punitivo? Não olvidemos que o próprio título, escreve o autor, refere “uma esquisitice ou insanidade tão extrema que chega a subverter a natureza”. A sabedoria da obra está em dispor claramente esta bizarrice como congênita ao interesse absoluto de controle social, sua obscenidade real. O que poderia ser mais forçado que o casamento de um organismo com um mecanismo; de algo “com vida, que amadurece, é doce, (...) com um artefato frio e morto”[8] A resposta seria certamente a deplorável figura do delinquente curado terapeuticamente de seu “impulso criminoso”.


Notas e Referências:

[1] DERRIDA, Jacques. Vadios: Dois Ensaios Sobre a Razão. Coordenação Científica da Edição, Tradução e Notas Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage, 2009, 226-231.

[2] ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra: os autos do processo. São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 15-43.

[3] BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 48.

[4]  DERRIDA, Jacques. Vadios, pp. 272-277.

[5] BURGESS, Anthony. “A Condição Mecânica”, p. 299.

[6] FOUCAULT, Michel. “Da Natureza Humana: Justiça contra Poder”. Estratégia, poder-saber. Volume IV. Coleção ditos e escritos. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Mota. Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro. 2ª Ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 114.

[7] BURGESS, Anthony. “A Condição Mecânica”, p. 306.

[8] “Tão estranho quanto uma laranja mecânica” (as queer as a clockwork orange) foi a gíria cockney antiga (associado aos habitantes pobres do East End, em Londres) que Burgess diz ter ouvido num pub londrino. “Queer”, mesmo que remeta a algo muito estranho, esquisito, estrambótico, excêntrico, bizarro e quase sempre de cunho sexual, para o autor diretamente “significava louco”. Interessantíssima é a passagem em que o autor conta, como professor na Malásia, ouvir seus alunos muitas vezes se referiam ao fato de trazerem uma garrafa de orang squash. “Orang” é uma palavra comum em malaio que significada “ser humano”. Ao que parece (Burgess nada disso assinala), era um trocadilho dos alunos para “suco de laranja” (orange squash; em malaio laranja é “oren”), mas com uma riqueza linguística incrível que dá precisamente a imagem do humano sendo espremido em sua essência: “seres humanos, suculentos e doces como laranjas, forçados à condição de objetos mecânicos.” Cf. BURGESS, Anthony. “A Condição Mecânica”, p. 298 e “Geleia Mecânica”, p. 315-6 e “Nota a a clockwork orange 2004”, p. 339.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.                                                                                                                                                                                                                                                            


Imagem Ilustrativa do Post: Ilustração de Angeli para a nova edição do livro Laranja Mecânica // Com alterações

Disponível em: http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/48957


 

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